sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Para a liberdade e luta*

"Me enterrem com os trotskistas/na cova comum/onde jazem aqueles/que o poder não corrompeu".
A Flip 2025, na linha das homenagens estranhas à tradição canônica desde as últimas edições, tem como figura de proa em sua programação, inaugurada no fim de semana, o poeta Paulo Leminski. A escolha não poderia ser melhor, pois o poeta curitibano é dos poucos escritores brasileiros (Vinicius de Moraes, o melhor exemplo) a transitar com absoluta tranquilidade entre polos distintos do fazer poético, indo do mais inconteste rigor formal à poesia dita popular, para não reiterar a classificação de expoente da "geração mimeógrafo" com que costuma ser identificado.
Mas não se pense que terá sido cômodo para o poeta equilibrar-se entre tendências tão antagônicas, e, por isso mesmo, desprezadas até algum tempo atrás por setores da chamada grande crítica literária no País. Houve um certo preconceito reinante na historiografia e na crítica da literatura brasileira em relação a esses desafiadores dos padrões estabelecidos, dentre os quais, além de Leminski, estariam a merecer o reconhecimento definitivo, fora da bolha mais afeita às transgressões de estilo, nomes como Ana Cristina Cesar (também ela homenageada na Flip do ano passado), Cacaso, Waly Salomão, Torquato Neto e Francisco Alvim.
Se é verdade que, hoje, esses autores ganharam notoriedade, e os dois últimos citados há pouco conquistaram o merecido prestígio, não se pode negar que esse processo se deu num contexto de dramáticas discussões. A evidenciar o que aqui vai dito, lembremos que um dos nomes dados à referida geração, como a revelar o juízo de que se lançou mão durante muito tempo, é o de "poesia marginal", isto é, que se coloca à margem, que foge aos padrões estabelecidos, sem esquecer que a adjetivação é, não raro, destinada a seres delinquentes, aos que cometem crime.
Desvios de rota à parte, é mesmo de deixar exultantes os amantes da melhor literatura brasileira a escolha de Paulo Leminski como homenageado na mais importante feira internacional de literatura no País. Diria mesmo: rompendo as fronteiras definitivas dos julgamentos apressados ou intelectualmente estreitos, o fato dará maior alcance à poesia do principal nome da geração de 70, aquela que, muito mais que os modernistas de 22, descobriu o caminho para chegar ao impensável: o equilíbrio entre o apuro formal de elite e o mais genuíno coloquialismo --- sem artifícios, sem perder de vista a rigidez na construção poemática de feitio clássico, nem a verdadeira razão de ser da Arte como instrumento de comunicação e de alternativa de ação contra os males de um modelo econômico essencialmente perverso.
Demos voz ao poeta: "Acaso é este encontro/entre o tempo e o espaço/mais do que um sonho que eu conto/ou mais um poema que eu faço?".
Num momento em que o mundo se depara com novas formas de autoritarismo, curvando-se às ameaças de um imperador pós-moderno travestido de presidente da maior e mais delinquente das potências ocidentais, a homenagem a Paulo Leminski na Feria Literária Internacional de Paraty 2025 traz a lume, sub-repticiamente, o lado torto dos tempos atuais, e nos faz lembrar que o monstro redivivo é, porque sempre foi, uma ameaça de que jamais estivemos livres em termos econômicos, sociais e políticos.
"De repente/vendi meus filhos/a uma família americana/eles têm carro/eles têm grana/eles têm casa//a grana é bacana/só assim eles podem voltar/e pegar um sol em Copacabana", diz Leminski em "Verdura", exemplarmente bem interpretada por Caetano Veloso no disco "Outras Palavras".
Grandes poetas são grandes visionários, e sua arte é capaz de enxergar o que os olhos pequenos não veem. Ocorrem-me, porque oportunos, os versos de Drummond em "Visão 1944", estando o mundo sob os escombros da Segunda Guerra: "Meus olhos são pequenos para ver/o mundo que se esvai em sujo e sangue/outro mundo que brota/qual nelumbo/ --- mas veem, pasmam, baixam deslumbrados".
Leminski, como vimos, já reportara à rendição imposta à economia e aos interesses satânicos do império norte-americano. É abrir os olhos e ver.
 *Título de um poema de Leminski, do livro "Polanaises".