Todos nós, aqui e além, por uma ou outra razão, um dia somos levados a mentir. Ou, se a palavra é forte e desenterra valores fundamentais que vão de encontro a ética, aos parâmetros de correção com que julgamos e somos julgamos, diga-se de outra forma, mais branda e eufemística. Faltamos com a verdade, naquilo que é a sua absoluta essência. É assim que acontece, por exemplo, no amor, não no amor sublime de que nos falou Platão, o amor que é o Belo, porque é a Verdade. Falo do amor-paixão, aquele que nos rouba da realidade e faz-nos nefelibatas, palavra feia que serve para definir aquele que anda nas nuvens. Quando somos tocados por esse amor, a nossa verdade não pode ser medida com o metro da vida real, e só quem ama é capaz, como imortalizou Bilac, capaz de ouvir e entender estrelas.
Ferreira Gullar, falando desse amor-paixão, disse certa vez: - “Aprendi que não é fácil dizer eu te amo sem pelo menos achar que ama e, quando a pessoa mente, a outra percebe, e se não percebe é porque não quer perceber, isto é: quer acreditar na mentira. Claro, tem gente que quer ouvir essa expressão mesmo sabendo que é mentira. O mentiroso, nesses casos, não merece punição alguma.” Que bela definição nos dá com suas palavras o poeta maranhense. É isto: quem vive o amor-paixão vive uma mágica experiência de ilusão, da qual, ainda que se deem a ver os sinais quando o vulcão acalma, não admite sair. E a sua percepção da verdade é sempre equivocada. Intencionalmente equivocada. O que seria, na contramão dessa irrealidade, dessa fantasia de que não queremos sair quando estamos apaixonados, a verdade, então?
Bem, talvez estejamos diante de uma rara possibilidade de compreender aquilo que, no mais das vezes, não se tem compreendido. Pelo menos não tem sido consensualmente compreendido. Sobre o tema há uma gigantesca produção acadêmica e literária, o que não significa que tenham sido esgotadas as perspectivas de discussão dessa matéria a um tempo tão simples e tão complexa. Ouso, por atrevimento ou direito conquistado, considere-se que já é longa a caminhada, arriscar alguma reflexão. É papel de quem lida com a palavra e faz dela um instrumento de trabalho, de quem escreve por diletantismo ou dependência subjetiva, e, por essas e outras razões, revela-se naquilo que torna público, sem pruridos ou constrangimento algum.
Acho que o que difere o amor-essência do amor-paixão, além das características mais evidentes que todos conhecemos tão bem, porque evidentes em suas manifestações, é a capacidade que o primeiro possui de perdoar, de ir no que há de mais fundo da verdade que o segundo não consegue perceber. Não há perfeição no amor-essência, o estado de ilusão que só ao amor-paixão é dado conhecer, na mentira transitória por que orienta os seus passos enquanto dura essa ilusão. Quando, na maturidade dos sentimentos, que os apaixonados chamam de desilusão, atravessamos a linha tênue que separa os dois amores, é chegada a hora de separar o joio do trigo, de pesar os defeitos e as virtudes que todo amante tem dentro de si. É chegada a hora de compreender a verdade-verdadeira sem a qual não existe o amor-essência, o único sentimento indispensável para a construção da felicidade numa relação. Aceitar o que agora deve, com propriedade, ser chamado de realidade e ir em frente, valorizando o essencial em lugar do supérfluo, é o que constitui, na mais funda dimensão da coisa, o segredo do para sempre, até que a morte separe os corações.
segunda-feira, 20 de julho de 2009
Amor-essência e amor-paixão
Professor de Estética, História da Arte, Literatura Dramática e Comunicação e Linguagem.
Escreve contos, crônicas e artigos de análise literária.
quinta-feira, 16 de julho de 2009
Quem sabe isso quer dizer amor
Certa vez escrevi neste mesmo espaço acerca da vida amorosa de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Falei das excentricidades que marcaram a vida do casal, pontuada, entre outras coisas, por um curioso pacto de liberdade que levaria um e outro a terem relacionamentos extraconjugais, homossexuais, inclusive. O caso continua a suscitar divergências e envolve questões culturais ainda inquietantes mesmo para os padrões da atualidade. Curioso.
