quinta-feira, 24 de outubro de 2024

A morte como exercício poético

"Você me abre seus braços/ e a gente faz um país." Desde ontem, obsessivamente, tão logo soube da morte do poeta Antonio Cicero, ocorrem-me os versos desconcertantes de "Fullgás", poema que seria musicado por sua irmã Marina Lima, para entrar para a história da MPB como um hit incontornável. Não que se trate de versos talhados com os rigores da poesia tradicional, a dita grande poesia, mas pelo que encerram de profundo e simples ao mesmo tempo, numa construção frásica que toca no que existe de fundamental na poesia completa, aquela que salta do hedonismo mais íntimo ("Viva o prazer,/ o som/ o estrondo de uma onda na rebentação.") para alcançar a universalidade em suas nuances de crítica e crença na possibilidade de um mundo melhor.
Antonio Cicero, tanto quanto um Chico Buarque de Hollanda (sem intenções comparativas, por favor!), soube à perfeição unir campos de conhecimento distintos, indo além das classificações preconceituosas e dos reducionismos recorrentes nos meios literários. É que, tanto quanto a poesia e a filosofia, tradicionalmente tratadas como atividades distintas do ponto de vista teórico, o clássico e o popular têm sido vistos como inconciliáveis, quando menos por uma ensaística dominante até bem pouco tempo. Cicero dá demonstrações em contrário.
Poeta de larga formação humanística, quase sempre amparada em bases que remontam à Grécia Antiga, na linha do que professa a "paideia", Antonio Cicero transitou por diferentes esferas do conhecimento intelectual e artístico.
Escreveu sobre filosofia e filosofou, assim como publicou livros de poesia da mais alta qualidade, sem esquecer suas vitoriosas incursões pelo território da crítica literária, do ensaísmo acadêmico (entre eles, o conhecido "O Mundo Desde o Fim", há 15 anos) e de bem-sucedidas investidas no resgate do que fizeram os aedos na Antiguidade: a ligação intrínseca da poesia com a música. Foi além, e revelou-se um declamador de fina sensibilidade.
Participou ativamente da poesia dita marginal, fez parcerias com poetas de extração rigorosamente moderna, a exemplo de Waly Salomão, com quem realizou trabalhos que se tornariam referência para poetas, letristas e compositores das novas gerações. Mas, acima de tudo, escreveu poesia para além dos rótulos e das receitas, obra felizmente levada ao grande público na voz afinada e certeira da irmã Marina Lima.
Nessa perspectiva, pois, é que Antonio Cicero, por toda uma vida e agora quando nos deixou, merece todas as honras, como artista dotado de inclassificável talento, ao lado do que, mais ainda, segundo amigos e admiradores mais íntimos, deve-se registrar como uma marca de caráter: a nobreza das atitudes (de que o desfecho de sua vida é prova inconteste!), a elegância no trato com as pessoas e a correção moral que o distingue entre os grandes nomes da arte brasileira.
Ao tomar a decisão de partir com o que lhe restava de lucidez, impiedosamente comprometida pelos avanços da doença terrível*, Antonio Cicero entra para o rol dos artistas estoicos que preferem o silêncio ao desumano burburinho da demência e da velhice sem dignidade.
A exemplo do gênio da sétima arte, Jean-Luc Godard, que escolheu a mesma Suiça para cenário de sua última cena, Antonio Cicero revela-se ainda maior que a sua reconhecida imensidão.
Como um São Francisco desprovido de fé, pois se disse sempre agnóstico, mas com a beleza e dimensão de um santo ou de um pássaro digno de se guardar, como exaltou em poema célebre, morre para viver a eternidade em sua poesia imortal.  
 *Acometido de Alzheimer, Antonio Cicero, a exemplo de Godard, decidiu pela morte assistida na Suiça, onde o procedimento é reconhecido por lei. Tinha ao seu lado o marido Marcelo, e deixou uma carta em que, serenamente, assinala: "Como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade". Assim o fez.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

