quinta-feira, 27 de abril de 2023

Chico e a Revolução dos Cravos

Foi bonita a festa, pá/Fiquei contente/Ainda guardo renitente/Um velho cravo para mim//Já murcharam tua festa, pá/Mas certamente/Esqueceram uma semente/Em algum canto de jardim//Sei que há léguas a nos separar/Tanto mar, tanto mar/Sei também quanto é preciso, pá/Navegar, navegar//Canta a primavera, pá//Cá estou carente/Manda novamente/Algum cheirinho de alecrim.

Maior artista brasileiro vivo, Chico Buarque pôde finalmente ter em mãos o prêmio Camões de Literatura. Orgulho brasileiro, e reconhecido além-fronteiras pela genialidade do seu talento, o compositor, letrista, cantor, dramaturgo e romancista recebeu das mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva o diploma da premiação que o ex-presidente JB, inimigo figadal da cultura, se negara assinar. Emocionado, Chico ouviu atentamente o que dizia Lula em seu pronunciamento: "Não podemos esquecer que o obscurantismo e a negação das artes também foram uma marca do totalitarismo e das ditaduras que censuraram o próprio Chico no Brasil e em Portugal".

No dia seguinte, Lula fez pronunciamento no Parlamento português a propósito da data que festejava os 49 anos da Revolução dos Cravos. Em "Quase Romance", meu último livro, faço um "blend" ficcional-realista do acontecimento.

"Ironicamente, Ana deixara Portugal às vésperas da derrubada do governo salazarista de Marcello Caetano, ocorrida em 25 de abril de 1974. Por curioso, mais que os revolucionários que punham por terra o regime de inspiração fascista, conhecido como Estado Novo, vigente desde 1933, uma mulher simples, uma humilde empregada de um restaurante da rua Braancamp, que tantas vezes Ana visitara ao lado de Linda, entraria para a história: Celeste Martins Caeiro, era o seu nome. O bar, chamava-se "Franjinha" e fora inaugurado havia exatos doze meses. Para comemorar a data, a gerência decidira comprar uma grande quantidade de cravos vermelhos e brancos para distribuir com as clientes. Aos homens, num gesto de cortesia, seria servido um Porto.

Em face da grande mobilização popular que tomava conta das imediações do "Franjinha", a gerência do restaurante resolvera manter suas portas fechadas. O que fazer, todavia, com tantos cravos? "Leve-os para casa!", disse, na véspera, Isabel Falcão, a gerente, dirigindo-se aos empregados do restaurante.

Abraçada a um molho de cravos vermelhos, Celeste tomou o metrô a caminho do Rossio, deparando, ao descer, nas proximidades do cubículo em que morava com a mãe e uma filha, no Chiado, com os tanques revolucionários. Aproximando-se de um deles, pergunta ao soldado o que se passa ali, ao que ele responde: "Vamos para o Carmo, derrubar Marcello Caetano. Isso é uma revolução!".

Pede a Celeste um cigarro. Como não fumasse, ela oferta-lhe um cravo. Não tendo outra forma como reagir ao gesto doce da mulher, o soldado coloca o cravo no cano do fuzil. Celeste os ofereceu, em seguida, a outros soldados, que também os colocaram na ponta de suas armas. Os outros empregados do "Franjinha" que ali se encontravam, passaram a distribuir os seus cravos também.

Em poucos minutos, eram centenas de fuzis ornamentados com as flores com que se pretendia tão-somente comemorar o primeiro aniversário de um restaurante.

Era a Revolução dos Cravos".

                                                               (Quase Romance, Editora Sarau das Letras, 2021)

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 20 de abril de 2023

O amor não é necessário

Esta semana dei-me a rever filmes de Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni, dois dos gênios da sétima arte. Eram meus cineastas preferidos, supostamente pelas razões que, na perspectiva de cinéfilos da atualidade, os tornavam "chatos" e "monótonos": a valorização do texto; a profundidade da abordagem dos grandes conflitos humanos; a exploração do tema da incomunicabilidade, aliados, obviamente, a um rigor estético que fez dos dois realizadores casos à parte na história do cinema. Não esquecendo, claro, a irretocável direção de atores, emblematicamente conduzidos em filmes memoráveis como Eclipse, de Antonioni, e Cenas de um Casamento, de Ingmar Bergman. Deste, revi por último, em DVD, exatamente Cenas de um Casamento, com atuações notáveis de Erlan Josephson e Liv Ullmann.

