quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Espetáculo kafkiano

Como discorreu Otto Maria Carpeaux, em ensaio notável, certos nomes têm a força de um enigma, e dizem sobre aquilo a que se referem muito mais do que sonha a nossa vã etimologia.

É o estudioso austríaco quem nos lembra, por exemplo, que o verbo boicotar vem do capitão inglês Boycott, um fazendeiro cujas práticas eram de tal modo assustadoras que seus empregados resolveram largá-lo na mais absoluta solidão, ou seja, boicotaram-no; do Marquês de Sade, afeito a torturar suas companheiras de sexo, veio o que se conhece hoje por "sadismo", assim como, na contramão, "masoquismo" se originou do frágil e tímido escritor Masoch, acostumado aos maus-tratos que lhe eram impostos.

E por aí vai. Do famoso hoteleiro Ritz, nasceram mundo afora, assim chamados, grandes hotéis, como se a palavra servisse para designar o 'estabelecimento onde se alugam quartos, com ou sem refeições', como aparece no Aurélio, que, por extensão, passou a definir livros volumosos.

Ontem, por coincidência, vi à distância, na rua em que moro, um incêndio de proporções "dantescas" num edifício residencial. E me veio Dante, o poeta italiano, adjetivar o que, aos meus olhos assustados, parecia gigantesco, grandioso, muito maior do que realmente foi. Felizmente.

Num país em que se bate continência para um pneu, se pede intervenção militar em nome da democracia, vendem-se e compram-se armas contra a violência, na falta de uma palavra que traduza com exatidão o que existe de esdrúxulo em tais delírios, ocorre-me o adjetivo "kafkiano", cujo significado não se pode explicar sem conhecer o que nos dizem, de Franz Kafka, contos e romances, espécies de alegorias ou parábolas com que o escritor tcheco narrou o que não se pode examinar à luz da plena saúde mental, o que foge aos limites da natureza humana, da realidade histórica, da lógica essencial das coisas.

Estamos todos vivendo um pesadelo "kafkiano", desses só comparáveis aos que vivem personagens das obras memoráveis de Kafka.

No conto A Metamorfose, seu texto mais conhecido, Gregor Samsa acorda certa manhã, depois de sonhos intranquilos, e vê-se transformado num inseto monstruoso; no romance O Processo, no dia em que completa 39 anos, Joseph K. é preso, levado ao Tribunal e condenado à morte sem saber que crime teria cometido; em O Castelo, o agrimensor K. chega a uma cidade à procura de trabalho, mas é impedido pelos moradores de exercer sua profissão, que o tratam com hostilidade e o condenam aos burocratas do castelo, submetido como o homem comum na luta pelo direito a um trabalho, a uma casa para morar, a um nome com que possa desfrutar de uma identidade. E assim, marcados pelo absurdo, acontece em cada um dos livros do "pai da literatura moderna", segundo assertiva de Jean-Paul Sartre.

Franz Kafka nasceu em Praga a 9 de julho de 1883. Seu pai, um judeu alemão, rico e austero, exerceu sobre a personalidade do futuro escritor uma influência quase maligna, levando-o a desenvolver uma personalidade doentia, cujo conflito projeta nas suas narrativas com uma força e um sentido inclassificável.

Há alguns anos, não muitos, percorri as ruas da Praga antiga, cenário de muitos de seus livros e de suas histórias a um só tempo inquietantes e belas, na tentativa de encontrar vestígios de sua vida atormentada. O castelo que dá nome ao romance existe, o cenário de O Processo existe, os bares que frequentou, estão lá, os lugares inomináveis, marcados do musgo verde, úmido e gelado de que estão cobertas as pedras do chão, estão lá. 

Em que pese a beleza estonteante da cidade, das mais encantadoras a que pude chegar, aos olhos do visitante, dá-se a ver a presença do homem solitário e triste, do ser humano que foi capaz de entender e comunicar, pelo milagre de sua arte dialeticamente real e fantástica, o incomunicável, o inexplicável, o absurdo, o estranho, o burocraticamente tortuoso e apavorante de um mundo sem lógica e sem racionalidade.

No Brasil, pois, à frente dos quartéis, assiste-se a um espetáculo kafkiano.

 

 

 

 

 

2 comentários:

  1. Perfeita a adjetivação para esse momento de insanidade coletiva e, tanto quanto a obra do escritor de Praga, de fantástico fenômeno de ilusão fanática, tão irreal quanto perigosa.

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  2. Posso dizer, sem medo de ser mal intrrpretado, este é um dos seus melhores textos e explico: os acontecimentos exdrúxulos a que somos obrigados assistir dizem tudo isso e até poder-se-ia ir além, de sorte que tal leitura e intertextualidsde dos fatos lhe deram a leveza do texto, em pese a crueza dos fatos.

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