De onde nasce a crônica

Mal adentro o elevador e deparo com velho conhecido. Antes mesmo do aperto de mão, entre sorrisos largos, desfere-me a curiosa indagação: "Tenho lido suas crônicas. De onde você tira tanta ideia para escrevê-las?" (sic). Como descesse no andar abaixo, digo-lhe atender a sua curiosidade em texto eventual. E aqui estou.
A crônica nasce do inusitado, do transitório, do que, sendo efêmero, merece o registro do escritor. Não raro as escrevo ao volante, a caminho qualquer, na esteira da academia, na sala de espera do dentista ou enquanto me assumo flâneur pelas ruas da cidade. Esclareço, pois quando digo "as escrevo" refiro-me ao ato de traçá-las na mente, dando-lhe corpo inacabado que resultará concluso na forma escrita, quase sempre sentado diante do computador.
Comumente publicada em jornais ou revistas, e não raro reunida em livro, a crônica nasce de um acontecimento cotidiano, do surpreendente que assume relevância aos olhos do cronista, para ganhar outra dimensão, corporificando-se em linguagem literária híbrida, transitando do puro jornalismo de ocasião para a arte da palavra propriamente dita. Por isso, independentemente do formato e das intenções, assumindo a forma da alegoria, do diálogo, do artigo, da resenha, da confissão, do monólogo ou da conversa entre personagens, a crônica é sempre fiel à sua etimologia: do grego "krónos", tempo, mais annu(m), do latim, ano ou anais.
Não é brasileira, como professam aos quatro cantos, mas, provavelmente, francesa, ainda que tenha ganhado entre nós o condimento que a tornou mais saborosa e mais envolvente. Modernamente, pode-se afirmar, terá surgido no famigerado Journal des Débats, em Paris, por volta de 1800, através da pena de Jean Louis Geoffray.
No Brasil, Machado de Assis, em fins do século 19 e início do século 20, talhou-a com esmero, emprestando-lhe a densidade de que se ressentia e a beleza de um estilo que não mais se confunde com o mero jornalismo, pois que ganha o status de grande literatura e propaga-se através dos tempos.
E viriam Bilac, Lima Barreto, João do Rio, Humberto de Campos, Sérgio Porto, Antonio Maria, Raquel de Queirós, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Ferreira Gullar, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes e tantos e tantos outros, elevando a crônica brasileira a patamares inimagináveis.
Marcada pela subjetividade, quase sempre se reveste de poesia, mistura-se ao conto, ao poema em prosa, adornada pela adjetivação inventiva, alinhando-se à metáfora e à metonímia, sujeita aos caprichos da sensibilidade do escritor e à conveniência da imaginação.
Embora suscetível ao inesperado, à fugacidade da coisa inspiradora, a crônica pode alargar a noção de tempo e de espaço, ir para além do imediato que desencadeou no escritor a ideia do texto, suscitando novas possibilidades de expressão e novos desenhos da forma e do conteúdo, assumindo foros estéticos rigorosamente literários.
Tanto quanto na poesia, no conto, no romance, no roteiro de cinema ou na peça de teatro, a crônica rompe o delicado fio que separa a ficção da realidade, o referencial do conotativo, para deitar-se vitoriosa nas malhas do tecido artístico iventado.
Eis o que é a crônica, de onde ela nasce. Às vezes de um fato qualquer do cotidiano, da emoção estética advinda da cena presenciada, nasce do espanto e da alegria, do quadro na parede, da notícia no rádio, do casal de idosos que se desentende antes de atravessar a rua, do beijo doce dos namorados, da recordação que vem por força do perfume ou da música, da semelhança do nariz e da boca entre a desconhecida e a mulher amada, da saudade que insiste em voltar. Da curiosidade do conhecido com que deparamos ao adentrar o elevador.
  
 
 