Saudosismo à parte, considero que não se fazem mais filmes como antigamente. É rever e constatar, que me perdoem os que aplaudiram à exaustão Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, vencedor de sete estatuetas do Oscar 2023 --- longe das expectativas deste velho amante do cinema.

Voltemos a Cenas de um Casamento. Na linha do que fizeram à perfeição Antonioni e Roberto Rossellini, o filme narra a história de Marianne e Johan, cuja vida de casados parecia exemplar, até que o segundo arranjasse uma amante e a vida se tornasse um verdadeiro inferno na vida do casal. Tudo num ritmo lento, suave, e numa dicção tensionada com que Bergman expõe as feridas do relacionamento. Jogo de idas e vindas, de altos e baixos, de contradições surpreendentes, de passionalidades desenfreadas como é comum quando homem e mulher decidem pela vida a dois. Sem idealizações, sem panos mornos na chaga aberta, sem virar o rosto para o lado doloroso da vida.

O filme, sabe-se, como a tornar evidente as projeções freudianas do cineasta sueco na trajetória dramática percorrida pelas personagens, teria continuidade em outra obra-prima de Bergman, Sarabanda, de 2003, em que Marianne e Johan se reencontram trinta anos depois da separação. Para a realização desse projeto, não à toa o diretor convidaria para interpretar Marianne a atriz Liv Ullmann, ex-mulher e, por longo tempo, objeto de sua paixão doentia, segundo revelaria em livro a própria atriz. É curiosa a forma como Liv Ullmann descreve momentos da filmagem de Sarabanda: "Como o filme foi feito com câmera digital, Ingmar ficava longe da câmera, olhando no monitor num canto do estúdio. Nos filmes antigos ele estava sempre perto dos atores e eu sentia que ele era o meu melhor espectador. Mas, apesar da distância, nós conseguimos estabelecer uma comunicação. Era como se a gente se comunicasse novamente por sinais de fumaça".

Mas é de Cenas de um Casamento que estamos falando.

Além de uma prodigiosa obra-prima, o filme resulta numa estetização do debate sobre o amor em toda a sua complexidade, tal qual o conhecemos na vida de todos os casais. Numa das cenas mais belas da película, Marianne recebe em casa uma entrevistadora que produz uma matéria sobre relacionamentos e tenta definir para ela o que é o amor: "... ninguém nunca me disse o que é o amor. E não tenho certeza se precisamos saber. Mas se quiser uma descrição detalhada, veja na Bíblia. Lá, Paulo descreve o amor. O problema é que sua descrição nos coloca em xeque. Se Paulo estiver certo sobre o amor, ele é tão raro que ninguém o vivencia. Mas, em discursos de casamento e outras ocasiões especiais, funciona muito bem. Acho que basta ser gentil àqueles com quem vivemos. Afeto também é bom. Humor, amizade, tolerância. Ter expectativas sensatas. Tendo isso, o amor não é necessário".

Bergman a nos ensinar que o simples e profundo podem caminhar juntos. Que grande artista.

 

 

quinta-feira, 6 de abril de 2023

100 dias de civilidade

Na perspectiva dos grandes jornais brasileiros, Folha de S. Paulo e O Estadão à frente, só muito raramente lemos artigos que valem por um Manual de Redação inteiro. É exemplo do que se afirma aqui o belíssimo texto assinado pelo professor de direito constitucional da USP, Conrado Hübner Mendes, publicado na edição de hoje da Folha e intitulado "100 dias de civilidade". A objetividade do título, por óbvio, remete a um apanhado, em grande estilo, do que foram os cem primeiros dias do governo Lula 3. Mas não se trata de apenas arrolar o que houve de mais significativo durante esse período e apresentar um olhar sensível aos desafios e erros, mas, sim, de levantar uma reflexão acurada de como se comporta o jornalismo brasileiro diante da realidade política do país nesses pouco mais de três meses do novo governo.

Já de início, num parágrafo digno de um escritor elegante e atento como se demonstra ser o professor Hübner Mendes, seu artigo prepara o terreno para o que reputo o melhor dos textos até aqui produzidos neste começo de ano: "A erosão democrática precisa da nossa preguiça. Precisa de nossos juízos apressados, nossas comparações do incomparável, nossos vícios de perspectiva, nossos erros de categoria e de análise. Precisa de memória atrofiada, de curto e de longo prazo."

