Carl Theodor Dreyer figura entre os cineastas de minha preferência. Poucos filmes terão me impressionado tanto e de forma tão marcante como o comovente O martírio de Joana d'Arc (La passion de Jeanne d'Darc, 1928). Quanto o vi pela primeira vez, tomado de emoção diante de uma arte absolutamente desconcertante, com seus planos-sequências longos e lentos, mas sobremaneira os closes como só mesmo Ingmar Bergman seria capaz de fazer iguais, procurei conhecer mais esse cineasta dinamarquês movido a fé e incontido sentimento trágico da vida.
Só então deparei com curiosidades não raro chocantes. Para que o leitor possa ter uma ideia do que estou dizendo, aqui vai uma delas: Dreyer era um diretor tão perfeccionista, de tal modo obcecado com a busca de resultados exatos para os seus filmes, que, para emprestar um naturalismo irretocável à personagem de Joana d'Darc, manteve em cativeiro, privada de qualquer conforto ou alimentação satisfatória, assistida apenas nas necessidades mais básicas, a atriz Maria Falconetti. Se obteve desse rigor doentio uma interpretação cênica jamais superada (o martírio de Joana d'Arc foi filmado em incontáveis versões), contudo, é dramático o que ocorreria à bela atriz, que enlouqueceu ao final das gravações e nunca mais voltaria a gozar de saúde mental.
Quanto ao artista, deixados à parte tais excessos, pelo que viria a ser muitas vezes condenado, é mesmo extraordinário. Um de seus outros filmes, A palavra, é literalmente uma coisa de louco, uma dessas raríssimas obras do cinema capazes de nos tirar o fôlego, de nos deixar mudos diante da grandeza artística com que Dreyer nos contou uma história a um tempo tão simples e tão esplêndida: um fazendeiro viúvo, mora no campo com seus três filhos. O primogênito é ateu, o mais novo se apaixona perdidamente pela filha de um alfaiate, mas é impedido de levar adiante o romance, pelo pai, por se tratar de uma moça que segue outra religião. O do meio, personagem central do enredo, entra para um convento, dilacerado de dúvidas quanto ao verdadeiro sentido da fé, enlouquece e passa a achar que é Jesus Cristo. No final do filme, quando a esposa do irmão mais velho morre em trabalho de parto, ele incorpora os poderes de Cristo e a ressuscita. A palavra, pois, é uma obra de arte profunda, complexa, inquietante, sobre a crença, o sentido da religião e os limites da natureza humana.
A beleza da película, com sua fotografia em preto e branco inigualável, o ritmo angustiante e sedutor de sua narrativa construída com um domínio de linguagem poucas vezes atingido no grande cinema, associados a uma determinação em professar de modo convincente a palavra de Jesus Cristo, fazem da arte de Carl Theodor Dreyer um caso singular, em que pesem as limitações dos meios à época em que foi realizada.
Tocado pelo clima da Semana Santa, dediquei-me esses dias a ler um roteiro inédito do diretor dinamarquês intitulado Jesus de Nazaré. Que coisa maravilhosa! Imagino o que seria o filme, com o seu poder incomparável de tocar o mais profundo da alma, de nos tornar mais humanos, mais em sintonia com os valores cristãos professados, no caso, nesses escritos tão sábios e enriquecedores de Carl Theodor Dreyer. Que pena tenha morrido antes de fazer o que, estou certo, seria o seu mais belo filme.
Feliz Páscoa!
Só então deparei com curiosidades não raro chocantes. Para que o leitor possa ter uma ideia do que estou dizendo, aqui vai uma delas: Dreyer era um diretor tão perfeccionista, de tal modo obcecado com a busca de resultados exatos para os seus filmes, que, para emprestar um naturalismo irretocável à personagem de Joana d'Darc, manteve em cativeiro, privada de qualquer conforto ou alimentação satisfatória, assistida apenas nas necessidades mais básicas, a atriz Maria Falconetti. Se obteve desse rigor doentio uma interpretação cênica jamais superada (o martírio de Joana d'Arc foi filmado em incontáveis versões), contudo, é dramático o que ocorreria à bela atriz, que enlouqueceu ao final das gravações e nunca mais voltaria a gozar de saúde mental.
Quanto ao artista, deixados à parte tais excessos, pelo que viria a ser muitas vezes condenado, é mesmo extraordinário. Um de seus outros filmes, A palavra, é literalmente uma coisa de louco, uma dessas raríssimas obras do cinema capazes de nos tirar o fôlego, de nos deixar mudos diante da grandeza artística com que Dreyer nos contou uma história a um tempo tão simples e tão esplêndida: um fazendeiro viúvo, mora no campo com seus três filhos. O primogênito é ateu, o mais novo se apaixona perdidamente pela filha de um alfaiate, mas é impedido de levar adiante o romance, pelo pai, por se tratar de uma moça que segue outra religião. O do meio, personagem central do enredo, entra para um convento, dilacerado de dúvidas quanto ao verdadeiro sentido da fé, enlouquece e passa a achar que é Jesus Cristo. No final do filme, quando a esposa do irmão mais velho morre em trabalho de parto, ele incorpora os poderes de Cristo e a ressuscita. A palavra, pois, é uma obra de arte profunda, complexa, inquietante, sobre a crença, o sentido da religião e os limites da natureza humana.
A beleza da película, com sua fotografia em preto e branco inigualável, o ritmo angustiante e sedutor de sua narrativa construída com um domínio de linguagem poucas vezes atingido no grande cinema, associados a uma determinação em professar de modo convincente a palavra de Jesus Cristo, fazem da arte de Carl Theodor Dreyer um caso singular, em que pesem as limitações dos meios à época em que foi realizada.
Tocado pelo clima da Semana Santa, dediquei-me esses dias a ler um roteiro inédito do diretor dinamarquês intitulado Jesus de Nazaré. Que coisa maravilhosa! Imagino o que seria o filme, com o seu poder incomparável de tocar o mais profundo da alma, de nos tornar mais humanos, mais em sintonia com os valores cristãos professados, no caso, nesses escritos tão sábios e enriquecedores de Carl Theodor Dreyer. Que pena tenha morrido antes de fazer o que, estou certo, seria o seu mais belo filme.
Feliz Páscoa!