"Ora, se deu que chegou/(isso faz muito tempo)/no banguê do meu avô/uma negra bonitinha/chamada negra Fulô". JORGE DE LIMA.
Prêmio após prêmio, a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz vai se consolidando nos meios acadêmicos brasileiros (e fora deles, destaque-se) como um dos nomes mais importantes do pensamento contemporâneo. Membro da Academia Brasileira de Letras e autora de livros já reconhecidos clássicos e indispensáveis para a compreensão do que se poderia considerar o caráter nacional brasileiro, a autora de "As barbas do imperador" é contemplada agora com o Jabuti Acadêmico, categoria História e Arqueologia, pela publicação de "Imagens da branquitude, a presença da ausência" (Companhia das Letras, 2025).
Considerado pela própria autora como fundamental no conjunto de sua vasta e incontornável obra, "livro de uma vida toda e virada cognitiva", como afirmou a este colunista, o livro premiado excede aos limites estabelecidos em padrões convencionais da pesquisa no campo da investigação do sistema de privilégios materiais e simbólicos que permeia a formação de uma sociedade marcada por imensas contradições. É que Lilia Schwarcz, em nova chave, aprofunda o que em livros anteriores, em artigos e conferências ministradas nos últimos anos, pode-se definir como análise e interpretação de parte expressiva do acervo iconográfico brasileiro (imagens, gravuras, fotos e outras representações visuais) através do qual se construíram, no que toca à questão racial, nossa história e nosso imaginário.
É fato, sob este aspecto, que, à Lilia Schwarcz, desde os primeiros livros, os significados ocultos, o significante "invisível" de nossa produção iconográfica, sempre despertaram um grande interesse, a exemplo do que se pode perceber, por outros ângulos e métodos de análise, no seminal "O sol do Brasil" (Companhia das Letras, 2008), livro no qual se debruça sobre a figura de Nicolas-Antoine Taunay e outros artistas franceses no Rio de Janeiro no início do Oitocentos.
Nesse livro, cabe ressaltar, verdadeiro exemplo de como se deve escrever a história da cultura, nas palavras de Alberto da Costa e Silva, a presença dos escravos em meio a paisagem da cidade e nos registros iconográficos constituiria um capítulo à parte, como a declarar o inegociável compromisso da historiadora no debate sobre a questão racial no Brasil a partir de então.
Reportando-se à importância desse livro notável, acrescento, Alberto da Costa e Silva ("Meu pai intelectual", afirma Lilia Schwarcz), em texto de apresentação, "O sol do Brasil" configura um tipo de ensaio de iconologia que nos remete Erwin Panofsky e seu clássico absoluto "Significação nas Artes Visuais".
O certo é que "Imagens da branquitude, a presença da ausência", se ecoa vozes estéticas presentes em livros anteriores de Lilia Schwarcz, o faz por outro viés, com outra pegada e senso de análise inequivocamente mais apurado do ponto de vista metodológico. Não que o livro, vale evidenciar, mesmo por esta perspectiva, fuja àquilo que é uma das marcas mais pessoais da autora: o cuidado no tratamento da linguagem, o uso atento do léxico e, mais que qualquer outra coisa, a habilidade na escolha de estratégias narrativas, a elegância com que Lilia Schwarcz trata a palavra a fim de escrever história como quem escreve poesia, em que pese a função da linguagem com que tece sua narrativa a um só tempo referencial e sedutora.
Para não falar, por óbvio, do embasamento teórico que dá sustentação a esse livro tão valioso. Sob este aspecto, aqui e além, com maior ou menor intensidade, pode-se respirar perfumes de teorias diversas, de Panofsky, já referido, a Barthes; de Didi-Huberman a Susanne Langer ou mesmo Mikel Dufrenne.
Mas há que se pontuar: é o olhar pessoal de Lilia Schwarcz que sobressai, leve e solto, num exercício acadêmico diferenciado, como a romper as barreiras que separam o pensamento científico da atitude estética.
Por essas e tantas outras razões, "Imagens da branquitude, a presença da ausência", é livro fundamental para quem se dedique ao exame de nossa formação, de como se construíram os laços de conveniência e de cumplicidade inconfessável, de como se reproduziram, sub-repticiamente, os valores das classes dominantes, de como foram assegurados seus privilégios, e, como particular atenção, de como se deu o processo de legitimação do preconceito racial, de gênero e outras formas de discriminação a partir da produção imagética.
Um livro indispensável, insisto.
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