quarta-feira, 21 de novembro de 2007

A despedida do rebelde

Semana que passou, um lapso resultou na minha ausência neste espaço, pelo que me desculpo na coluna de hoje. O texto estava pronto e falava da morte do escritor Norman Mailer, em 10 do corrente. Um nome importante da moderna literatura americana, de quem recomendo o clássico Um sonho americano, de que saiu há pouco uma edição de bolso da L&PM. Mailer, ou o Velho Rebelde, como se tornou conhecido nos meios intelectuais dos Estados Unidos, notabilizou-se não apenas pela qualidade da sua prosa de ficção, inquietante e considerada por muitos como desnecessariamente apelativa. É que o autor de Os nus e os mortos, livro de estréia, em que relata suas experiências como soldado na II Guerra Mundial, constitui um exemplo de agitador intelectual não comum nos dias atuais. Dele, li há algum tempo uma entrevista de que, vira e mexe, me recordo pela contundência de suas afirmações sobre a nossa Era, marcada pela vitória da cultura televisiva sobre a cultura literária.

Temperamento explosivo, Mailer acumulou inimizades ao longo do tempo. Consta que certa vez agrediu Gore Vidal pelo simples fato de ter criticado seus livros. Escreveu uma obra significativa (algo em torno de trinta livros) e participou ativamente de manifestações de protesto. Numa dessas manifestações, contra a Guerra do Vietnã, 1967, foi preso e dessa experiência teria resultado o premiado Os Exércitos da noite. A descrença no futuro dos homens, teorizada com o nome de hipsterismo, levou-o a exaltar os desajustados, os psicopatas, os criminosos, as prostitutas, os únicos capazes de agir em favor das transformações coletivas. Considerava que o grande desafio do homem estava em encarar a morte como coisa natural, tema de pelo menos um livro, citado acima, O Sonho Americano. Nele, Mailer narra a vida de Stephen Rojack, um herói de guerra e professor de filosofia existencial que se entrega a uma desenfreada busca de sua identidade através da magia, do medo e da percepção da morte como um fim em si mesma.

Bebedor contumaz, numa das muitas crises passionais fere a golpes de faca a mulher Adele Morales, quase levando-a a óbito. Adele perdoa-o, os dois se reconciliam e vivem por mais algum tempo, até que se dê a separação definitiva. Apesar da crise existencial que o fato desencadearia, Mailer continuou produzindo e por duas vezes ganhou o prêmio Pulitzer. A primeira delas pelo livro Os Exércitos da Noite. Mas uma das criações mais polêmicas do escritor é Marilyn, a biografia, em que defende a tese de que atriz teria sido assassinada por agentes do FBI. Era aficcionado do boxe, tendo escrito um livro sobre a antológica luta entre Cassius Clay e George Foreman, em 1974.

Na linha do que não raro acontece entre grandes celebridades da literatura - o dramaturgo Jean Genet, para ficar num exemplo - Norman Mailer exemplifica à perfeição o homem em conflito com a sua individualidade em meio a um mundo em crise, à inversão de valores, a inexistência de sentido para a vida. Se é verdade que não se devem misturar o autor e sua obra, no caso de Mailer e esses tantos escritores malditos da modernidade, isso parece inevitável. Em Parque dos cervos, 1955, explora este viés kafkiano e tematiza a decepção da ‘inteligência’ com a Guerra Fria. É o fim da nossa Era, como disse, marcada pela escravidão do indivíduo aos interesses de uma sociedade hipócrita e doentia. Por isso, impressiona-me a reflexão de Mailer sobre o destino da humanidade, o fim de um tempo em que a sensibilidade, ainda que obnubilada pela ganância e pelo egotismo, resiste em agonia. Esta a razão por que, com a morte desse rebelde convicto, as literaturas americana e mundial estão mais pobres agora. Quem sabe a sua morte constitua tão-somente a mais radical ironia, o sorriso de sarcasmo em face de uma sociedade que pouco merece além disso.É que talvez não exista mesmo o caminho da redenção.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

