quinta-feira, 29 de agosto de 2024

À mesa de um restaurante

São de Chico Buarque os versos sublimes: "Oh pedaço de mim/Oh metade arrancada de mim/Leva o teu olhar/Que a saudade é o pior tormento/É pior que o esquecimento/É pior do que se entrevar//Oh pedaço de mim/Oh metade exilada de mim/Leva os teus sinais/Que a saudade dói como um barco/Que aos poucos descreve um arco/E evita atracar no cais".

Dia desses, num restaurante, estando próximo à mesa em que conversava um casal, ouço a frase impiedosa: "Ela gosta de sofrer, se não já tinha esquecido esse homem." Entre invasivo e inoportuno, falei com meus botões: "Aí está alguém que nunca sofreu por amor. É isso. Há dores que precisam ser curtidas, do contrário jamais desaparecerão.

A dor de um amor que termina é um desses casos. É como a dor das grandes perdas, como a dor pela morte do amigo querido, do parente próximo, é como o aperto no peito quando a cadeira de balanço --- vazia --- lembra o pai que se foi.

Rosa Monteiro, citando o escritor Alejandro Gándara, diz, em "A louca da casa": "Amar apaixonadamente uma pessoa sem ser correspondido é que nem estar num barco e enjoar: você pensa que vai morrer, mas nos outros só provoca risadas."

E, no entanto, a dor que se sente é insuportável.

Todo fim de relacionamento, sobretudo daqueles que tiveram vida longa, é desconcertante. E não adianta insistir dizendo que "foi melhor assim", que "isso passa e logo vai aparecer alguém", que "o importante é amizade que ficou" etc., palavras e expressões que nada dizem para quem desaba abismo abaixo naquele instante.

Não há separação tão equilibrada que atenda à vontade dos dois. Um lado vai sair machucado, invariavelmente. E só quem já passou por uma situação assim é capaz de entender a extensão e a profundidade dessa dor.

A propósito, sobre a dor da perda, li certa vez uma crônica de Nelson Rodrigues que é mesmo uma pérola. Está em "O óbvio ululante", que tomo agora nas mãos. Nelson recebe o convite de um amigo para um almoço. Entre risadas, marcam o encontro para o dia seguinte. Ao meio-dia, estavam num restaurante. É aí que Nelson percebe que o amigo marcara o almoço como um pretexto para que o visse chorar, dilacerado de saudade do pai, que havia morrido. "Éramos amigos e fundamos naquela mesa a nossa solidão (a perfeita solidão há de ter pelo menos a presença numerosa de um amigo real!)".

O amigo lhe abria o coração: "A morte de meu pai... Nunca me recuperei." Nelson confessa ter sentido vontade de pedir-lhe: "Nem se recupere, nunca, nunca. Eis a nossa degradação, sofrer menos, menos, até esquecer".

As palavras não valem quando se afoga na dor das grandes perdas. A companhia silenciosa, a mão sobre o ombro, o afago sincero, valem muito. As palavras, não. Ainda que nascidas das melhores intenções, não valem. Toda grande perda vem acompanhada da pior das sentenças: "Nunca mais!" E é em nome dessa sentença que é preciso curtir a dor, que só o tempo será capaz de curar.

Também de Nelson Rodrigues é a sábia afirmação: "Os psiquiatras e os psicanalistas deviam-se incumbir dos que esquecem fácil." E lembra que estamos tão esquecidos de sofrer, que a dor nos parece, e cada vez mais, uma doença, quase uma loucura.

"Tão curto o amor e tão longo o esquecimento", ecoa o verso de Neruda.

Vindas da mesa ao lado, no cair daquela tarde, as palavras que me chegam aos ouvidos me fazem recordar o poeta chileno.

E como ignoram o que é perder alguém que se ama...

