quinta-feira, 25 de outubro de 2018

O voto revela o homem

É conhecido o provérbio latino que diz: In vino veritas, que significa "no vinho está a verdade". Alude, por óbvio, ao fato de que o álcool provoca no homem a sensação de "liberdade".

Mais objetivo, todavia, seria afirmar que o provérbio, atribuído ao filósofo Caio Plínio Cecílio Segundo, mais conhecido como "Plínio, o Velho", para os romanos significava dizer que sob o efeito do álcool o homem libera suas convicções mais profundas, algo, guardadas as devidas particularidades, como a voz do inconsciente de que nos falaria Freud a partir do surgimento da psicanálise com "A interpretação dos sonhos", e que silenciamos sob o peso das conveniências as mais diversas.

Para o pai da psicanálise, "A voz do inconsciente é sutil, mas não descansa até ser ouvida". Ela se faz ouvir através dos nossos "atos falhos", como define um equívoco da fala provocada pelo desejo inconsciente reprimido. Para Freud, os atos falhos são diferentes do erro comum, pois que nenhuma ação, gesto ou palavra ocorre acidentalmente.   

Como literatura, sempre me seduziu a metáfora usada entre os profissionais da psicanálise para definir a mente como um "iceberg", posto que sua parte visível é tão-somente um pequeno pedaço de sua totalidade. A parte submersa, escondida nas águas, é sempre muito maior.

Assim é mesmo a mente humana: o consciente é apenas a parte visível, enquanto o inconsciente é a parte submersa, escondida sob as águas profundas.

No contexto de uma campanha marcada pela passionalidade, em que o ódio aflora com uma força apavorante e ficamos "cegos" (como todos, com razão, afirmam), ocorre-me lembrar que, na linha do vinho e dos atos falhos libertadores dos desejos inconscientes, o voto em alguma medida revela as nossas convicções mais íntimas, muitas vezes silenciadas pela "vergonha" de torná-las públicas.

Mais que uma escolha entre ideologias distintas, direita e esquerda, centro ou extrema, é o conteúdo do que professam nossos candidatos e a nossa identificação com eles que orientam  ---  como o vinho de Plínio ou os atos falhos de Freud  ---, as nossas opções, e que nos levam à urna para depositar nosso voto. Não o fazemos isentos de expressar, pelo voto, nossas convicções e nossos desejos, a parte escondida do iceberg.

Se voto num candidato que professa "conscientemente" a rejeição às diferenças e às minorias (mulheres, homossexuais, negros, índios etc.), que dissemina a violência como forma de intimidar o outro, fala por mim este voto  ---  e sua voz diz das minhas convicções, do meu pensamento, das minhas ideias, enfim, de tudo aquilo que defendo no íntimo do meu ser. Através dele expresso o que quero para o meu país e o meu povo, o que penso sobre direitos humanos, como a dizer a plenos pulmões: " --- Sim, sou contra negros, mulheres, homossexuais, índios. Exalto a violência e abomino a democracia. E, pasmem!, mais que tudo, sou favorável à tortura!

O voto, tanto quanto o vinho, revela o homem.  

 

 


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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Em apoio a Oswaldo Barroso

A democracia está em jogo. Os interesses do povo brasileiro estão em jogo. Estão em jogo a nossa soberania e a nossa dignidade enquanto Nação. Está em jogo a nossa liberdade.

No momento em que se festejam os 30 anos da Constituição Cidadã, urge atentar para o que estabelece o seu artigo terceiro como objetivo pétreo: "Construir uma sociedade livre, justa e solidária".

Mas urge, acima de tudo, não perder de vista que essa conquista não se deu por um passe de mágica, tampouco pela benevolência dos que estiveram à frente do regime ditatorial imposto aos brasileiros com o golpe de 1964  ---  bem como aqueles que dele se beneficiaram em qualquer medida e em qualquer instância  ---  responsáveis pelo trucidamento do país e parte significativa do seu povo. 

A Constituição e o que ela representa em nome da cidadania no Brasil, são frutos do sacrifício de muitos brasileiros, gente que lutou e que, não raro, derramou seu sangue ou perdeu a própria vida para que pudéssemos viver, desde o fim da ditadura militar e a consolidação das conquistas populares em termos de direitos civis e políticos, a partir de 1985, as nossas garantias fundamentais na perspectiva de um Estado de Direito.

Nos últimos anos, por força de uma política de atenção para com os que mais necessitam, os índices de pobreza caíram significativamente e o Brasil saiu do mapa da miséria. Foram criadas 20 milhões de novas vagas no mercado de trabalho, e as portas das universidades, através de programas de incentivo como o ProUni, foram abertas para os menos favorecidos. A universidade pública cresceu e se espalhou por este imenso território. Políticas de transferência de renda, a exemplo do Bolsa Família, possibilitaram o resgate da dignidade humana de milhões de brasileiros e brasileiras.

Ingenuamente, acreditamos que fossem definitivos os avanços em termos de direitos civis, políticos e sociais no país. Ledo engano.   

É real o risco de retrocesso e dolorosamente previsíveis suas consequências.

Correm risco a democracia e o que advém dela: os direitos mais sagrados de um povo.

Muitos brasileiros estão amedrontados, e não sem motivos. 

As ameaças já não são simples ameaças, e suas consequências se fazem perceber nos atos de preconceito de raça e cultura: pessoas são hostilizadas, agredidas e, como no caso do artista popular Moa do Catendê, em Salvador, fria e covardemente assassinadas por expressarem suas convicções democráticas. Corpos são marcados a golpes de canivete com a suástica, o símbolo da intolerância nazista e dos horrores que seus seguidores apregoam.

Diante desse quadro tenebroso, o autoritarismo e seus tentáculos se propagam com uma rapidez assustadora, ganham as ruas, as instituições, os bares, restaurantes, os estádios, praças, escolas e, na contramão de tudo o que condiz com o seu nome, a própria universidade, a exemplo do que se verificou há poucos dias nos espaços da Universidade Estadual do Ceará, quando o professor Oswald Barroso foi objeto de uma repreensão, por parte de um Coordenador de Curso, pelo simples fato de que ministrava aula sobre a produção musical brasileira de protesto durante a ditadura militar. 

Para essa gente, é preciso negar a História a fim de tornar cada vez mais concreta a possibilidade de que ela se repita.

Em face de tudo isso, que se sabe uma urdidura em favor do retrocesso e do ataque frontal à democracia, em defesa do trabalho intelectual e o exercício pleno da atividade docente, vimos, por este instrumento, manifestar o nosso mais veemente repúdio à atitude do coordenador de curso da UECE ora referido, e tornar público o nosso irrestrito apoio, na pessoa do professor Oswaldo Barroso, a todos os professores, intelectuais e artistas que venham sendo cerceados em suas atividades profissionais, fora ou dentro da sala de aula.