terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Elis & Tom, 50 anos depois

Disponível em streaming o imperdível documentário musical "Elis & Tom: Só tinha de Ser com Você", montado a partir de uma série de gravações precariamente realizadas pelo cineasta e então empresário da cantora gaúcha, Roberto de Oliveira, entre fevereiro e março de 1974.*

O material, agora versado para 4K, com auxílio da IA, foi guardado por quase meio século, e é o único registro fílmico dos bastidores da gravação de um dos mais importantes discos da música popular brasileira (Elis & Tom, o disco, foi realizado nos estúdios da MGM, em Los Angeles, nos Estados Unidos).

O projeto, envolvendo dois monstros da MPB, um presente da Polygram para Elis, pelos dez anos de gravadora, só agora é tornado público em sua intimidade. Assim, o que se pensava resultado de uma parceria pautada pela cordialidade, foi um delicado processo de acomodação de forças conflitantes, não raro marcado por gestos e ações no mínimo indelicadas, o que, por pouco, não pôs a perder a memorável empreitada.

Sob este aspecto, por sinal, é digno de nota o que, para mim particularmente, serve para revelar um traço da personalidade até então desconhecido de Antonio Carlos Brasileiro Jobim --- o do artista arrogante e preconceituoso: arvorando-se do que de fato foi, um compositor de qualidades geniais, e do prestígio alcançado entre os americanos, Tom Jobim mostra-se visivelmente incomodado com o fato de Elis levar para Los Angeles o então marido César Camargo Mariano.

Sobre isso, é relevante que se destaque o primeiro diálogo entre os dois, claramente resumido em depoimento do próprio Mariano: ao indagar quem faria os arranjos do disco e ouvir de Elis que seria o marido, então com pouco mais de vinte anos e para ele desconhecido, Tom Jobim faz comentários de escancarado desapreço à figura do músico paulista: "Quem, ele?"

Segundo Camargo Mariano, segue-se a essa pergunta uma série de declarações de desapreço pessoal e descrença em suas reais possibilidades artísticas.

Aos poucos, ao ver que estava diante de um músico competente, criativo e de excelente formação técnica, qualidades demonstradas por César Camargo Mariano à frente do teclado, Tom Jobim vai cedendo, mas a convivência jamais chegaria a ser algo mais que respeitosa.

É deselegante, para destacar outra passagem do documentário, como Tom Jobim reage à reconhecida simplicidade do músico paulista ao referir-se ao piano acústico como "piano de pau": "Vejam, este instrumento maravilhoso é chamado por ele de piano de pau" (cito de cor), assevera, com deboche, o compositor de "Águas de Março".

Esses fatos, que acrescentam uma pitada a um só tempo engraçada e surpreendente ao filme, sob qualquer aspecto, no entanto, empobrecem a beleza final do trabalho. Antes pelo contrário, uma vez que servem para realçar a importância do registro da produção de um disco absolutamente incontornável.

O documentário é inquestionavelmente um sério candidato a melhor do ano, e traz para os amantes da MPB os bastidores de um clássico irretocável: as brigas e situações impensáveis que a câmera de Roberto Oliveira expõe, portanto, são fatos prosaicos e pouco significativos em face do processo musical propriamente dito.

Revelando-se à vontade, superada a tensão dos primeiros momentos, Elis Regina agiganta-se em interpretações irretocáveis, a que se somam o dedilhar delicado do violão e os falsetes desconcertantes de Tom Jobim, numa pegada que transita do improviso jazzístico ao ritmo adocicado da melhor e mais autêntica bossa-nova.

Em rápidas palavras, é o que se pode ver nesse belíssimo "Elis e Tom: Só Tinha de Ser com Você", mesmo em canções aleatórias cantadas pelos dois e que não constam do disco. A essa altura, a convivência entre eles, inclusive César Camargo Mariano, já era descontraída, em que pese o nítido desconforto deste com os recorrentes abraços e beijos da mulher em Tom Jobim ao final de cada interpretação. André Midani, diretor da Polygram, em depoimento, diz tratar-se de ciúme. Mas, combinemos, é coisa de resto desimportante quando se tem a oportunidade de apreciar o que o filme realmente é: uma experiência estética rara, perfeita, definitiva. Recomendo.

*Oliveira usou uma câmera de 45 milímetros.