 

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Quase noite em Copacabana

A nossa verdadeira nacionalidade é a humanidade, são palavras de H. G. Wells, em "Uma breve história do mundo", se não me trai a memória. Trago-as comigo ao sentar diante do computador para escrever a coluna do jornal.
Era janeiro de 1996, quase noite em Copacabana. Tomávamos um chope, meu irmão Deusdedith, Sulene, minha esposa à época, e eu, num bar da Av. Atlântica, no Rio de Janeiro. De repente, em meio à agitação, visualizo, a coisa de cinco ou seis metros, em pé, na esquina, o antropólogo Darcy Ribeiro, uma das figuras humanas que mais admirei entre os grandes brasileiros.
Levanto-me e, meio que não querendo nada, aproximo-me desse homem de sobrancelhas espessas tal qual as cerdas bravas de um javali, como diria Nelson Rodrigues. Darcy alforriava o olhar pela imensidão do mar de Copacabana, deslumbrado como um turista que visitasse o Rio pela primeira vez.
Ao perceber a minha aproximação, com a elegância de um doge veneziano, Darcy Ribeiro cumprimenta-me, distinta, gentil e simpaticamente. Breve aperto de mão e dirige-me a palavra como a um velho conhecido. Pergunta-me de onde sou, se já estivera na cidade, se estou gostando…
Darcy Ribeiro era apaixonado pelo Rio, pude concluir da verdadeira declaração de amor que fez à Cidade Maravilhosa, tingindo de poesia a noite anunciada, mal trocamos as primeiras palavras.
Sabendo-me cearense, alude à beleza de nossas praias e cita, de cor, um longo trecho de Iracema, aquele em que o romancista exalta os "Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba. Verdes mares que brilhais como líquidas esmeraldas aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros. Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas." 
Pelos em festa, abraçamo-nos como dois amigos. E jamais nos havíamos visto antes.
O entusiasmo com que Darcy "recita" esses trechos do romance de José de Alencar impressiona-me, a expressão medida, a voz e os gestos em rigorosa harmonia. Só horas depois me ocorre lembrar que, tratando-se de um romance indianista e considerado o exemplar mais bem escrito da prosa de ficção romântica brasileira, e sendo o antropólogo um amante da causa indígena, a vibração do meu interlocutor era coisa natural, nascida da mais elevada consciência da verdadeira nacionalidade.
Darcy amava o Rio, dizia eu, há pouco, embora tenha nascido em Minas Gerais. Aliás, o autor do romance "Maíra" não era mineiro ou carioca. Era uma coisa e outra, mais que isso, Darcy Ribeiro era paulista, alagoano, cearense… Darcy Ribeiro era um País, um Continente.
Não me ocorre lembrar de outro brasileiro que tenha amado mais o Brasil, a que dedicou a força prodigiosa de sua inteligência e do seu trabalho. Vou mais longe: o autor de "O dilema brasileiro" e "Os índios e a civilização" carregava dentro de si uma nação pungente e vibrante. Um território sem fronteiras.
O nacionalismo de Darcy Ribeiro encerrava continentalidade. A América Latina era a sua Pátria e a sua paixão, a sua razão de viver.
Ao cabo de uns quinze, vinte minutos, Darcy estende-me a mão num gesto de despedida, não sem antes reafirmar seu carinho pelo Ceará. Há brilho nos seus olhos e firmeza na sua voz ligeiramente rouca, como se a entoar uma canção, de tão doce e terna. Havia em Darcy Ribeiro um tipo de encanto, de luminosidade.
Em Porto Alegre, algum tempo depois, vejo numa livraria o último livro que escreveu, "O povo brasileiro", bela interpretação de nossas origens, de nossa fundação e do cruzamento de raças que fez de nós um povo diferente. No hotel, li-o quase por inteiro numa noite, maravilhado.
Era assim Darcy Ribeiro. Seus textos traziam o traço forte e inconfundível dos escritores notáveis, a grandeza de um gigante, de um homem limpo, de um ser absolutamente iluminado.


quarta-feira, 14 de agosto de 2024

De fatos e memórias

Vez e outra, da pena hábil de Paulo Elpídio, leio os belos textos de memórias, vazados no estilo elegante e delicadamente poético com que ressignifica momentos de sua trajetória mundo afora. Diferentemente do autobiográfico, o texto memorialístico resulta da confluência do registro realista com o voo da subjetivação, não raro permitindo ao escritor, por isso mesmo, dar asas à imaginação.

