quinta-feira, 6 de abril de 2023

100 dias de civilidade

Na perspectiva dos grandes jornais brasileiros, Folha de S. Paulo e O Estadão à frente, só muito raramente lemos artigos que valem por um Manual de Redação inteiro. É exemplo do que se afirma aqui o belíssimo texto assinado pelo professor de direito constitucional da USP, Conrado Hübner Mendes, publicado na edição de hoje da Folha e intitulado "100 dias de civilidade". A objetividade do título, por óbvio, remete a um apanhado, em grande estilo, do que foram os cem primeiros dias do governo Lula 3. Mas não se trata de apenas arrolar o que houve de mais significativo durante esse período e apresentar um olhar sensível aos desafios e erros, mas, sim, de levantar uma reflexão acurada de como se comporta o jornalismo brasileiro diante da realidade política do país nesses pouco mais de três meses do novo governo.

Já de início, num parágrafo digno de um escritor elegante e atento como se demonstra ser o professor Hübner Mendes, seu artigo prepara o terreno para o que reputo o melhor dos textos até aqui produzidos neste começo de ano: "A erosão democrática precisa da nossa preguiça. Precisa de nossos juízos apressados, nossas comparações do incomparável, nossos vícios de perspectiva, nossos erros de categoria e de análise. Precisa de memória atrofiada, de curto e de longo prazo."

E vem o segundo parágrafo, expressivo na forma e denso no conteúdo, situando o leitor diante do que vai constituir o esteio do artigo: O programa de autocratização de Bolsonaro pediu que confiássemos no "risco zero" da democracia e na promessa de que esse regime "modera" sociopatas. Pediu que os Poderes "dialogassem" dentro das "quatro linhas" sob "moderação" das Forças Armadas.

Atentando-se para a interlocução que sabe à perfeição estabelecer com o contraditório, evidenciada pelo uso reiterado das aspas, o articulista chama para os grandes jornais o que se deve compreender como um enrustido sentimento de cumplicidade com os desmandos do governo passado, o que se textualiza na explícita utilização de eufemismos também aqui destacados pelo uso de aspas: Jornais hesitaram em usar palavras certas para reportar o que viam. Extremistas eram "manifestantes", mentir equivalia a "declarar", delinquência se parecia com "polêmica", violação passava por "excesso", crime por "controvérsia jurídica".

O golpe certeiro estava por vir no quarto parágrafo: Tentaram assegurar voz ao "outro lado", mesmo que esse lado fosse imune à experiência sensorial da Terra redonda e do vírus, ou à experiência moral da violência e da indignidade radical. Tudo em nome de um pluralismo às cegas que vai corroendo as condições de possibilidade do próprio pluralismo. De uma tolerância sem critério que vai exaurindo a sustentabilidade da tolerância.

O melhor, pois que mais abrangente na perspectiva da crítica formalizada com seu artigo notável, Hübner ainda nos reservaria no quinto parágrafo, indo para além do mero jornalismo institucional para os que, valendo-se dos jornais, emitem juízos escancaradamente comprometidos com o ideário liberal e o reacionarismo partidário: Os três meses de governo Lula já nos deram amostras do que a análise política pode fazer. Lula faz críticas ao Banco Central. Aparece o economista e contrasta com as ameaças feitas por Bolsonaro ao STF. Lula especula, de modo pouco responsável, armação do juiz que o condenou ilegalmente à cadeia. Aparece o texto para gritar que "se iguala ao pior do bolsonarismo e suas teorias da conspiração". Governo Lula patina no trato com o Congresso. Está "sem rumo, sem agenda".

Em parágrafo incontrastável, a se manter com os argumentos um mínimo de decência enquanto leitor, há que se curvar ao que diz o texto de Hübner Mendes: Nesses três meses o governo federal voltou a cumprir decisões judiciais que vinham sendo ignoradas por Bolsonaro (terras indígenas, por exemplo). Cumpriu a lei e implantou programa de dignidade menstrual, ignorado pelo anterior. Revogou decreto de armas. Produz normas para combater o garimpo ilegal e o tráfico de ouro. A sociedade civil tem sido recebida em ministérios. A ciência, a docência e a cultura voltam a experimentar liberdade e recursos.

E o texto segue, consistente e incisivo, dando realce às diferenças entre Lula e Bolsonaro, até aqui desavergonhadamente encobertas pela prática jornalística dos grandes matutinos: Melhor começar a perceber as diferenças comensuráveis e incomensuráveis com os últimos quatro anos. Melhor refinar a escala de indicadores, porque a ligeireza das comparações custa caro.

Extremamente bem escrito, no plano da expressão e do conteúdo, o artigo do professor Conrado Hübner Mendes constitui uma aula de jornalismo, ainda que seu autor não o exerça profissionalmente, o que mais ainda confere ao texto dignidade e brilhantismo que há muito parecem estar ausentes da prática editorial dos grandes jornais.

A forma como desfecha o artigo, pela densidade e clareza do argumento, elementos indispensáveis a um texto de análise que se possa tomar como exemplo, torna a sua leitura um momento único no jornalismo dos dias atuais: O resgate da civilidade e da normalidade possíveis, nesses cem dias, e o esforço de reocupar com competência burocrática um Estado vandalizado pela delinquência autocrática, não podem ficar de fora de qualquer balanço.

À maneira de Horácio, ler o artigo de Conrado Hübner Mendes é uma experiência que a um só tempo ensina e deleita. E faz pesar, por certo, a consciência jornalística brasileira. 

  

 

 

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