sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Cinema Falado, poema cantado

Em termos artísticos, gosto de dar-me às subjetivações: Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, estão para a Música Popular Brasileira assim como Drummond, Manuel Bandeira e João Cabral de Mello Neto, para a literatura, não necessariamente nesta ordem. Com a diferença de que os três primeiros, dispensadas as justificativas, mais ainda aproximaram a poesia da música. Nesse sentido, não é abusivo dizê-los mais legitimamente poetas, considerando-se as raízes do gênero, pois que a poesia, sabe-se, nasceu junto com a música.

Não é muito lembrar que a palavra "lírico", do grego lyrikós, articula-se com a sua própria etimologia: canção que se vocalizava através da lira, instrumento musical de cordas. Nada mais convincente, portanto, para que se diga poetas os cantores, compositores e letristas aqui citados, razão por que se perde no vazio o argumento de que, dos três, apenas Chico Buarque estaria a merecer uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, uma vez que, além da música e do teatro, dedicou-se a escrever livros. O argumento, que beira à grosseria intelectual (e à insensibilidade estética mais escancarada), tenho ouvido, inclusive, de gente que lida com a literatura com razoável nível de intimidade --- o nome na ponta da língua, mas, por dever de etiqueta, não o direi.

É minha obrigação dizer, no entanto, uma vez que este texto não se destina unicamente a iniciados, que o assunto polêmico terá representado, mesmo, uma dificuldade para críticos, perdidos esses na busca insaciada e talvez inútil de separar a poesia cantada da textual, esta, meramente verbal. A discussão é remota, muito embora, desde a Renascença, tenha-se tornado usual distinguir essa dualidade existente entre a melodia e a palavra. Uma tolice.

Ainda com relação aos três nomes do cancioneiro destacados na introdução do presente texto, urge evidenciar que todos eles transitam pelo terreno do literário propriamente dito. Se Chico Buarque é hoje reconhecido como um romancista de enorme qualidade, sobram na poesia de Gilberto Gil méritos inegáveis para que seja ele considerado um valoroso poeta, o que torna dispensável explicar as razões pelas quais ocupa uma das cadeiras da Casa de Machado de Assis.

Quanto a Caetano Veloso, só mesmo o preconceito ou a ignorância intelectual para negar-lhe o status de escritor, filósofo, pensador, agitador cultural, cineasta (pasmem!) e poeta de extração clássica, muito embora popular no sentido da veiculação bem-sucedida de sua arte quase inclassificável.

É dele, além do clássico "Verdade Tropical", tão importante como interpretação do Brasil, guardadas as diferenças de olhares, quanto "Casa Grande & Senzala" ou "Raízes do Brasil", o pouco conhecido "Alegria, Alegria" (não a música, belíssima), coletânea de textos críticos e de intervenção (no sentido atribuído a Antonio Cândido) organizada por Wally Salomão e publicada pela editora Pedra Q Ronca.  

A propósito, não à toa, vira e mexe, um e outro amigo, sabendo-me "tiete" de Caetano Veloso, indagam-me a razão por que deixei passar em brancas nuvens, neste espaço, a festa de seus oitenta anos.

Ah, que imperdoável para quem ouve seus discos, lê e relê seus escritos, revê seu desconcertante "O Cinema Falado" e traz ao alcance da mão "Letra Só", a bela edição da poesia de Caetano Veloso em livro organizado por Eucanaã Ferraz (Companhia Das Letras, 2003).

Minha forma de reverenciar o artista completo que é Caetano Emmanuel Vianna Telles Veloso na data em que comemorou seus oitenta anos.

Em tempo: Se não o fez, ainda, ouça urgentemente o irretocável "Xande canta Caetano", de Xande dos Pilares. Há muito não se ouvia uma interpretação tão atenta ao espírito da letra, um jeito de cantar que dá brilho à dicção poética e ao ritmo musical da palavra articulada com tamanha exatidão, vigor e espontaneidade. Pérola.

 

 

 

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Villa Air-Bel, Transatlântico

Há algum tempo escrevi neste espaço sobre o livro "Villa Air Bel", da canadense Rosemary Sullivan. O nome deriva do lugar (um casarão), nos arredores de Marselha, que serviu de abrigo para um seleto grupo de intelectuais, artistas, cientistas, escritores e políticos de diferentes países nos dramáticos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, particularmente o período da ocupação da cidade de Paris pelos nazistas. Muito embora pontuado pelos horrores sob cuja ameaça viviam os fugitivos, o livro narra com notável elegância e estilo a curiosa convivência de gente importante para a inteligência universal, como Marc Chagall, André Breton e Max Ernst, Hannah Arendt, entre outros.

