sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Triste Brasil

Não me recordo o ano com exatidão, mas mantenho acesas as lembranças.

Membro fundador e primeiro presidente da União Iguatuense de Universitários (Unidus), participei do movimento que levou a Iguatu, para o que deveria ser um show memorável, Miúcha e João do Vale. Digo o que "deveria" porque, sob algum aspecto, o evento foi um fiasco: excedendo-se na bebida, o autor de Carcará sequer conseguia ficar em pé durante o espetáculo, cantando a maior parte do tempo sentado à beira do palco. Um vexame.

Desapontada, sem todavia perder a elegância jamais, Miúcha aceita o convite para um jantar num restaurante afastado da cidade, o BNB Clube, revelando-se, para além da extraordinária intérprete do cancioneiro popular brasileiro, uma conversadeira encantadora, dessas que costumam levar o interlocutor a querer varar a madrugada. E foi o que aconteceu.

Vinha dela a iniciativa de contar "causos" nos quais estivera envolvida em tempos inesquecíveis da MPB, em nenhum momento insinuando-se incomodada com a curiosidade dos presentes. Antes pelo contrário: contava-os com entusiasmo, como se, ao invés de a anônimos, dirigisse a conversa impagável a velhos amigos.

Ao final de cada história, os dentes chamativamente alvos à mostra, abria-se em gargalhadas sonoras e contagiantes. Uma noite inesquecível ao lado da melhor intérprete de Maninha: "Se lembra da fogueira / se lembra dos balões / se lembra dos luares do sertão".

"O Vinicius [de Moraes], que frequentava a nossa casa no Pacaembu, sempre dizia que o Chico [Buarque] era um mentiroso, pois nunca houvera jaqueira no quintal", dizia-nos, referindo-se ao verso "se lembra da jaqueira", da referida canção, um dos seus maiores sucessos, talvez só superado por Samba do Avião, de Antônio Carlos Jobim.

Morta nessa quinta-feira 27, aos 81 anos, Miúcha deixa inconsolável uma legião de fãs. Com uma voz "pequena" para os padrões da maioria das cantoras mais prestigiadas de sua geração (início dos anos 70), Heloísa Buarque de Holanda notabilizou-se como uma intérprete insuperável, compensando com uma fina identificação com aquilo que cantava, seus limites vocais: "Minha alma canta / Vejo o Rio de Janeiro / Estou morrendo de saudade / Rio teu mar, praias sem fim / Rio você foi feito pra mim".

Filha do historiador Sérgio Buarque de Holanda, e irmã de Chico, Cristina e Ana Buarque de Holanda, também cantoras, Miúcha foi casada com João Gilberto e é mãe de Bebel Gilberto, com quem dividiria, ao lado do então marido, um dos momentos áureos de sua carreira, o belíssimo álbum com o saxofonista americano de jazz Stan Getz (1927-1991). Para não falar de Rosa amarela (1997), Miúcha canta Vinicius & Vinicius (2003) e Outros sonhos (2007). No desfecho de um ano profundamente conturbado, o Brasil perde uma grande intérprete e uma pessoa humana luminosa.     

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Assim, eis que termina 2018. Um ano marcado por grandes contradições, algumas das quais repercutem mundo afora de modo a depor contra o Brasil e colocar por terra a imagem do país como uma democracia sólida. Muitas de nossas principais conquistas no terreno dos direitos humanos tombam ao peso do retrocesso que já é uma realidade. Sob a égide da hipocrisia e da desfaçatez, assumirá os destinos da nação a partir de primeiro de janeiro o novo presidente, as mãos indisfarçavelmente sujas pela prática da corrupção que prometeu combater. O pior tipo de autoritarismo, o autoritarismo legitimado pelas urnas, ocupando as páginas dos principais jornais. Triste Brasil.

 

 

 

   

 


 


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sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

À cidade: quase análise

Só há poucos dias pude ler o festejadíssimo À Cidade, livro-poema com que o escritor cearense Maílson Furtado Viana arrebatou o Jabuti de Livro do Ano 2018.

Transitando entre estilos diferentes, como a revelar sua independência em relação aos modelos já cristalizados, mesmo quando dá a ver a influência do Ferreira Gullar de A luta corporal e de O Poema sujo, por exemplo, Furtado faz sua primeira aparição, em nível nacional, como um poeta grandioso ao retratar o cotidiano de sua pequena Varjota, no interior do estado do Ceará, com suas banalidades carregadas de poesia que só aos olhos do artista sensível assume a forma de arte, e arte da melhor qualidade.