Um desses casos e supostamente o mais conhecido, está documentado nas mais de 300 cartas que Simone de Beauvoir escreveu entre fins da década de quarenta e inícios da década de sessenta para o escritor americano Nelson Algren. O material foi publicado em livro, que tive a curiosidade de ler há algum tempo. Não sendo uma obra de grandes qualidades, a exemplo de O segundo sexo ou Cerimônia do adeus, ambos da feminista francesa, expõe a vida íntima de um caso de amor repleto de crises de ciúme, incompatibilidades, olhares desiguais sobre uma mesma situação da convivência etc. Enfim, em linhas gerais, o livro aborda as questões que todos conhecemos e que fazem parte de qualquer experiência de vida a dois. Um ponto, no entanto, parece-me mais relevante, e é sobre ele que gostaria de falar agora.
Para Beauvoir, a dor decorrente da ruptura de um relacionamento costuma durar mais que o próprio amor, ou seja, a nostalgia e o sofrimento decorrentes do insucesso de uma relação de dez meses, por exemplo, persistirão por mais tempo ainda. A afirmação de Beauvoir, nota-se, é discutível sob muitos aspectos, até porque a resposta diante de uma desilusão é diferente entre uma e outra pessoa. Conheço amigos que padeceram este martírio por muitos anos, assim como tenho outros que reagiram bem ao final da primeira semana e conseguiram reconstruir suas vidas rapidamente. Eu mesmo vivi uma experiência dessas e o tempo de superação me pareceu a eternidade. Quem ainda não terá passado por isso?
A cronista gaúcha Martha Medeiros, por sinal, plasmou sobre a afirmação da feminista francesa uma crônica muito interessante. Está no livro Non-Stop e intitula-se Amores interrompidos. Nela, Medeiros chama a atenção para um aspecto que me parece mais significativo sobre o tema. Diz ela: - "Enquanto estamos vivendo um amor, não teorizamos a respeito. Só a partir da ruptura é que fazemos um inventário dos ganhos e das perdas, e, por estarmos emocionalmente fragilizados, acabamos por superdimensionar nossa solidão involuntária." Perfeito, Martha.
Que fazer então, quando sabemos que, na sua grande maioria, cedo ou tarde as relações vão fracassar e a dor e a saudade advindas dessa realidade serão inevitáveis? Ah, leitor, deparamos agora com uma questão insolúvel. Não há receitas, não existem métodos eficientes. Toda relação é feita de encontros e desencontros, está alicerçada sobre individualidades que trazem em si grandes diferenças. Querer o equilíbrio numa relação, embora sendo esta a única alternativa para a longevidade do amor, é conquista de poucos e o maior desafio talvez seja outro: saber conviver com as idas e vindas, com os deslizes, as fragilidades do outro, os altos e baixos do relacionamento, coisas que fazem parte da história dos casais. O erro está em radicalizar, em não saber vivenciar o milagre da tolerância, em ser incapaz de subestimar algumas faltas da pessoa que um dia nos pareceu sem defeitos - o homem ou a mulher dos nossos sonhos - em reconhecimento das qualidades de que é possuidora. E, o que é indispensável: saber perdoar. Quem sabe é isso que quer dizer amor e seja este o caminho para a felicidade a dois.
Um desses casos e supostamente o mais conhecido, está documentado nas mais de 300 cartas que Simone de Beauvoir escreveu entre fins da década de quarenta e inícios da década de sessenta para o escritor americano Nelson Algren. O material foi publicado em livro, que tive a curiosidade de ler há algum tempo. Não sendo uma obra de grandes qualidades, a exemplo de O segundo sexo ou Cerimônia do adeus, ambos da feminista francesa, expõe a vida íntima de um caso de amor repleto de crises de ciúme, incompatibilidades, olhares desiguais sobre uma mesma situação da convivência etc. Enfim, em linhas gerais, o livro aborda as questões que todos conhecemos e que fazem parte de qualquer experiência de vida a dois. Um ponto, no entanto, parece-me mais relevante, e é sobre ele que gostaria de falar agora.
Para Beauvoir, a dor decorrente da ruptura de um relacionamento costuma durar mais que o próprio amor, ou seja, a nostalgia e o sofrimento decorrentes do insucesso de uma relação de dez meses, por exemplo, persistirão por mais tempo ainda. A afirmação de Beauvoir, nota-se, é discutível sob muitos aspectos, até porque a resposta diante de uma desilusão é diferente entre uma e outra pessoa. Conheço amigos que padeceram este martírio por muitos anos, assim como tenho outros que reagiram bem ao final da primeira semana e conseguiram reconstruir suas vidas rapidamente. Eu mesmo vivi uma experiência dessas e o tempo de superação me pareceu a eternidade. Quem ainda não terá passado por isso?
