"Você me abre seus braços/ e a gente faz um país." Desde ontem, obsessivamente, tão logo soube da morte do poeta Antonio Cicero, ocorrem-me os versos desconcertantes de "Fullgás", poema que seria musicado por sua irmã Marina Lima, para entrar para a história da MPB como um hit incontornável. Não que se trate de versos talhados com os rigores da poesia tradicional, a dita grande poesia, mas pelo que encerram de profundo e simples ao mesmo tempo, numa construção frásica que toca no que existe de fundamental na poesia completa, aquela que salta do hedonismo mais íntimo ("Viva o prazer,/ o som/ o estrondo de uma onda na rebentação.") para alcançar a universalidade em suas nuances de crítica e crença na possibilidade de um mundo melhor.
Antonio Cicero, tanto quanto um Chico Buarque de Hollanda (sem intenções comparativas, por favor!), soube à perfeição unir campos de conhecimento distintos, indo além das classificações preconceituosas e dos reducionismos recorrentes nos meios literários. É que, tanto quanto a poesia e a filosofia, tradicionalmente tratadas como atividades distintas do ponto de vista teórico, o clássico e o popular têm sido vistos como inconciliáveis, quando menos por uma ensaística dominante até bem pouco tempo. Cicero dá demonstrações em contrário.
Poeta de larga formação humanística, quase sempre amparada em bases que remontam à Grécia Antiga, na linha do que professa a "paideia", Antonio Cicero transitou por diferentes esferas do conhecimento intelectual e artístico.
Escreveu sobre filosofia e filosofou, assim como publicou livros de poesia da mais alta qualidade, sem esquecer suas vitoriosas incursões pelo território da crítica literária, do ensaísmo acadêmico (entre eles, o conhecido "O Mundo Desde o Fim", há 15 anos) e de bem-sucedidas investidas no resgate do que fizeram os aedos na Antiguidade: a ligação intrínseca da poesia com a música. Foi além, e revelou-se um declamador de fina sensibilidade.
Participou ativamente da poesia dita marginal, fez parcerias com poetas de extração rigorosamente moderna, a exemplo de Waly Salomão, com quem realizou trabalhos que se tornariam referência para poetas, letristas e compositores das novas gerações. Mas, acima de tudo, escreveu poesia para além dos rótulos e das receitas, obra felizmente levada ao grande público na voz afinada e certeira da irmã Marina Lima.
Nessa perspectiva, pois, é que Antonio Cicero, por toda uma vida e agora quando nos deixou, merece todas as honras, como artista dotado de inclassificável talento, ao lado do que, mais ainda, segundo amigos e admiradores mais íntimos, deve-se registrar como uma marca de caráter: a nobreza das atitudes (de que o desfecho de sua vida é prova inconteste!), a elegância no trato com as pessoas e a correção moral que o distingue entre os grandes nomes da arte brasileira.
Ao tomar a decisão de partir com o que lhe restava de lucidez, impiedosamente comprometida pelos avanços da doença terrível*, Antonio Cicero entra para o rol dos artistas estoicos que preferem o silêncio ao desumano burburinho da demência e da velhice sem dignidade.
A exemplo do gênio da sétima arte, Jean-Luc Godard, que escolheu a mesma Suiça para cenário de sua última cena, Antonio Cicero revela-se ainda maior que a sua reconhecida imensidão.
Como um São Francisco desprovido de fé, pois se disse sempre agnóstico, mas com a beleza e dimensão de um santo ou de um pássaro digno de se guardar, como exaltou em poema célebre, morre para viver a eternidade em sua poesia imortal.
*Acometido de Alzheimer, Antonio Cicero, a exemplo de Godard, decidiu pela morte assistida na Suiça, onde o procedimento é reconhecido por lei. Tinha ao seu lado o marido Marcelo, e deixou uma carta em que, serenamente, assinala: "Como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade". Assim o fez.