sexta-feira, 20 de junho de 2025

Um dia com Shakespeare

Em Londres, havia dois dias, conhecemos no café da manhã um grupo de brasileiros muito animados. Eram três moças e dois rapazes, todos entre os vinte e vinte e cinco anos. Estavam de saída para Stratford-on-Avon numa camionete que haviam alugado, vim a saber, no dia anterior. Minha amiga e eu ficamos babando de inveja. Tínhamos pensado em fazer a mesma viagem de ônibus, mas ainda estávamos em dúvida, em face dos gastos que, àquela altura, superavam o que havíamos previsto gastar na capital inglesa.
E qual não seria a minha surpresa!
Lívia, uma das moças, a mais simpática delas, que, pela forma de vestir (e pelo que falava sobre a Europa com uma naturalidade espantosa) parecia-nos filhinha de papai, entre um bocado e outro da omelete, volta-se para nós e propõe: "Vamos conosco, o carro comporta!"
Ainda lhe fiz um charminho: "Imagina, estaríamos incomodando vocês…"
O que conversamos depois disso, ali, enquanto tomávamos o café da manhã, não sei. O fato é que, em poucos minutos, estávamos minha amiga e eu bem acomodados no carro a caminho da terra de William Shakespeare, o gênio da dramaturgia ocidental.
As estradas são perfeitas e a sinalização detalhada, o que torna a viagem segura e confortável. A dificuldade, estivesse eu ao volante, estaria no que, aqui, é a mão de cada veículo: a famosa mão inglesa, a que não consigo me acostumar. Não é, felizmente, o que se dá com Felipe, que, logo pude perceber, é namorado de Lívia, que se mostra bem à vontade como condutor da camioneta.
Mal chegamos à cidade, impressiona-nos a quantidade de referências ao autor de Hamlet. A vida parece girar em torno de sua figura a um tempo mística e quase palpável: a casa em que nasceu, a escola em que cursou as primeiras letras, as placas indicativas com alusão a ele, tudo, tudo é Shakespeare aqui. Restaurante com seu nome, bar, loja de souvenirs, chaveiros, bonequinhos de todos os tamanhos, cortadores de unha, canivetes, as lembrancinhas todas têm o nome ou a efígie do bardo inglês. Uma idolatria para a qual não se vê comparação onde quer que seja, mesmo em se tratando de William Shakespeare.
Não bastasse saber-se que em Stratford-on-Avon está a sede da Royal Shakespeare Company, o Royal Shakespeare Theatre, onde acontecem as mais renomadas montagens a partir dos textos desse filho ilustre, nascido na cidade em 1564, o lugar deslumbra-nos, como se voltássemos no tempo à procura de seres que nunca existiram, fantasmas feitos de poesia e sonho.
Como tivéssemos de retornar a Londres ao final do dia, ainda agora, quando escrevo estas lembranças de viagens, ocorre-me uma sensação de desamparo que reedita a frustração de não ter podido visitar com mais atenção tantos e tantos daqueles lugares impensáveis em que, na contramão do que afirmam alguns, esteve um dia o 'inventor do humano' de que nos falou o crítico Harold Bloom em livro clássico.
Embora as horas desse dia às margens do rio Avon passassem com uma rapidez espantosa, aproveitamos maravilhosamente bem o dia, quase não parando sequer para comer, o que fazemos num ou outro pub. Conhecemos ainda a New Place, onde supostamente terá morrido Shakespeare; a Holy Trinity Church, onde está sepultado o teatrólogo, entre outros pontos turísticos, num dia de que jamais irei esquecer.
Era por volta de onze da noite quando chegamos a Londres. Cansado, extremamente cansado, à entrada do hotel ainda arrisquei uns versos de Shakespeare, no que fui seguido por Lívia, num inglês castiço: "To be or not to be, that is the question".
Shakespeare contava 36 anos quando escreveu a peça. Desde então, passaram-se mais de quatrocentos anos, e, no entanto, poucas obras de arte terão permanecido tão vivas, tão perto de nós, operando milagres que só a literatura é capaz de operar. Haverá como compreender as razões por que isso acontece? Não saberia dizer. Talvez, muito talvez, porque a dignidade de Hamlet, sua incansável busca da verdade, suas reflexões sobre o sentido da vida e do estar-no-mundo, a beleza de suas falas, o sortilégio de seu silêncio, suas convicções e seus delírios, digam um pouquinho de cada um de nós.  

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