A cronista gaúcha Martha Medeiros, por sinal, plasmou sobre a afirmação da feminista francesa uma crônica muito interessante. Está no livro Non-Stop e intitula-se Amores interrompidos. Nela, Medeiros chama a atenção para um aspecto que me parece mais significativo sobre o tema. Diz ela: - "Enquanto estamos vivendo um amor, não teorizamos a respeito. Só a partir da ruptura é que fazemos um inventário dos ganhos e das perdas, e, por estarmos emocionalmente fragilizados, acabamos por superdimensionar nossa solidão involuntária." Perfeito, Martha.
Que fazer então, quando sabemos que, na sua grande maioria, cedo ou tarde as relações vão fracassar e a dor e a saudade advindas dessa realidade serão inevitáveis? Ah, leitor, deparamos agora com uma questão insolúvel. Não há receitas, não existem métodos eficientes. Toda relação é feita de encontros e desencontros, está alicerçada sobre individualidades que trazem em si grandes diferenças. Querer o equilíbrio numa relação, embora sendo esta a única alternativa para a longevidade do amor, é conquista de poucos e o maior desafio talvez seja outro: saber conviver com as idas e vindas, com os deslizes, as fragilidades do outro, os altos e baixos do relacionamento, coisas que fazem parte da história dos casais. O erro está em radicalizar, em não saber vivenciar o milagre da tolerância, em ser incapaz de subestimar algumas faltas da pessoa que um dia nos pareceu sem defeitos - o homem ou a mulher dos nossos sonhos - em reconhecimento das qualidades de que é possuidora. E, o que é indispensável: saber perdoar. Quem sabe é isso que quer dizer amor e seja este o caminho para a felicidade a dois.
Professor de Estética, História da Arte, Literatura Dramática e Comunicação e Linguagem.
Escreve contos, crônicas e artigos de análise literária.
segunda-feira, 13 de julho de 2009
O homem também chora
Para Valéria
Menino, quem nunca ouviu dos mais velhos a assertiva: - “Pare com isso, homem não chora!” ou coisa semelhante, notadamente estando em público? Claro, por mais que doesse o machucado ou fosse imensa a ferida, havia sempre alguém para lembrar a norma implacável. Chorar não é coisa de homem. Ou não era, a concluir pelo que dizem pesquisas recentes.
Li isto numa matéria no Times On Line, uma curiosidade nada condizente com os valores educacionais de um passado não muito remoto. Homem chora, sim. E, o que constitui a grande novidade: para as mulheres, homem que chora, mesmo estando diante de pessoas estranhas, revela com suas lágrimas sensibilidade, franqueza e outros atributos positivos para a sua imagem. Na contramão disso, acreditem, a ‘mulherada’ considera que, para a mulher, via de regra, chorar em público é sinônimo de insegurança, fraqueza, incapacidade para reverter ou superar dificuldades. Isto quando não é ainda mais duro o julgamento: - “Bobinha, histérica, está querendo aparecer.” Cruel, mas é o que dizem as referidas pesquisas. Não penso assim.
Da minha parte, que tenho a sensibilidade à flor da pele, confesso, a pesquisa não importa tanto. Minto, importa pelo que traz sobre aquilo que já sabia: a emotividade não tem sexo, e tudo parece estar ligado mesmo à questão cultural. E aí, vem Freud de novo. Sim, não chorar em público, no que respeita ao homem, acho que está de alguma forma ligado ao superego, uma das três categorias freudianas da personalidade, lembram? Exato. Estou falando daqueles conceitos que causaram o maior furor na virada do século: id, ego e superego.
Aliás, por falar em estrutura da personalidade, a palavra vem de persona, que, todos sabem, é o nome que se dava à máscara que usavam os atores para representar. Isto, para representar. É verdade que, com o tempo, a palavra sofreu mudanças e hoje em dia serve para definir o que em nós é autenticidade. Mas isso são outros quinhentos. Voltemos a Freud. Superego é como o gênio de Viena conceituava aquilo que, na estrutura da nossa personalidade, atua como juiz ou censor, algo como o depósito moral que controla as nossas ações, que serve de modelo para as nossas condutas. Em aparente silêncio, o superego atua com a finalidade de restringir, julgar a atividade do ego. Então? É aqui que acredito estar o cerne da questão explorada pela pesquisa.