E vem o segundo parágrafo, expressivo na forma e denso no conteúdo, situando o leitor diante do que vai constituir o esteio do artigo: O programa de autocratização de Bolsonaro pediu que confiássemos no "risco zero" da democracia e na promessa de que esse regime "modera" sociopatas. Pediu que os Poderes "dialogassem" dentro das "quatro linhas" sob "moderação" das Forças Armadas.

Atentando-se para a interlocução que sabe à perfeição estabelecer com o contraditório, evidenciada pelo uso reiterado das aspas, o articulista chama para os grandes jornais o que se deve compreender como um enrustido sentimento de cumplicidade com os desmandos do governo passado, o que se textualiza na explícita utilização de eufemismos também aqui destacados pelo uso de aspas: Jornais hesitaram em usar palavras certas para reportar o que viam. Extremistas eram "manifestantes", mentir equivalia a "declarar", delinquência se parecia com "polêmica", violação passava por "excesso", crime por "controvérsia jurídica".

O golpe certeiro estava por vir no quarto parágrafo: Tentaram assegurar voz ao "outro lado", mesmo que esse lado fosse imune à experiência sensorial da Terra redonda e do vírus, ou à experiência moral da violência e da indignidade radical. Tudo em nome de um pluralismo às cegas que vai corroendo as condições de possibilidade do próprio pluralismo. De uma tolerância sem critério que vai exaurindo a sustentabilidade da tolerância.

O melhor, pois que mais abrangente na perspectiva da crítica formalizada com seu artigo notável, Hübner ainda nos reservaria no quinto parágrafo, indo para além do mero jornalismo institucional para os que, valendo-se dos jornais, emitem juízos escancaradamente comprometidos com o ideário liberal e o reacionarismo partidário: Os três meses de governo Lula já nos deram amostras do que a análise política pode fazer. Lula faz críticas ao Banco Central. Aparece o economista e contrasta com as ameaças feitas por Bolsonaro ao STF. Lula especula, de modo pouco responsável, armação do juiz que o condenou ilegalmente à cadeia. Aparece o texto para gritar que "se iguala ao pior do bolsonarismo e suas teorias da conspiração". Governo Lula patina no trato com o Congresso. Está "sem rumo, sem agenda".

Em parágrafo incontrastável, a se manter com os argumentos um mínimo de decência enquanto leitor, há que se curvar ao que diz o texto de Hübner Mendes: Nesses três meses o governo federal voltou a cumprir decisões judiciais que vinham sendo ignoradas por Bolsonaro (terras indígenas, por exemplo). Cumpriu a lei e implantou programa de dignidade menstrual, ignorado pelo anterior. Revogou decreto de armas. Produz normas para combater o garimpo ilegal e o tráfico de ouro. A sociedade civil tem sido recebida em ministérios. A ciência, a docência e a cultura voltam a experimentar liberdade e recursos.

E o texto segue, consistente e incisivo, dando realce às diferenças entre Lula e Bolsonaro, até aqui desavergonhadamente encobertas pela prática jornalística dos grandes matutinos: Melhor começar a perceber as diferenças comensuráveis e incomensuráveis com os últimos quatro anos. Melhor refinar a escala de indicadores, porque a ligeireza das comparações custa caro.

Extremamente bem escrito, no plano da expressão e do conteúdo, o artigo do professor Conrado Hübner Mendes constitui uma aula de jornalismo, ainda que seu autor não o exerça profissionalmente, o que mais ainda confere ao texto dignidade e brilhantismo que há muito parecem estar ausentes da prática editorial dos grandes jornais.

A forma como desfecha o artigo, pela densidade e clareza do argumento, elementos indispensáveis a um texto de análise que se possa tomar como exemplo, torna a sua leitura um momento único no jornalismo dos dias atuais: O resgate da civilidade e da normalidade possíveis, nesses cem dias, e o esforço de reocupar com competência burocrática um Estado vandalizado pela delinquência autocrática, não podem ficar de fora de qualquer balanço.

À maneira de Horácio, ler o artigo de Conrado Hübner Mendes é uma experiência que a um só tempo ensina e deleita. E faz pesar, por certo, a consciência jornalística brasileira.