O ciclo vicioso da paixão

A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida.
(Vinícius de Moraes)
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Rosa Monteiro, citando o escritor Alejandro Gándara, diz, em A Louca da Casa: “Amar apaixonadamente uma pessoa sem ser correspondido é que nem estar num barco e enjoar - você acha que vai morrer, mas nos outros só provoca risadas.” E, no entanto, a dor que se sente é insuportável. Todo fim de relacionamento, sobretudo daqueles que tiveram vida longa, é desconcertante. E não adianta insistir que “foi melhor assim”, que “Deus sabe o que faz”, que “o importante é a amizade que ficou”, “que isso passa e logo vai aparecer alguém”, palavras e expressões que nada dizem para quem desaba abismo abaixo naquele instante. Balela. Não há separação tão equilibrada que atenda à vontade dos dois. Um lado vai sair machucado, invariavelmente. E só quem passou por uma situação assim é capaz de entender a extensão e a profundidade dessa dor. A coisa pega, queima, sufoca, estrangula, quando se vive esse martírio sem nome.

Cecília Meireles tem um verso antológico sobre o tema: “A maior pena que eu tenho, punhal de prata, não é de me ver morrendo, mas de saber quem me mata”. Ao amante desiludido, custa aceitar a idéia de que se possa ter esquecido tudo. De que o “eu te amo” agora nada represente. Que o outro não se recorde das coisas boas vividas a dois, de que para ele nada mais signifique a lembrança de tudo aquilo que se viveu junto, e do que ainda se tinha por fazer.

Alencar termina Iracema com uma frase lapidar: “Tudo passa sobre a face da terra.” Aos poucos, enfim, vai diminuindo o vazio, a equivocada sensação de que nada mais vale a pena. Volta-se a crer na vida, a agradecer o milagre de cada amanhecer. Compreende-se a difícil realidade de que ninguém é de ninguém. E de que o amor é comunhão, não existe se não é recíproco. Silenciosamente, vai nascendo dentro do peito um novo sentimento, uma esperança que não é a esperança utópica de que falou Nietzsche, aquela que só prolonga o tormento. É a esperança que já tem o gosto inconfundível da felicidade. Recobra-se o amor-próprio, refaz-se a auto-estima, lida-se melhor com a solidão.

Por que se tornam inimigos os ex-amantes? É a precariedade dos homens, a ingratidão para com a felicidade que não foi eterna, a incapacidade para o perdão? Sim, é tudo isso, mas acima de tudo, é não saber perder. No belo romance Em Tuas mãos, a escritora portuguesa Inês Pedrosa diz sobre isso algo que considero indispensável citar: “A separação pode ser o ato de absoluta e radical união, a ligação para eternidade de dois seres que um dia se amaram demasiado para poderem-se amar de outra maneira, pequena e mansa, quase vegetal.” E, continua: “Só nós dois sabemos que não se trata de sucesso ou fracasso. Só nós dois sabemos que o que se sente não se trata - e é em nome desse intratável que um dia nos fez estremecer que agora nos separamos. Para lá da dilaceração dos dias, dos livros, dos discos e filmes que nos coloriram a vida, encontramo-nos agora juntos na violência do sofrimento, na ausência um do outro como já não nos lembrávamos de ter estado em presença.” E desfere o golpe certeiro: “É uma forma de amor inviável, que, por isso mesmo, não tem fim.”

Hora dessas, de repente, deixa de importar se ela continua a usar os brincos que você deu, se ele ainda bebe rum, se parou de fumar. Se ele melhorou o inglês, se ela aprendeu a estacionar, se ainda lembra de você, por que deixou de amar. Um dia, quando você menos espera, a química ressurge, no semáforo - quando os carros se alinham -, no supermercado, no elevador - onde ele gentilmente segurou a porta para você entrar -, no barzinho da esquina, num lampejo de olhar. Vem sorrateira, num cruzar de pernas que só você percebeu, no jeito excêntrico de usar as mãos, de recompor o cabelo, de renovar o batom. Aí, todos sabem, sente-se aquele friozinho que não se pode definir, os olhos brilham, o coração batuca - e então, como no verso memorável de Bandeira, “os céus se misturaram com a terra e o espírito de Deus voltou a se mover sobre as águas”. O ciclo vicioso da paixão. Depois, está na canção do Roberto, o tempo, que transforma todo amor em quase nada.