Nesse sentido, como a inverter a pegada dos realizadores da Nouvelle Vague francesa, a escrever com a câmera, Furtado como que filma com palavras, pois que é notória a vocação cinematográfica do livro em toda a sua extensão: "[...] tudo sai / os meninos / os cachorros / as pessoas / os mosquitos / as casas não".

Há, na economia de meios, a construção de imagens que vão tecendo o quadro a partir de elementos os mais bizarros, num ritmo suave e preciso que faz lembrar um travelling à Agnès Varda.

O poema, pois, agrada, desde o primeiro contato, pelo que apresenta no âmbito da imagem propriamente dita (objeto de visualização), não a imagem enquanto metáfora, tão própria da poesia, mas a percepção visual de uma imagem estabelecida dentro de determinados limites.

Pode-se, assim, falar de enquadramento, uma vez que a unidade estrutural do poema é fruto de uma escolha visual pontuada pelo deslocamento do olhar do eu-lírico como o de um operador de câmera. A sua matriz, portanto, é visual, ao que se soma a sonoridade dos versos como a reproduzir os ruídos da vida vidinha do interior na proximidade do anoitecer: "[...] a noite caminha / e gritos de pais chatos / gritam / pra voltarem pra casa / o esconde se acaba / se acabam as paqueras / as brincadeiras / se acabam".

Com isso, o poeta agora empresta à imagem o fundo sonoro que lhe dá a força de uma sequência fílmica, como a ter em mente a perfeita compreensão de que poesia e cinema são artes do tempo, e não do espaço, como quiseram os concretistas. É tímida, neste aspecto, pode-se afirmar, a presença de bases estilísticas que denunciem relação direta com o movimento de 1956, muito embora, aqui e ali, perceba-se algo como a espacialização ou geometrização do texto, a exemplo do que faz, à altura da página 15, com o verso: "[...] é novembro / e folhas enfeitam o chão / depois de seu ballet

                                                    n

                                                       o

                                                           ar

                                              outras brotam

                                              outras

                                                        caem".

Ou nos versos compostos, à página 24, em que explora a geometrização do texto de modo a sugerir o intimismo de um familiar próximo: "[...] como meu trisavô vive

                                      d   ntro

                                         e

                                       d le"

Injusto, impróprio quando menos, é apontar sob este aspecto para o uso de procedimentos ditos ortodoxamente concretos, como mais de uma vez tenho lido acerca do livro-poema de Maílson Furtado  ---  e a mim mesmo me pareceu à primeira leitura.

Ledo engano. Aliterações, assonâncias, ênfase na sonoridade do léxico empregado na feitura do poema, assim como, em certa medida, a ocupação do espaço físico da folha de papel (e da tela do computador hoje em dia), são comuns à própria poesia, recursos legítimos e incontornáveis de uma fazer artístico que se pauta, acima de tudo, pela musicalidade. Também os simbolistas, sobretudo eles, foram particularmente empenhados em tirar música da linguagem poética, e seria igualmente inadequado identificar em À cidade traços assumidamente simbolistas ou (neo)concretos, ainda que se percebam, aqui e além, características de um e outro no belíssimo texto de Maílson Furtado.

Poesia atemporal, livre e muito maior que a tola necessidade de classificação formal, À cidade sobressai pela força da percepção fenomenológica que é mesmo o esteio em que se sustenta este poema essencialmente visual, sem abandonar jamais, claro, um aguçado senso de relação entre os elementos semânticos e fonéticos que lhe dão uma vitalidade estética absolutamente louvável.

Em termos gerais, em face da exiguidade de espaço da coluna, se, no poema, é inquestionável o "perfume" neoconcreto a que me referi (e tem sido um rótulo precipitadamente colado ao poeta), valho-me de uma visada recorrente entre os concretistas para dizer, consciente de que se possa julgar isto uma mera subjetivação, que se trata de um poema de sintaxe mais visual que verbal. Mais importante, no entanto, é o fato de estarmos diante de uma autêntica obra de arte literária que faz justiça ao prestígio repentinamente conquistado por Maílson Furtado.