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Livros, listas e indicações

O crítico literário, poeta e cronista paraibano Hildeberto Barbosa Filho, no seu belíssimo "Da volúpia do erro", revela ter hesitado em tornar pública a sua lista de melhores livros de 2023. Vai além, amparando-se na sua fina compreensão do que existe de subjetivo nelas, a propósito do que leva a efeito, como lhe é próprio ao lidar com o objeto artístico, uma consistente reflexão em torno de suas peculiaridades: "A vida, como aquele esplêndido poema almejado por Valéry, nada mais é que a estranha hesitação entre o som e o sentido. [...] Para mim é simplesmente impossível enumerar meus títulos e meus autores." E desfecha, certeiro: ... ler é viver dentro do mistério e do milagre das coisas".

Esta, a razão por que, dizendo-se afeito às listas, desaconselha fazê-lo em relação aos livros. Com efeito, é sempre arriscado fazer escolhas num universo tão amplo e tão complexo, a envolver gosto e subjetivações de toda ordem, influências inconscientemente sofridas, inter-relações de natureza ambiental e política etc. Do alto de sua competência intelectual e de sua invulgar sensibilidade para tratar com a palavra e, de modo especial, com a linguagem artística que a toma como matéria-prima, Barbosa, como bom horaciano, ensina e deleita com seus textos a um só tempo prenhes de conhecimento e domínio técnico da matéria, mas sobretudo carregados de aguçado sentimento estético. De beleza, diga-se, em estado mais puro e pleno.

De outro lado, e em direção contrária, não menos dotado do mesmo talento e da mesma singular capacidade de fazer da palavra um envolvente e belo brinquedo (e instrumento de luta), acena-me o ficcionista e poeta de Licânia, um certo Clauder Arcanjo, a quem cearenses e norte-rio-grandenses, nordestinos e brasileiros em escala mais ampla, devemos exemplos incontestes da melhor literatura: "Mestre Alder (é assim que me trata), cadê sua lista dos melhores livros de 2023?" Diz isso entre um gole e outro de café, enquanto desfrutamos, na companhia do sempre elegante Galileu Viana, dos aprazíveis espaços da Livraria Cultura, no Rio Mar, pondo em dia descobertas e deslumbres da alta literatura do Brasil e do mundo.

Pobre mortal, assim meio que sem lugar para colocar as mãos, vejo-me eu entre a cruz e a espada, na obrigação de me definir pelo silêncio e pela lúcida omissão, à maneira de Hildeberto Barbosa Filho, professoral e intenso, ou pela revelação dos livros que li e recomendo, como provoca, gentil e matreiro, Clauder Arcanjo.

Leitor compulsivo, desses que gostam de dar vazão às suas inquietações literárias, "como se ler tivesse (e tem) o peso da respiração", nas palavras do próprio poeta da Paraíba, opto por atender ao que me pede Arcanjo, a quem observo ir além da mera avaliação das qualidades de forma e conteúdo dos livros recomendados, em favor do que, nesses livros, arrebatou-me pela força estética em termos rigorosamente humanos. Digo melhor: o que me proporcionaram de mais profundo e mais tocante como lição de vida, como exercício de sabedoria que, em alguma medida, tenham me feito melhorar como homem ao final da leitura. Vou a dois deles.

"O que é meu", de José Henrique Bortoluci. Ensaio biográfico, sensível e emocionante, com que o autor, em sua estreia como escritor, traça um perfil profundamente humano da figura paterna, um homem simples, motorista de caminhão, na difícil luta contra um câncer incontrolável. A partir de uma série de entrevistas com o pai, Bortoluci, como se tirando leite de pedra, realiza uma leitura de rara amplitude sobre a realidade do país.

"É a Ales", de Jon Fosse. Romance calcado numa experiência surreal da personagem Signe. Deitada em um banco, ela vê a si mesma diante de uma janela, voltada para o Fiorde em que seu marido fora a passeio para nunca mais voltar. Numa prosa desconcertante, com perfumes joyceanos, Fosse narra a hipnótica e alucinante angústia da personagem diante do que existe de mais doloroso na experiência da perda, do sofrimento humano elevado a dimensões desconhecidas. Publicado em 2004, mas só ano passado traduzido para o português, é obra aclamada na Europa, e seu autor ganhador do Nobel de Literatura em 2023. Um livro que traz para o leitor uma intensa lição de vida, de humanidade e de amor ao outro. Obra-prima, mas desafiadora para os não familiarizados com um tipo de narrativa desobediente aos preceitos normativos da língua, mesmo em sua tradução para o português.