A autora, poeta de prestígio no Canadá (nasceu em Montreal, Québec), narra com suavidade e fina capacidade de observação o que foram esses anos terríveis, o que torna agradável a leitura do livro. Nesse sentido, pois, é que traça com sutileza o perfil psicológico das personalidades envolvidas, nunca assumindo posições ideológicas que possam, minimamente, redimensionar a importância de uns sobre outros, exceto quando se reporta à americana Mary Jayne Gold, sobre quem falarei mais adiante. No mais, Sullivan mantém a distância devida a um relato que mais documenta a história real que se propõe a erigir mitos. Nada se perde de mais significativo, ainda quando se volta para circunstâncias já muito exploradas em livros, filmes e outros registros históricos, a exemplo do suicídio do filósofo Walter Benjamin, já bem próximo de ultrapassar a fronteira entre França e Espanha, destino perseguido pelos inimigos do Terceiro Reich.

No quarto capítulo, intitulado "A Herdeira", é quando Sullivan discorre sobre a figura incontornável de Mary Jayne Gold, a herdeira que dá nome ao capítulo. Filha de um magnata da manufatura, Egbert Gold, cuja fortuna lhe proporciona uma vida de luxo e impensáveis aventuras, Mary Jayne alça uma posição de destaque no livro. Mas a razão disso, curiosamente, não se prende ao brilho pessoal de uma mulher culta, rica e dotada de uma beleza física estonteante. É aqui que a personagem (real, destaque-se), agiganta-se, assumindo um papel de tal modo relevante que sobrepuja o de outros "monstros" da cultura dita moderna, todos, como ela, envolvidos em debates impagáveis, confrontos violentos e paixões clandestinas. Explico mais adiante o destaque assumido por Gold.

Esses fatos, chego aonde quero, tornam o desenrolar desses acontecimentos reais algo para além de históricos, tomando-se o termo em seu sentido referencial, elevando-se a um nível de complexidade e sedução que beira o que existe de mais representativo da grande literatura. É ir ao streaming e assistir, na Netflix, à maravilhosa série "Transatlântico", uma das mais deslumbrantes realizações do cinema contemporâneo, com roteiro adaptado do romance The Flight Portfolio, escrito por Julie Orringer (não traduzido para o português) e conferir o que afirmo.

É aula de cinema, com apurado senso estético, fotografia esmerada e interpretações irretocáveis, com destaque para a atriz Gillian Jacobs (Mary Jayne) e Lucas Englander (Albert Hirschmann)*, e numeroso elenco de grandes nomes do cinema na atualidade.

A história é lindamente narrada, alternando casos passionais, situações aterrorizantes vividas pelos fugitivos, exposição crítica dos fundamentos ideológicos do fascismo e uma gama de elementos dramáticos que remetem aos tempos de hoje, sob ameaça inconteste de avanços da extrema direita fascista, corrupta e sanguinária que toma conta de diferentes países, inclusive o Brasil.

É nessa perspectiva, portanto, que se deve exaltar a figura de Mary Jayne Gold, quer no livro de Rosemary Sullivan quer no imperdível "Transatlântico", a série da Netiflix que você não deve deixar de ver. Nela, aliás, o relato sobre a personagem, como no livro, é naturalmente mais enfático, e apaixonante, na medida em que se pode conhecer melhor uma mulher incomum, voltada para ajudar as vítimas de um regime de terror, a que destina, com heroísmo invulgar, a sua ação solidária: sua riqueza financeira, seu aguçado senso de humanismo, sua valentia pessoal, sem jamais perder, por isso, a irresistível feminilidade que lhe confere um poder de sedução impressionante ao longo de toda a narrativa fílmica. Pena não ser recomendável, a essa altura, incorrer em spoiler para dizer o final de sua belíssima trajetória. Recomendo.

*Sobre Albert Hirschmann, economista de extração liberal, ouvi, recentemente, de José George Bezerra, estudioso da FGV, uma verdadeira aula de "humanomia", uma economia calcada em elementos culturais, números e conceitos filosóficos que abrangem da vida à Arte.