sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Feliz Brasil, outra vez!

Ufa! Eis que terminou o que parecia sem fim. Que se vá (e nunca volte) o Bicho-Doido, o Sem-Fronteiras, o Arrenegado, o Belzebu, o Jurupari, o Príncipe das Trevas, o Tendeiro, o Maligno, o Lúcifer, o Satã, o Cão, o Desavergonhado, o Possuído, o Cramulhão, o Indivíduo, o Desalmado, o Perverso, o Galhardo, o Sujo, o Pé-de-Pato, o Homem, o Tisnado, o Chifrudo, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos... Que se vá, e nunca mais volte, o Monstro.

Viramos a página. Fica para trás um rastro de destruição e miséria, mas o Brasil respira e sua recuperação há de acontecer antes do que se imagina. Foi assim, será sempre assim: depois das trevas, a claridade; depois da tempestade vem a bonança. A democracia venceu, e, daqui a poucas horas, o país estará de novo em boas mãos, mãos que já cuidaram dele com carinho e o farão de novo, tenho certeza disso.

2022 foi um ano impiedoso. Perdemos alguns de nossos valores mais admirados. Demos adeus a Elza Soares, Gal Costa e Erasmo Carlos. A literatura brasileira não conta mais com Nélida Piñon. Deixou-nos Isabel, nossa rainha do vôlei. A tevê e os palcos não terão mais Jô Soares. Morreu Edson Arantes do Nascimento, o Rei, o mais reverenciado brasileiro de todos os tempos, aqui e além.

Mas viramos a página, mesmo que ainda continue sem resposta a pergunta que não se pode calar: como fomos capazes de colocar no mais alto posto da política nacional um fascista indisfarçável? Pior que isso, como este país adoecido quase o reelege, em que pesem os mais de 200 mil mortos que poderiam estar vivos, aos quais negou a vacina salvadora, e dos quais ridicularizou a morte por falta de ar nos pulmões.

Ainda assim, viramos a página. Em que pesem os alucinados à frente dos quartéis, viramos a página e um novo tempo começará daqui a poucas horas. Em que pesem os Paulos Sérgios, os Augustos Helenos e outros generais, viramos a página. A democracia venceu. Os humilhados, os que passam fome, os ofendidos do Nordeste deram o bom recado, e viramos a página.

Perdemos a Copa, mas ganhamos de volta, desfraldada nos braços da multidão, a bandeira nacional  --- e a posse intransferível de nossos símbolos mais representativos. Nenhuma outra passagem de ano foi tão aguardada. Nós viramos a página, e a democracia venceu.

O ano termina com atos de vandalismo que julgávamos afastados do nosso horizonte político. Mas a democracia venceu. O plano criminoso de disseminar o medo e promover o caos a fim de desencadear o golpe, fracassou, e a voz altiva das instituições brasileiras se fez ouvir outra vez, para conter os inimigos da liberdade e o oportunismo dos endinheirados... A desfaçatez delirante. Viramos a página, e a democracia venceu.

Depois de anos de ameaças de golpe, da apologia aos tiranos e aos torturadores; da manipulação da fé; depois do vandalismo nas cidades e nas rodovias, do rugido encatarroado dos Helenos (é preciso repetir seu nome!) e outros apaniguados do mito, eis que viramos a página.

Daqui a poucas horas, o Brasil terá um novo presidente. Que Bozo e bolsominions paguem pelo que fizeram de ruim a este país; pelas mortes que causaram, pelo que destruíram na saúde, na educação, na cultura e no meio ambiente. Que os militares se recolham às casernas de onde nunca deveriam ter saído. Que volte de uma vez por todas a Paz e morra para sempre a intolerância. Que o sol, amanhã, brilhe intensamente, dissipando a escuridão --- e que a sua luz traga o doce calor da Aurora. Viramos a página. A democracia venceu.

Feliz Brasil! Outra vez! 