Por limitação de espaço, volto sobre o assunto em colunas futuras.

 

 

 

 

 

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Começo e fim de um sonho

No Lava Jato (não confundir com a Lava Jato, aquela que teve um canalha à frente), reencontro com o amigo Francisco Alberto Moreno, o Bertinho, que me lembra torcer pelo Botafogo em minha homenagem. De fato, faz isso uns bons cinquenta anos, desde os tempos de adolescentes em Iguatu.

A conversa rola solta, enquanto nossos carros tomam a ducha merecida. Eis que ocorre ao meu amigo relembrar de um fato curioso, que, à época, só aos contemporâneos da terrinha chegou em forma de boa notícia: "Totonho (era como me chamavam) fará teste na escolinha do Botafogo". E o fiz, o primeiro, que eram dois os testes a que os pretendentes tínhamos de nos submeter. Guardo comigo, ainda hoje, como tudo aconteceu. Pasmem.

Era uma manhã quente do Rio de Janeiro em inícios de 1973. Fora à Cidade Maravilhosa a fim de fazer uma operação plástica (em realidade, algumas), ano e pouco depois de sofrer um acidente que quase me tirara a vida.

Acidente com fogo, grave, de que restam mais de meio século depois algumas cicatrizes. Mas não vou voltar ao ocorrido, que não se brinca com traumas, grandes ou pequenos, mesmo quando superados por força do tempo e das circunstâncias --- assim de repente, sem que se perceba em que ritmo ou de que maneira, obra de Deus e dos santos (o Menino de Praga à frente), a imagem obsessiva se desmancha, e os olhos voltam a enxergar a beleza do horizonte. Mas voltemos a General Severiano.

Pois bem. Chego ao estádio do Glorioso por volta das 8, o coração aos pulos. Era tanto o despreparo, e tamanha a emoção, que só minutos antes de entrar em campo dei pelo meu despreparo: não levara chuteiras, e o calção tive de tomar emprestado.

Eis que aparece um anjo protetor e me atira, meio generoso e meio indelicado, um par de "gaetas" amarfanhado. Pior: se eu calçava então 37, 38 no máximo, a "salvadora" andava pelos 41, no mínimo. Nada não, pensei com meus cadarços: "Nilton Santos sempre atuou com dois números acima de sua medida, e é verdade. Dizia ser mais adequado para tratar com carinho a pelota, dar-lhe o jeito garboso e suave do aboluto domínio. Enciclopédia.

Em princípio, em meio a pelo menos 25 ou 30 garotos, postos em fila indiana, rola em minha direção, vinda de não sei onde e nem por que razão, uma bola, a saltar irrequieta sobre a grama maltratada. Era método deles surpreender covardemente o candidato.

Como que por milagre do Jesus Cristinho de que nos falou Bandeira, o poeta, o pé direito, atrevido e mais calmo agora, dá na esfera, por baixo, o minúsculo toque, ao que atende, submissa, como se diante de um craque.

Ocorreu-me lembrar do campinho da Lagoa da Telha, onde eu dera, no futebol, os primeiros passos, enquanto ela, a bola traiçoeira, dançava solene e doce, na coxa, no peito do pé, no próprio, onde mora o coração.

Eis que a uma pequena distância, alguém, que pelo tom autoritário da voz me pareceu ser o técnico, faz com a mão um comando: "Passa pr'ali, menino!" Eu fora selecionado.

Agora faltava o segundo teste, na quarta-feira seguinte, uma semana depois. É claro que muita água haveria de correr por debaixo da ponte, que deem um desconto ao chavão. É só uma parte da história.

Chego em casa (eu era hóspede do médico e primo Italo Barros Costa), ali na Epitácio Pessoa, Jardim de Alá, em Ipanema, e vem a notícia que põe por terra o meu sonho: "Está preparado? Você será operado amanhã bem cedo!"

Trouxe comigo as fotos, para guardar de lembrança e mostrar aos amigos. Assim, na contramão do desejo, o mais indomável e mais doce de todos os desejos do menino que fui, fez-se do sonho realidade, do improvável meio-campo estiloso, o professor de Arte.

Não fosse de Nelson Rodrigues a frase, bem que poderia ser minha: a vida, a vida como ela é.