Cresci vendo o meu pai, que era um parâmetro reconhecido de integridade e firmeza de caráter, emocionar-se sempre que um filho adoecia ou viajava. Sobre isso, dizia sempre que lhe perguntavam de que filho gostava mais: - “Daquele que estiver doente ou ausente.” Que belo homem foi meu pai. Pois bem. Assim, entre as muitas razões que me deu para admirá-lo, meu velho pai ensinou com seu exemplo que homem chora, sim, e que isso só o faz maior em sua sensibilidade e franqueza. E há, acaso, lição mais inesquecível que o exemplo de um pai? Para não perder esta boa chance, no entanto, para os enrustidos que disfarçam as lágrimas ou vão ao banheiro, envergonhadamente, dar vazão ao pranto, fica da pesquisa a boa novidade. Agora, está provado: é bonito, para o homem, chorar.
Menino, quem nunca ouviu dos mais velhos a assertiva: - “Pare com isso, homem não chora!” ou coisa semelhante, notadamente estando em público? Claro, por mais que doesse o machucado ou fosse imensa a ferida, havia sempre alguém para lembrar a norma implacável. Chorar não é coisa de homem. Ou não era, a concluir pelo que dizem pesquisas recentes.
Li isto numa matéria no Times On Line, uma curiosidade nada condizente com os valores educacionais de um passado não muito remoto. Homem chora, sim. E, o que constitui a grande novidade: para as mulheres, homem que chora, mesmo estando diante de pessoas estranhas, revela com suas lágrimas sensibilidade, franqueza e outros atributos positivos para a sua imagem. Na contramão disso, acreditem, a ‘mulherada’ considera que, para a mulher, via de regra, chorar em público é sinônimo de insegurança, fraqueza, incapacidade para reverter ou superar dificuldades. Isto quando não é ainda mais duro o julgamento: - “Bobinha, histérica, está querendo aparecer.” Cruel, mas é o que dizem as referidas pesquisas. Não penso assim.
Da minha parte, que tenho a sensibilidade à flor da pele, confesso, a pesquisa não importa tanto. Minto, importa pelo que traz sobre aquilo que já sabia: a emotividade não tem sexo, e tudo parece estar ligado mesmo à questão cultural. E aí, vem Freud de novo. Sim, não chorar em público, no que respeita ao homem, acho que está de alguma forma ligado ao superego, uma das três categorias freudianas da personalidade, lembram? Exato. Estou falando daqueles conceitos que causaram o maior furor na virada do século: id, ego e superego.
Aliás, por falar em estrutura da personalidade, a palavra vem de persona, que, todos sabem, é o nome que se dava à máscara que usavam os atores para representar. Isto, para representar. É verdade que, com o tempo, a palavra sofreu mudanças e hoje em dia serve para definir o que em nós é autenticidade. Mas isso são outros quinhentos. Voltemos a Freud. Superego é como o gênio de Viena conceituava aquilo que, na estrutura da nossa personalidade, atua como juiz ou censor, algo como o depósito moral que controla as nossas ações, que serve de modelo para as nossas condutas. Em aparente silêncio, o superego atua com a finalidade de restringir, julgar a atividade do ego. Então? É aqui que acredito estar o cerne da questão explorada pela pesquisa.
Cresci vendo o meu pai, que era um parâmetro reconhecido de integridade e firmeza de caráter, emocionar-se sempre que um filho adoecia ou viajava. Sobre isso, dizia sempre que lhe perguntavam de que filho gostava mais: - “Daquele que estiver doente ou ausente.” Que belo homem foi meu pai. Pois bem. Assim, entre as muitas razões que me deu para admirá-lo, meu velho pai ensinou com seu exemplo que homem chora, sim, e que isso só o faz maior em sua sensibilidade e franqueza. E há, acaso, lição mais inesquecível que o exemplo de um pai? Para não perder esta boa chance, no entanto, para os enrustidos que disfarçam as lágrimas ou vão ao banheiro, envergonhadamente, dar vazão ao pranto, fica da pesquisa a boa novidade. Agora, está provado: é bonito, para o homem, chorar.
Professor de Estética, História da Arte, Literatura Dramática e Comunicação e Linguagem.
Escreve contos, crônicas e artigos de análise literária.
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