terça-feira, 8 de outubro de 2024

A lição de Roberto e outras lições

Dono de um currículo pessoal que o diferencia, como advogado, executivo, empresário do ramo da agricultura e da pecuária, aos 42 anos Roberto Costa Filho vence a eleição para prefeito de Iguatu e faz história pelo exemplo de elegância, coragem e irrestrita correção com que se conduziu (e a seus liderados) durante uma campanha em que tentaram a todo custo desconstruir o inafastável referencial ético por que tomou a decisão de adentrar o mundo político e inaugurar um novo tempo na arte de governar a partir de sua cidade.
Como no verso antológico de Caetano Veloso, é que Narciso acha feio o que não é espelho, e seus adversários não suportaram deparar com um jeito de fazer política que não abre mão da verdade, da retidão e da coragem de perseguir objetivos sem tergiversar caminhos.
Reedita a lição do pai, Carlos Roberto Costa, e no calor da grande conquista, administra emoções, aplaca sentimentos ruins, aponta alternativas de ação contra velhos problemas, conclama adversários a trabalhar pelo desenvolvimento de sua cidade, no árduo intento de reconstruir o que está em ruínas.
Em pouco tempo, é evidente que não será uma unanimidade, mas, como ocorreu ao pai, morto no segundo ano de uma administração aclamada até mesmo por adversários, haverá de ocupar o posto de maior líder político de uma cidade golpeada pelo autoritarismo, pela violência e pelo desrespeito para com os homens de bem.
Nasce, no terreno da vida pública, já enorme, e, do alto de sua dignidade humana, porta com mãos firmes o estandarte da esperança e da confiança no porvir de uma cidade desfigurada pelo descaso, pela omissão e pela inversão de valores no trato da coisa pública.
Poucas vezes, é ponto pacífico, o destino administrativo da terceira e mais importante cidade do estado terá sido confiado a um homem tão exemplarmente preparado para o cargo.
Roberto Filho é profissional de altíssima qualificação técnica, um visionário no bom sentido da palavra, aquele que define o idealista, o ser capaz de nutrir o sonho de tempos melhores para todos, sobremaneira para os menos favorecidos de uma sociedade marcada por inaceitáveis contradições.
Alvo de leviandades inomináveis, objeto do ódio e da sanha, atacado pela covardia da desinformação, soube separar o joio do trigo sem vacilos e titubeios, invariavelmente pautando as estratégias de campanha pelo discernimento, pelo equilíbrio, pela sensatez,  como a dar o exemplo definitivo de que nem tudo está perdido em se tratando da atividade política.
Sua vitória, nos limites estreitos da cidade, é a vitória de uma utopia que se torna realidade, "o não lugar" com que sonhamos num mundo de homens partidos e incapazes de viver em paz.
Como Fênix, o ser mitológico representado por uma ave semelhante a uma águia, de penas avermelhadas e douradas, Iguatu, politicamente, haverá de renascer das cinzas, e, de uma vez por todas, reconquistar o prestígio e a representatividade perdidos ao longo desses muitos anos.
Nesse domingo 6 de outubro de 2024, venceu a lição de Roberto Costa, o pai, e sua administração incontrastável será surpreendentemente concluída.
Iguatu está de volta.
 
 
 
 

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Eis a [velha] questão

A semana que termina marca também o final da mais abjeta campanha política de que se tem notícia. Em São Paulo, mais importante cidade do país, durante debate em que se devia apresentar propostas de governo, discutir problemas da população e apontar alternativas de ação para o novo quadriênio, o que se viu foi um festival de baixarias que culminaram com cadeiradas e rostos ensanguentados.
Em Alagoas, mais precisamente no município de Taguarana, um juiz eleitoral teve de suspender a campanha sob a alegação de que a "agressividade exagerada" tomava rumos trágicos, num cenário em que "o uso de armas de fogo" ocupava o lugar dos cartazes e santinhos das campanhas tradicionais.
O baixo nível das campanhas espalhou-se pelo país inteiro, confundindo os eleitores e mostrando a face deformada do que, em sua verdadeira razão de ser, é a política, a arte ou ciência de governar, de liderar, de apontar caminhos.
Nunca, em tempo algum, se pôde assistir à vulgarização, à leviandade, à deselegância, à desfaçatez em níveis tão elevados, numa inversão de valores que reflete a realidade hodierna de um país submetido à sanha e à insensatez, ambiente propício para o surgimento de aventureiros e salvadores da pátria movidos a ódio e a hipocrisia.
Em Fortaleza, cidade tradicionalmente progressista, corre-se o risco de ter-se um segundo turno com candidatos de extrema direita, afeitos à disseminação de ideias medievais, pautadas num fascismo redivivo que submete uma parte significativa do país ao que existe de mais retrógrado e mais perverso do ponto de vista humano.
Não isentos de responsabilidade em face do que se vê, partidos de esquerda ignoram suas cartilhas e seu ideário com olhos nas vantagens, muitas vezes inconfessáveis, advindas do poder.
Maior e mais importante desses partidos, o PT vira as costas para o povo e entra desavergonhadamente no jogo de conchavos e práticas até ontem condenadas. Pretere quadros históricos em favor de nomes sob qualquer aspecto identificados com seu projeto de governo, antevendo negócios e negociatas, conluios e falcatruas, num descaso assumido para com a história do partido e do seu mais ilustre representante, o atual presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.
Em Iguatu, para mirar um exemplo, tenta-se a custo vender-se gato por lebre, e o antigo veste-se de novo para tentar voltar ao poder sob o manto vermelho em que cuspia até bem pouco tempo, conspurcando a estrela branca que acalentou sonhos, utopias e ideais.
Em um dos sete solilóquios de Hamlet, na peça de mesmo nome, o leitor depara-se com uma das mais profundas reflexões em torno de como agir ou reagir diante do infortúnio: "To be, or not to be, that is the question".
Às vésperas do mais sublime exercício democrático, aquele em que escolhe seus legítimos representantes, como um Hamlet destes tempos sombrios, o eleitor brasileiro se perde em meio ao mar de lama que se descortina à sua frente: "O que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes?".
Ser ou não ser, eis a [velha] questão.