Vez e outra, da pena hábil de Paulo Elpídio, leio os belos textos de memórias, vazados no estilo elegante e delicadamente poético com que ressignifica momentos de sua trajetória mundo afora. Diferentemente do autobiográfico, o texto memorialístico resulta da confluência do registro realista com o voo da subjetivação, não raro permitindo ao escritor, por isso mesmo, dar asas à imaginação.
É que recordar é trazer de volta ao coração, e os fatos trazidos cobrem-se do matiz saudosista que dá gosto e perfume à coisa vivida. Assopra-se a lembrança, afastando-se da cena guardada a poeira com que se deixou cobrir pelo passar do tempo. Esta é a razão por que, no mais das vezes, o texto autobiográfico ressente-se da literariedade, enquanto as memórias ganham a beleza da arte, porque predomina-lhe a função poética da linguagem em detrimento da referencial. Ocorre-me reviver, assim, no instante em que escrevo, na linha do que faz exemplarmente o amigo, algumas dessas recordações. E volta-me o tempo perdido, como a um Proust provinciano, vesgo e melancólico.
Montmartre é um dos bairros mais interessantes de Paris. Vejo-o de perto, ainda que da distância desses muitos anos.
No alto da colina, agiganta-se a belíssima Igreja Sacré-Coeur, à qual se chega enfrentando-se centenas de degraus ou tomando-se o lúdico bondinho que leva dos jardins ao adro da basílica.
Construída desde 1876, a igreja é uma homenagem dos franceses ao Sagrado Coração de Jesus, e consta que foi erigida em gratidão pelo fim da Guerra Franco-Prussiana, deflagrada oito anos antes. O certo é que esta, que é uma das mais visitadas atrações turísticas de Paris, é realmente bela, e adentrar seu interior é uma experiência mágica, incomunicável, sobretudo à noite, horário em que C., a socióloga Zaira Bueno, nossa anfitriã, seu filho e artista plástico Batista e eu, chegamos ao local.
Decorrido um par de horas, pouco mais ou menos, ainda fizemos fotos da plataforma da colina, de cujo alto vislumbra-se uma poética paisagem da noite parisiense. Perto dali, está o famoso Moulin Rouge e, nos arredores, um sem-número de casas noturnas dedicadas ao turismo sexual e imortalizadas por Toulouse-Lautrec e Edgar Degas.
Ao escrever estas memórias, chego a lembrar com uma saudade imensa dos pequenos detalhes, como a expressão facial de C. (mulher sempre além do seu tempo e pouco afeita a escandalizar-se com o que quer que fosse), a mão à boca, um sorriso entre tímido e assustado diante de uma vitrine em que se veem os mais inimagináveis instrumentos eróticos. E caímos todos numa sonora gargalhada, que, estou convicto, por um instante chama muito mais a atenção dos muitos turistas que ali se encontravam que o arsenal de chicotes, mulheres infláveis, pênis e vaginas espalhados por trás da vitrine.
Antes de visitarmos o Moulin Rouge, contudo, percorremos as ruas de Montmartre, eu emocionadíssimo por lembrar que ali estiveram um dia Théodore Géricault, Camile Corot e, mais tarde, alguns dos meus pintores preferidos, como Amedeo Modigliane, embora morasse ele em Montparnasse, um bairro também marcado pela presença de grandes artistas em seu tempo, que eu só visitaria alguns anos depois, noutra viagem à França.
Ali estive nos pequenos museus existentes, nos espaços culturais e, com particular entusiasmo, no Espace Montmartre Salvador Dalí, onde se veem algo em torno de duas centenas de trabalhos do pintor espanhol. Já à época a pintura me despertava interesse quase tanto quanto a literatura.
Fim de noite, exaustos das muitas caminhadas, voltamos para o apartamento de Zaira e ficamos por um longo tempo conversando sobre a viagem, até que, vencidos pelo sono, C. e eu nos entregássemos aos sonhos da memorável madrugada. Era fevereiro de 1978.
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