 

 

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

O fogo passageiro da paixão

Em Cinema Paradiso há uma cena memorável. O projecionista Alfredo, cego e alquebrado, narra para Totó uma singela história de amor: um soldado se apaixonara pela filha de um rei, declarara-lhe o seu amor impossível. Mas a princesa, em dúvida, pede um tempo para decidir se o aceitaria ou não.

Cem dias, é o prazo que estabelece. Em caso afirmativo, no momento certo, apareceria no balcão do palácio. Se não o fizesse, é que lhe teria o 'não' como resposta. E o soldado fica ali, exposto às mais severas intempéries, tempestade ou calor escaldante, o frio que lhe atravessa o corpo, a fome e a sede, sustentando-se na esperança de vê-la aparecer. Heroicamente, conta os dias que faltam. Chegado o nonagésimo nono dia sem que a jovem aparecesse no alto do balcão, o vulto apenas esboçado através da veneziana, eis que o soldado abandona o posto e parte.

"Não me pergunte por quê!", diz Alfredo ao jovem amigo.

Arrisco minha interpretação. É que o soldado prefere levar consigo a esperança de que a mulher amada lhe aparecesse no centésimo dia. Para ele, como para todo ou toda amante, antes a dúvida que a desilusão. Que bela alegoria sobre a utopia da paixão.

Poesia à parte, na vida real é assim. Ele espera o telefonema que não acontece. Ela abre vezes sem conta sua caixa de e-mail, mas o recado não está lá. Ele olha a cada minuto o display do celular, mas não há qualquer mensagem. Ela marcou o encontro no barzinho, mas ele não veio. E os dias se vão passando sem a novidade tão aguardada. Como na história do soldado do belo filme de Giuseppe Tornattore, chega o nonagésimo nono dia na vida dos amantes, e ele ou ela vive o desespero da difícil decisão. Esperar o centésimo dia e enfrentar a realidade e a dor do amor não correspondido ou bater em retirada? Carregar a dúvida do improvável, ou começar a sufocante travessia para o esquecimento ---  e apagar da mente o que insiste em ficar no coração?

Para Nietzsche, o filósofo prussiano do século 19, a esperança é o pior dos sentimentos, pois só prolonga o tempo da dor. Em parte, fecho com ele, em parte não. No amor, passado o martírio de uma desilusão, a esperança pode ter uma outra face, mais otimista e mais certeira. E, invariavelmente, cedo ou tarde, tem! A felicidade vem, silenciosa e sorrateira, mas vem.

Fugaz.

Um dia, como disse numa outra crônica, O Ciclo Vicioso da Paixão, em livro publicado há anos, você, leitor ou leitora, depara com a boa nova. A atração se dá como em milagre: o pisar charmoso com que a viu atravessar a rua, quando o sinal fechou; a elegância com que ele se veste; a forma como ela atende ao telefone, como recompõe o cabelo ou renova o batom; a gentileza com que ele lhe segurou a porta do elevador; a textura da pele dela, a penugem dourada do bumbum, quando, displicente, na areia da praia, espalha o protetor; os olhos que você nunca viu iguais, quando, a pedido, abaixou os óculos de sol; a voz rouca com que se dirigiu ao garçom; a sensibilidade dele, a maneira como ela movimenta as mãos, enquanto conta uma história à amiga, tudo tudo pode acionar o gatilho...

E, sem avisar nem pedir licença, o coração vai batucar, os olhos ganhar novamente o inconfundível brilho.

O fogo passageiro da paixão.

Feliz Natal!  

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Luiz Gonzaga, 110 anos

Nesta semana, mais precisamente no dia 13, Luiz Gonzaga faria 110 anos. Hoje uma unanimidade, mesmo aos olhos da crítica mais exigente, o velho Lua não teve seu nome reconhecido por todos da noite para o dia. Antes pelo contrário, excetuando-se o público nordestino e uns poucos gatos pingados do Sul maravilha, quase sempre voltados mais para o exotismo de sua figura, Gonzagão comeu o pão que o diabo amassou para se fazer notar pela excelência de sua música, do seu acordeom e de sua voz inconfundível. Muito do sucesso conquistado, é justo frisar, devendo-se ao talento de alguns de seus parceiros, com destaque para o pernambucano Zé Dantas e o cearense de Iguatu Humberto Teixeira.

