"Fortíssimos consórcios, eu desejo/Há muito já de andar terras estranhas,/Por ver mais águas que do Douro e Tejo./Várias gentes e leis e várias manhas.", está n'Os Lusíadas, de Camões. Nos ensandecidos das estradas, nos amantes dos mais distantes rincões.
Quem costuma viajar de carro por certo terá reparado: é comum depararmos com viandantes solitários pelas estradas. São seres esgueiriços, incomunicáveis, ivariavelmente mal vestidos, de pés descalços, cabelos e barbas enormes, verdadeiros anacoretas a trilhar caminhos que parecem levar a destinos ignorados.
A estrada é mesmo a metáfora do imponderável. Está em Dante, "No mezzo del camin de nostra vita me retrovai per uma selva oscura" – ou seja: "No meio do caminho de nossa vida me encontrei em uma selva escura." Está em Drummond, "No meio do caminho tinha uma pedra." Em Bilac: "E paramos de súbito na estrada/Da vida: longos anos, presa à minha/A tua mão, a vista deslumbrada/Tive, da luz que teu olhar continha", e outros incontáveis poetas da literatura ocidental. As conotações são as mais diversas, mas sempre o caminho a sugerir a trajetória de cada homem, o vir-a-ser de nossa existência.
Em Paris, Texas, o clássico de Wim Wenders, vemos Travis caminhando por uma estrada deserta, como Proust, à procura de um tempo perdido. Carlitos faz o mesmo, ingênuo e terno, n'O adorável vagabundo --- para desaparecer na estrada feita "de pó e de esperança."
Acho que todos nós, que amamos viajar, temos um pouco desse componente quixotesco a nos mover ao encontro do improvável. A estrada metaforiza à perfeição essa prazerosa busca do desconhecido, ainda que se tracem projetos prévios e bem pensados. Há sempre a incógnita, o lado imprevisível da linha traçada. O surpreendente.
É assim que me sinto ao viajar. Embora tenha o costume de abrir o mapa sobre a mesa e percorrer com o lápis o trajeto a ser seguido, não raro mudo o destino programado, crio alternativas novas de chegar ao destino imaginado. A viagem torna-se mais curiosa e emocionante, as novidades surpreendentes, os lugares mais bonitos e mais sedutores, pela simples razão de serem novos e impensados os caminhos.
A vida bailarina, o viravoltear das coisas.
As viagens internacionais, por óbvio, as fiz de avião ou navio. São hoje em torno de 25 países --- vinte e três, para ser mais preciso. Mundos estranhos a atravessar minha vida, deslumbrando o menino da província que acalento no mais profundo de mim, pois que, à maneira de Milton e Fernando Brant, "há um menino, há um moleque/morando sempre em meu coração./Toda vez que o adulto balança, ele vem pra me dar a mão".
No écran das retinas, belezas impagáveis; no coração, histórias magníficas, imagens vivas de cidades nascidas dos sonhos de homens impossíveis: São Petersburgo, de Pedro, "O Grande", e de Dostoiévski, intérprete da loucura humana a um só tempo bela e insuportavelmente dolorosa. De Estocolmo, de Bergman e Strindberg, de Paris, de Victor Hugo, Flaubert, Sartre e Zola.
Em pensamento, volto a caminhar à beira do Sena, vendo à distância a Catedral de Notre-Dame, com suas torres imponentes, seu pináculo espetacular, seus portais ornamentados de esculturas e a sedutora rosácea central.
Agora, mais próximo, seus arcobotantes monumentais, na ponta leste da igreja, e, no alto, ameaçadoras, as suas famosas gárgulas. Ocorre-me lembrar Quasímodo, o simpático corcunda criado pelo gênio de Victor Hugo.
A magia das viagens, o canto de sereia das estradas.
*Do livro "Memória de viagens".
Bom dia, Alder!
ResponderExcluirGostaria que você escrevesse uma coluna sobre livros e produtos audiovisuais que todas as pessoas deveriam ler e assistir, respectivamente, antes de morrer, organizados nos seguintes gêneros:
10 romances de ficção;
10 romances de não ficção;
10 livros de poesia;
10 livros de crônicas;
10 livros de contos;
10 biografias;
10 livros de ensaios sociopolíticos;
10 peças de teatro (dramaturgia);
10 filmes de drama;
10 documentários.
Grato! Francisco M. Santos