Mal adentro o elevador e deparo com velho conhecido. Antes mesmo do aperto de mão, entre sorrisos largos, desfere-me a curiosa indagação: "Tenho lido suas crônicas. De onde você tira tanta ideia para escrevê-las?" (sic). Como descesse no andar abaixo, digo-lhe atender a sua curiosidade em texto eventual. E aqui estou.
A crônica nasce do inusitado, do transitório, do que, sendo efêmero, merece o registro do escritor. Não raro as escrevo ao volante, a caminho qualquer, na esteira da academia, na sala de espera do dentista ou enquanto me assumo flâneur pelas ruas da cidade. Esclareço, pois quando digo "as escrevo" refiro-me ao ato de traçá-las na mente, dando-lhe corpo inacabado que resultará concluso na forma escrita, quase sempre sentado diante do computador.
Comumente publicada em jornais ou revistas, e não raro reunida em livro, a crônica nasce de um acontecimento cotidiano, do surpreendente que assume relevância aos olhos do cronista, para ganhar outra dimensão, corporificando-se em linguagem literária híbrida, transitando do puro jornalismo de ocasião para a arte da palavra propriamente dita. Por isso, independentemente do formato e das intenções, assumindo a forma da alegoria, do diálogo, do artigo, da resenha, da confissão, do monólogo ou da conversa entre personagens, a crônica é sempre fiel à sua etimologia: do grego "krónos", tempo, mais annu(m), do latim, ano ou anais.
Não é brasileira, como professam aos quatro cantos, mas, provavelmente, francesa, ainda que tenha ganhado entre nós o condimento que a tornou mais saborosa e mais envolvente. Modernamente, pode-se afirmar, terá surgido no famigerado Journal des Débats, em Paris, por volta de 1800, através da pena de Jean Louis Geoffray.
No Brasil, Machado de Assis, em fins do século 19 e início do século 20, talhou-a com esmero, emprestando-lhe a densidade de que se ressentia e a beleza de um estilo que não mais se confunde com o mero jornalismo, pois que ganha o status de grande literatura e propaga-se através dos tempos.
E viriam Bilac, Lima Barreto, João do Rio, Humberto de Campos, Sérgio Porto, Antonio Maria, Raquel de Queirós, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Ferreira Gullar, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes e tantos e tantos outros, elevando a crônica brasileira a patamares inimagináveis.
Marcada pela subjetividade, quase sempre se reveste de poesia, mistura-se ao conto, ao poema em prosa, adornada pela adjetivação inventiva, alinhando-se à metáfora e à metonímia, sujeita aos caprichos da sensibilidade do escritor e à conveniência da imaginação.
Embora suscetível ao inesperado, à fugacidade da coisa inspiradora, a crônica pode alargar a noção de tempo e de espaço, ir para além do imediato que desencadeou no escritor a ideia do texto, suscitando novas possibilidades de expressão e novos desenhos da forma e do conteúdo, assumindo foros estéticos rigorosamente literários.
Tanto quanto na poesia, no conto, no romance, no roteiro de cinema ou na peça de teatro, a crônica rompe o delicado fio que separa a ficção da realidade, o referencial do conotativo, para deitar-se vitoriosa nas malhas do tecido artístico iventado.
Eis o que é a crônica, de onde ela nasce. Às vezes de um fato qualquer do cotidiano, da emoção estética advinda da cena presenciada, nasce do espanto e da alegria, do quadro na parede, da notícia no rádio, do casal de idosos que se desentende antes de atravessar a rua, do beijo doce dos namorados, da recordação que vem por força do perfume ou da música, da semelhança do nariz e da boca entre a desconhecida e a mulher amada, da saudade que insiste em voltar. Da curiosidade do conhecido com que deparamos ao adentrar o elevador.
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