É que recordar é trazer de volta ao coração, e os fatos trazidos cobrem-se do matiz saudosista que dá gosto e perfume à coisa vivida. Assopra-se a lembrança, afastando-se da cena guardada a poeira com que se deixou cobrir pelo passar do tempo. Esta é a razão por que, no mais das vezes, o texto autobiográfico ressente-se da literariedade, enquanto as memórias ganham a beleza da arte, porque predomina-lhe a função poética da linguagem em detrimento da referencial. Ocorre-me reviver, assim, no instante em que escrevo, na linha do que faz exemplarmente o amigo, algumas dessas recordações. E volta-me o tempo perdido, como a um Proust provinciano, vesgo e melancólico.

Montmartre é um dos bairros mais interessantes de Paris. Vejo-o de perto, ainda que da distância desses muitos anos.

No alto da colina, agiganta-se a belíssima Igreja Sacré-Coeur, à qual se chega enfrentando-se centenas de degraus ou tomando-se o lúdico bondinho que leva dos jardins ao adro da basílica.

Construída desde 1876, a igreja é uma homenagem dos franceses ao Sagrado Coração de Jesus, e consta que foi erigida em gratidão pelo fim da Guerra Franco-Prussiana, deflagrada oito anos antes. O certo é que esta, que é uma das mais visitadas atrações turísticas de Paris, é realmente bela, e adentrar seu interior é uma experiência mágica, incomunicável, sobretudo à noite, horário em que C., a socióloga Zaira Bueno, nossa anfitriã, seu filho e artista plástico Batista e eu, chegamos ao local.

Decorrido um par de horas, pouco mais ou menos, ainda fizemos fotos da plataforma da colina, de cujo alto vislumbra-se uma poética paisagem da noite parisiense. Perto dali, está o famoso Moulin Rouge e, nos arredores, um sem-número de casas noturnas dedicadas ao turismo sexual e imortalizadas por Toulouse-Lautrec e Edgar Degas.

Ao escrever estas memórias, chego a lembrar com uma saudade imensa dos pequenos detalhes, como a expressão facial de C. (mulher sempre além do seu tempo e pouco afeita a escandalizar-se com o que quer que fosse), a mão à boca, um sorriso entre tímido e assustado diante de uma vitrine em que se veem os mais inimagináveis instrumentos eróticos. E caímos todos numa sonora gargalhada, que, estou convicto, por um instante chama muito mais a atenção dos muitos turistas que ali se encontravam que o arsenal de chicotes, mulheres infláveis, pênis e vaginas espalhados por trás da vitrine.

Antes de visitarmos o Moulin Rouge, contudo, percorremos as ruas de Montmartre, eu emocionadíssimo por lembrar que ali estiveram um dia Théodore Géricault, Camile Corot e, mais tarde, alguns dos meus pintores preferidos, como Amedeo Modigliane, embora morasse ele em Montparnasse, um bairro também marcado pela presença de grandes artistas em seu tempo, que eu só visitaria alguns anos depois, noutra viagem à França.

Ali estive nos pequenos museus existentes, nos espaços culturais e, com particular entusiasmo, no Espace Montmartre Salvador Dalí, onde se veem algo em torno de duas centenas de trabalhos do pintor espanhol. Já à época a pintura me despertava interesse quase tanto quanto a literatura.

Fim de noite, exaustos das muitas caminhadas, voltamos para o apartamento de Zaira e ficamos por um longo tempo conversando sobre a viagem, até que, vencidos pelo sono, C. e eu nos entregássemos aos sonhos da memorável madrugada. Era fevereiro de 1978.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Greta Garbo, de Edmilson Caminha

De Brasília, por correio, chega-me às mãos o recém-lançado "Greta Garbo, quem diria, não morreu em Araxá", de Edmilson Caminha. O título é aproveitado de uma crônica do livro em que o autor, com apuro de linguagem e irretocável domínio da carpintaria textual, discorre sobre crônica de Carlos Drummond de Andrade, escrita por volta de 1954, na qual o escritor mineiro narra uma improvável visita da atriz Greta Garbo a Minas Gerais.