Dessas parcerias, pois, é que surgiu no conjunto de sua vasta produção o que existe de mais relevante em diferentes ritmos e estilos, do baião ao xaxado, do chamego à toada, do xote ao aboio (e improvisações diversas), todos eles, muito embora populares e nascidos do pé de serra, elevados ao fim e ao cabo ao mais alto nível em termos rigorosamente estéticos.  Não é muito afirmar-se, assim, que Luiz Gonzaga antecipou-se a outras manifestações e movimentos pretensamente renovadores, a exemplo da bossa nova, da Jovem Guarda e do Tropicalismo, desconsiderando-se aqui, claro, descompassos de natureza estética, mercadológica ou político-ideológica entre um e outro.

O fato é que, como destacou o renomado crítico e historiador Tárik de Souza, "com seu acauã, assum preto, asa branca, o siri jogando bola, o jumento nosso irmão, Gonzaga povoou o imaginário concreto das cidades sem campos e espaços até que o reinado do baião fosse abalroado pelos semitons dos refinados desafinados".

O crítico, numa avaliação que excede em rigor analítico, como deixa ver a referência depreciativa aos joões da bossa nova, não esquece de ressaltar, contudo, no mesmo ensaio, que esse "abalroamento" não significa o fim do prestígio de Luiz Gonzaga. Muito embora estilizada, em acordes dissonantes e procedimentos experimentais muitas vezes ousados, a música de Luiz Gonzaga ecoa na paridade do rock binário e na retomada identitária brasileira dos baianos, nomeadamente liderados por Caetano Veloso, Capinam, Tom Zé e, sobretudo, Gilberto Gil, talvez o nome da melhor MPB mais influenciado pelo artista pernambucano. E nas apresentações do próprio Gonzagão, evidencie-se, gozando a essa altura de prestígio inconteste em sua voz e roupagem mais autênticas, não raro brilhando em duetos que entrariam para o que de melhor se pôde ver no show business nacional.

No ano em que faria 110 anos, Luiz Gonzaga vem sendo homenageado em diferentes linguagens, shows, programas de tevê, exibição de filme (disponível em DVD e na GloboPlay o belíssimo Gonzagão, de Breno Silveira, cineasta falecido há pouco) e livros. Entre estes, ombreando-se ao clássico Vida do Viajante: A Saga de Luiz Gonzaga, de Dominique Dreyfus, já disponível na Internet o notável Luiz Gonzaga 110 Anos, trabalho sofisticadíssimo do cearense Paulo Vanderley.

Pouco antes de sua morte, em 1989, este colunista realizou longa entrevista com o rei do baião, cujo conteúdo, oportunamente, será explorado neste espaço. Viva Luiz Gonzaga.

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Espetáculo kafkiano

Como discorreu Otto Maria Carpeaux, em ensaio notável, certos nomes têm a força de um enigma, e dizem sobre aquilo a que se referem muito mais do que sonha a nossa vã etimologia.

É o estudioso austríaco quem nos lembra, por exemplo, que o verbo boicotar vem do capitão inglês Boycott, um fazendeiro cujas práticas eram de tal modo assustadoras que seus empregados resolveram largá-lo na mais absoluta solidão, ou seja, boicotaram-no; do Marquês de Sade, afeito a torturar suas companheiras de sexo, veio o que se conhece hoje por "sadismo", assim como, na contramão, "masoquismo" se originou do frágil e tímido escritor Masoch, acostumado aos maus-tratos que lhe eram impostos.

E por aí vai. Do famoso hoteleiro Ritz, nasceram mundo afora, assim chamados, grandes hotéis, como se a palavra servisse para designar o 'estabelecimento onde se alugam quartos, com ou sem refeições', como aparece no Aurélio, que, por extensão, passou a definir livros volumosos.

Ontem, por coincidência, vi à distância, na rua em que moro, um incêndio de proporções "dantescas" num edifício residencial. E me veio Dante, o poeta italiano, adjetivar o que, aos meus olhos assustados, parecia gigantesco, grandioso, muito maior do que realmente foi. Felizmente.

