quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Vezo do professor, e o coração ingênuo

Como professor de literatura , estive condicionado a trabalhar com as teorias mais importantes sobre a matéria, desde as clássicas até as contribuições mais atuais no campo da estética, da filosofia da arte, dos conceitos recentes deste ou daquele teórico etc.
Mas jamais perdi de vista aquilo que deve ser o grande objetivo do ensino de literatura: proporcionar ao estudante essa experiência de saudável cumplicidade com os escritores e suas obras. Sem pruridos, sem juízos prévios, sem preconceito de qualquer ordem. Eis a razão por que escrevo o mais das vezes sobre livros, filmes, sobre a Arte, enfim, matéria a que dediquei (e dedicarei sempre!) minha atenção, o meu tempo, e a parte mais preciosa de minha vida no plano intelectual e acadêmico. 
Acho, contudo, que o sentido fundamental do estudo da arte e da literatura, em especial, está em levar o aluno a desfrutar do incomparável prazer da contemplação, da fruição estética, da leitura, e, através dela, a crescer enquanto pessoa, a compreender melhor o homem, a si próprio e ao outro, sua relação com o mundo, a dolorosa provocação da alteridade. "Outrar-se", no dizer de um grande linguista, a cuja tarefa, como nenhum outro, Fernando Pessoa entregou-se, legando-nos a obra imorredoura que, ao mesmo tempo, deleita e ensina, pois que, se "o poeta é um fingidor", no seu fingimento, em alguma porção, está "a dor que deveras sente".
Sentimos. 
Por isso, suponho, tenho sabido lidar tão bem com as diferentes grandezas do talento, quer na perspectiva da música, das artes visuais, do cinema, do teatro, quer na perspectiva da literatura.
Dizia eu, em outra crônica, se o leitor recorda, que leio de Shakespeare a Nelson Rodrigues, de Paul Celan a Martha Medeiros, com igual encantamento, sabendo-os diferentes, em dimensão criativa e qualidade estética, bebendo, todavia, em cada palavra, do mesmo néctar, tirando de cada um o melhor proveito.
Na poesia, assim como gosto, por exemplo, de Paul Éluard, de T. S. Eliot,  de Walt Whitman, vou bem de J. G. de Araújo Jorge, ainda que menor, e Baudelaire, e Mallarmé, tão maravilhosos e tão malditos.
É a poesia que amo. Apesar de conhecer, por dever de ofício, as investigações estruturalistas, o que é absolutamente importante para o bom exercício de minha profissão, considero que mais relevante é o prazer do texto, o que ele é capaz de revelar da condição humana, de suas paixões e de suas angústias.
Desse modo, quando a uma dada altura, neste espaço, arrolei alguns dos meus poetas favoritos, cometi o imperdoável lapso de não mencionar Pablo Neruda, o memorialista e o poeta extraordinário que foi  --- e será sempre. Tenho o hábito de ler Neruda. Sei de memória alguns dos seus poemas maravilhosos sobre o amor, que é mesmo, o Canto Geral que fique à margem, a sua mais deliciosa porção.
Antes de amar-te, amor, nada era meu: / cambaleei pelas ruas e coisas: nada possuía nem tinha nome: / o mundo era do ar que respirava.
De Neruda, é um dos poemas que mais amo (Puedo escribir los versos más tristes esta noche), mais dolorosos, mais profundos, sobre o amor e sua fugacidade. Permita-me, leitor, que o diga, pois que você me pede.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite. // Escrever, por exemplo: a noite está estrelada, / e brilham, azuis, os astros, lá ao longe. // O vento da noite gira no céu e canta. // Posso escrever os versos mais tristes esta noite. / Eu a amei, e, por vezes ela também me amou. // Em noites como esta a tive em meus braços. / A beijei tantas vezes sob o céu infinito. // Ela me amou, por vezes eu também a amava. / Como não ter amado seus grandes olhos fixos. // Posso escrever os versos mais tristes esta noite. / Pensar que não a tenho. Sentir que a perdi, já. // Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela. / E o verso cai na alma como no pasto o orvalho. // O que importa é que meu amor não pôde guardá-la. /A noite está estrelada e ela não está comigo. // Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe. // Minha alma não se contenta com tê-la perdido. // Como para trazê-la a mim meu olhar a procura. // Meu coração a procura, e ela não está comigo. // A mesma noite que faz embranquecer as mesmas árvores. // Nós, os de então, já não somos os mesmos. // Já não a amo, é verdade, mas como a amei. Minha voz buscava o vento para tocar seu ouvido. // De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos. // Sua voz, seu corpo claro. Seus olhos infinitos. // Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda. // É tão curto o amor e tão longo o esquecimento. // Porque em noites como esta a tive em meus braços, / minha alma não se contenta com tê-la perdido. // Ainda que seja a última dor que ela me causa, / e estes sejam os últimos versos que lhe escreva.*
Mas é curto, também, o espaço do jornal, e enorme a data que se avizinha, como a desafiar os homens a cada dezembro.
À maneira de Drummond, vejo "nascer um Deus", e o meu coração vibra, tolo e profundamente ingênuo, como a renascer das cinzas para de novo acreditar na possibilidade de um mundo melhor, mais livre, mais justo, mais humano.
Feliz Natal!
* Um leitor pediu-me, na íntegra, o poema. Atendo-lhe inserindo-o no corpo da crônica de hoje.


Um comentário:

  1. Querido Álder,na condição de um professor de Literatura que há duas décadas leciona, seu texto me tocou por demais. Principalmente quando dizes que nossa profissão busca trazer ao aluno o sentimento do “incomparável prazer da contemplação “. Maravilhoso e irretocável seu texto,meu amigo e meu mestre. Obrigado por mais esse primor literário. Boas festas.

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