A crônica, à época, causou o maior frisson entre admiradores de Garbo, cuja beleza, para além dos padrões clássicos, Drummond descreve de forma hilariante: "Tem um corpo de tábua de passar roupa, depositado sobre dois pés enormes. [...] Um corpo que não recomenda nem pelo brilho dos olhos nem pela correção do nariz nem pela exiguidade da boca. Criatura seca, pobre de curvas, rica de ângulos, e seguramente sem nenhum desses predicados que caracterizam e dão preço às nossas belezas dos trópicos. Beleza, talvez, para os esquimós, se o belo para o esquimó não fosse uma autêntica esquimó, e não uma cavalheira comprida e trágica, mórbida, antipática e artificial [...]".

A atriz sueca, sabe-se, era objeto de desejo de nove entre dez cinéfilos, com atuações que a imortalizaram em pelo menos três ou quatro filmes inesquecíveis, a exemplo de Mata Hari, Grande Hotel, Ninotchka e, sobretudo, o soberbo Rainha Cristina, de cuja narrativa destaquei em crônica uma cena que considero das mais belas do cinema.

Desejada e belíssima, em que pese a ironia de Drummond, Greta encerraria sua carreira nos píncaros da glória, aos 36 anos, entregando-se a uma solidão esquizoide até morrer, em Nova York, em 1990. Nunca esteve no Brasil, e a crônica de Drummond, claro, não passava de uma irreverência do itabirano, afeito a estripulias pouco condizentes com o seu perfil psicológico tradicionalmente traçado pelos historiadores da literatura brasileira. Imprevisível, surpreendente como escritor e como homem, Carlos Drummond de Andrade esclareceria o ardil uma semana depois: "Eu menti". Apenas pregara uma peça nos leitores, como a elevar a crônica, gênero literário caracteristicamente adequado para as amenidades do cotidiano, ao status de grande literatura, aquela capaz de criar irrealidades como se realidades fossem.

Realizando um tipo de "mise en abyme"*, Edmilson Caminha curva-se sobre a crônica de Drummond para erigir, a partir dela, uma notável experiência de cronista, fazendo-o, como disse, da altura de um escritor absoluto, inventivo, capaz de extrair do hipotexto (o texto orginal) a matéria-prima de que lança mão para fazer metaliteratura de altíssima qualidade.

Profundo conhecedor da obra de Carlos Drummond de Andrade, de cuja reedição completa, pela Record, é o principal responsável, Caminha desfecha sua notável crônica com uma carta, da própria Greta Garbo, para Drummond, reportando-se ao fato.

A descoberta da existência do documento, por si só, vale um livro, já não fosse a escrita atribuída a atriz sueca uma página de valor literário inquestionável. Com a palavra o cronista: "Duas folhas de papel fino, cor-de-rosa, já manchadas pelo tempo, datilografadas sem rasuras, em que o destinatário como de costume anotou com sua letra pequena, acima do cabeçalho: Greta Garbo, s/r (sem resposta?)".

Consciente de como se deve desfechar uma boa crônica, arrematando-a com exatidão, vigor e poesia, Edmilson Caminha faz do elemento periférico, do componente marginal, o eixo artístico central de sua bela crônica, como se a nos dar uma aula sobre uma forma narrativa ao mesmo tempo simples e desafiadora. Promete manter em anonimato o nome da bibliotecária itabirana que lhe confiou a leitura da carta, bem como (pasmem!) tirar-lhe cópia para publicação: "Assim o farei", diz ele, como a tornar pública sua lealdade, "ao menos pelos próximos 25 anos, a exemplo do segredo guardado por Drummond..."

E nos dá a ler a missiva preciosa.

*Narrativa em abismo, termo usado pelo escritor francês André Gide para falar sobre as narrativas que contêm outras narrativas dentro de si. Consiste num processo de reflexividade literária, de duplicação especular.