Num país em que se bate continência para um pneu, se pede intervenção militar em nome da democracia, vendem-se e compram-se armas contra a violência, na falta de uma palavra que traduza com exatidão o que existe de esdrúxulo em tais delírios, ocorre-me o adjetivo "kafkiano", cujo significado não se pode explicar sem conhecer o que nos dizem, de Franz Kafka, contos e romances, espécies de alegorias ou parábolas com que o escritor tcheco narrou o que não se pode examinar à luz da plena saúde mental, o que foge aos limites da natureza humana, da realidade histórica, da lógica essencial das coisas.

Estamos todos vivendo um pesadelo "kafkiano", desses só comparáveis aos que vivem personagens das obras memoráveis de Kafka.

No conto A Metamorfose, seu texto mais conhecido, Gregor Samsa acorda certa manhã, depois de sonhos intranquilos, e vê-se transformado num inseto monstruoso; no romance O Processo, no dia em que completa 39 anos, Joseph K. é preso, levado ao Tribunal e condenado à morte sem saber que crime teria cometido; em O Castelo, o agrimensor K. chega a uma cidade à procura de trabalho, mas é impedido pelos moradores de exercer sua profissão, que o tratam com hostilidade e o condenam aos burocratas do castelo, submetido como o homem comum na luta pelo direito a um trabalho, a uma casa para morar, a um nome com que possa desfrutar de uma identidade. E assim, marcados pelo absurdo, acontece em cada um dos livros do "pai da literatura moderna", segundo assertiva de Jean-Paul Sartre.

Franz Kafka nasceu em Praga a 9 de julho de 1883. Seu pai, um judeu alemão, rico e austero, exerceu sobre a personalidade do futuro escritor uma influência quase maligna, levando-o a desenvolver uma personalidade doentia, cujo conflito projeta nas suas narrativas com uma força e um sentido inclassificável.

Há alguns anos, não muitos, percorri as ruas da Praga antiga, cenário de muitos de seus livros e de suas histórias a um só tempo inquietantes e belas, na tentativa de encontrar vestígios de sua vida atormentada. O castelo que dá nome ao romance existe, o cenário de O Processo existe, os bares que frequentou, estão lá, os lugares inomináveis, marcados do musgo verde, úmido e gelado de que estão cobertas as pedras do chão, estão lá. 

Em que pese a beleza estonteante da cidade, das mais encantadoras a que pude chegar, aos olhos do visitante, dá-se a ver a presença do homem solitário e triste, do ser humano que foi capaz de entender e comunicar, pelo milagre de sua arte dialeticamente real e fantástica, o incomunicável, o inexplicável, o absurdo, o estranho, o burocraticamente tortuoso e apavorante de um mundo sem lógica e sem racionalidade.

No Brasil, pois, à frente dos quartéis, assiste-se a um espetáculo kafkiano.

 

 

 

 

 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Pasolini, 100 anos

Do amigo-irmão Francisco Marto Araújo (Frank), cinéfilo e profundo conhecedor da melhor música brasileira e internacional (é especialista em Beatles, Dylan e outros), vem uma relação dos dez maiores filmes de todos os tempos. Constam da lista verdadeiras unanimidades, a exemplo de Bergman, Kurosawa e Fellini, com realizações memoráveis: Morangos Silvestres (1957), Os Sete Samurais (1954) e Noites de Cabíria (1957). Mas aparecem na seleção, a confirmar o rigor estético do amigo, claro, Rossellini, com Roma, Cidade Aberta (1954), Vittorio De Sica, Ladrões de Bicicleta (1948) e Orson Welles, Cidadão Kane (1941). Quase todos, como se vê, forjados em bases estéticas modernas.

Eis que me chama a atenção a ausência de Pasolini, cujo centenário de nascimento se comemora este ano.

Poeta, ensaísta, pintor, romancista e cineasta, Pier Paolo Pasolini foi também um dos maiores intelectuais italianos do século 20, tendo se notabilizado pela vastidão e densidade de uma obra marcada por um forte compromisso social. Marxista, mas assumidamente identificado com as ideias professadas pelo compatriota Antônio Gramsci, que professava a necessidade de engajamento de artistas na luta pelos direitos do homem, fez do ideário esquerdista arma contra o fascismo e a ascética burguesia italiana.

No campo artístico, Pasolini transitou, com naturalidade, do sagrado ao profano; bebeu nas fontes do classicismo sem jamais abrir mão de uma clara vocação transgressora no uso de diferentes linguagens. Como cineasta, para retomar o foco desta singela homenagem, foi ao limite máximo do experimentalismo, nunca, no entanto, optando por aventuras criativas destituídas de rigor formal. Antes pelo contrário, sua cinematografia está pontuada por obras de fino trato estilístico, nas quais sobressai o uso de recursos composicionais tomados de empréstimo das artes plásticas (a pintura, sobretudo). Alguns planos, enquanto unidades mínimas da narrativa cinematográfica, lembram pintores de renome, a exemplo de Giotto, Piero della Francesca e Mantegna.

Começa no cinema, todavia, pela habilidade de escritor, assinando roteiros e, indiretamente, atuando como codiretor. Mas ganharia visibilidade a partir de 1961, quando faz sua estreia com o filme Accattone, uma realização em que já se podem ver suas imensas qualidades criativas.

Ambientado na periferia de Roma, em meio a comunidades extremamente pobres, Accattone (é o nome do protagonista da película), é um filme denso, poético, fatalista, mas, acima de tudo, uma obra de cunho autoral, em que pesem as inegáveis influências do neorrealismo italiano, nomeadamente Rossellini e Lucchino Visconti.

Do ponto de vista da crítica mais tradicional, no entanto, Accattone não é inatacável esteticamente falando. Seus inúmeros defeitos, enquadramentos tecnicamente transgressores (primeiros planos frontais recorrentes), ritmo em descompasso com a densidade dramática da narrativa, panorâmicas demasiado lentas, travellings desnecessários etc., são hoje revisitados com olhos mais sensíveis às escolhas estéticas do cineasta. Não é muito dizer, pois, que fazem parte de uma concepção fílmica menos convencional e mais inovadora, constituindo por si mesmo elemento de uma estratégia narrativa original e inventiva. A prova disso, ressalte-se, é que o estilo aparentemente descuidado, não raro lembrando a precariedade de procedimentos amadores, seria retomado em filmes hoje considerados verdadeiras obras-primas do cinema moderno. É que Pasolini, incorrendo em algumas características formais típicas do neorrealismo, que repudiava quaisquer requintes de linguagem ou estetizações supérfluas, explorou essas características em outra chave estilística, emprestando-lhes uma força dramática muito próxima do épico, do grandioso, do mítico cinematográfico.

A cena do filme em que Accattone enfrenta o seu cunhado, numa briga que remete ao duro cotidiano de uma comunidade marginalizada de qualquer grande centro, é algo notável em termos cinematográficos. À agonia da personagem, golpeada de morte por alguém que lhe é tão próximo em termos sociais e familiares, se sobrepõem o coro final de Paixão segundo São Matheus, de Bach, como a misturar o humano ao divino, e reeditar, na morte de um homem do povo, o martírio de Jesus Cristo.

Mas a grande obra de Pier Paolo Pasolini viria a partir de 1962, com Mamma Roma. De sua vastíssima cinematografia, deve-se destacar, ainda, Teorema, O Evangelho segundo São Matheus, Decameron, Salò, Medéia, Os Contos de Canterbury e Édipo Rei.

No centenário de nascimento de Pier Paolo Pasolini, ver seus filmes e ler sua significativa obra literária é uma oportunidade de compreender as diferentes formas de lutar contra o fascismo e suas ameaças recorrentes.

Mas este é um outro aspecto de sua arte a que voltaremos depois.

P.S. Pasolini foi assassinado em 2 de novembro de 1975. As circunstâncias de seu assassinato ainda são desconhecidas.