No teu cabelo negro brilham estrelas/cadentes, arredias./Para onde irão elas/tão cedo resolutas?/ -- vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia/amassada e brilhante como a lua.
(Bishop, para Lota, em Banho de Xampu)
Tecnicamente perfeito, Flores Raras, o filme de Bruno Barreto em exibição nos principais cinemas da cidade, é a grande novidade cinematográfica do ano. Ambientado no Rio de Janeiro a partir de inícios dos anos 50, narra o avassalador romance entre a arquiteta Maria Carlota Costellat Macedo Soares e a poeta americana Elizabeth Bishop, um protótipo de relação homoafetiva que duraria algo em torno de 20 anos e teria um desfecho trágico em 1967, com o suicídio de Lota, como era conhecida a artista brasileira, em Nova York.
Dito assim, todavia, o resumo acima não é bastante para dar uma ideia de como Barreto encontrou caminhos para ir além do que poderia ser apenas mais um filme bem feito sobre relacionamentos homossexuais. É preciso lançar o olhar para o fato de que Flores Raras vai muito além disso: realizado a partir de um roteiro extremamente bem construído, uma direção de atores que beira o sublime e uma fotografia de tirar o folego, para o que é decisiva a beleza natural de Petrópolis, onde se localiza o sítio Santarém, onde o casal passa a viver desde a chegada de Bishop ao Brasil, o filme de Bruno Barreto resgata uma história de amor que envolve duas mulheres extremamente talentosas. Mas o faz com um rigor de pesquisa que torna o filme um documento importante sobre a história do país entre os anos 50-60, momento em que, entre outros acontecimentos marcantes, sobressai o golpe militar de 1964. A cena em que Bishop, enquanto ouve a notícia pelo rádio, acompanha através da janela rapazes, indiferentes, jogando uma pelada nas areias de Copacabana, exemplifica bem a sensibilidade com que Barreto acrescenta a Flores Raras um tempero político: "Que país é este em que um presidente eleito pelo povo é deposto e os homens se divertem na praia?" (cito de memória), pergunta a personagem a uma dada altura do filme.
O comentário de Elizabeth Bishop sobre a indiferença dos brasileiros frente às questões políticas do país, felizmente postas por terra com as manifestações de rua no mês passado, serve, contudo, para evidenciar o olhar arrogante da escritora acerca das nossas muitas mazelas. Para ela, como é possível conferir na bela apresentação que Paulo Henriques Britto faz para Os poemas escolhidos de Elizabeth Bishop, editado pela Companhia das Letras, "como país o Brasil não tem saída -- não é trágico como o México, não, mas apenas letárgico, egoísta, meio complacente, meio maluco". Verdade à parte, o que não atenua a indelicadeza de quem foi recebida com todas as honras pelo brasileiros, sabe-se que Bishop não poupava palavras em seu desânimo contra o Brasil, notadamente o Rio de Janeiro, sobre cuja cidade fez ainda uma declaração impiedosa: "Todas as multidões, ônibus, bondes, lojas, cozinhas são tão sujos, escuros, sebosos!". Ou sobre a vida cultural dos brasileiros: "Os prazeres intelectuais são poucos e pouco sérios, de modo geral!". Alguma admiração da poeta acerca do Brasil, se há, vem sempre embalada por uma surpresa em face do exotismo do país. É assim que reage, também, quando é hora de se referir, como um profeta, aos nossos homens de letras (e um político notável), como Carlos Lacerda, grande amigo de Lota: "... honesto, sim, mas ele tem um ego grande demais e provavelmente vai acabar como um político cínico dentro de dez anos". A história viria a confirmar.
Bruno Barreto, embora explorando com sutileza o espírito cáustico de Bishop, de quem omitiu em grande parte a mordacidade das críticas dirigidas aos brasileiros, construiu a personagem com notável rigor, emprestando-lhe, a exemplo do que fez com o perfil psicológico de Lota (irrepreensivelmente interpretada por Glória Pires) uma densidade que torna o filme exemplar do ponto de vista dramático. Ao que se soma, como dissemos, uma composição de quadro irretocável, em que a textura da imagem e os efeitos de luz (o colorido é sedutor) fazem sobressair uma direção de arte digna de nota. Vale conferir.
(Bishop, para Lota, em Banho de Xampu)
Tecnicamente perfeito, Flores Raras, o filme de Bruno Barreto em exibição nos principais cinemas da cidade, é a grande novidade cinematográfica do ano. Ambientado no Rio de Janeiro a partir de inícios dos anos 50, narra o avassalador romance entre a arquiteta Maria Carlota Costellat Macedo Soares e a poeta americana Elizabeth Bishop, um protótipo de relação homoafetiva que duraria algo em torno de 20 anos e teria um desfecho trágico em 1967, com o suicídio de Lota, como era conhecida a artista brasileira, em Nova York.
Dito assim, todavia, o resumo acima não é bastante para dar uma ideia de como Barreto encontrou caminhos para ir além do que poderia ser apenas mais um filme bem feito sobre relacionamentos homossexuais. É preciso lançar o olhar para o fato de que Flores Raras vai muito além disso: realizado a partir de um roteiro extremamente bem construído, uma direção de atores que beira o sublime e uma fotografia de tirar o folego, para o que é decisiva a beleza natural de Petrópolis, onde se localiza o sítio Santarém, onde o casal passa a viver desde a chegada de Bishop ao Brasil, o filme de Bruno Barreto resgata uma história de amor que envolve duas mulheres extremamente talentosas. Mas o faz com um rigor de pesquisa que torna o filme um documento importante sobre a história do país entre os anos 50-60, momento em que, entre outros acontecimentos marcantes, sobressai o golpe militar de 1964. A cena em que Bishop, enquanto ouve a notícia pelo rádio, acompanha através da janela rapazes, indiferentes, jogando uma pelada nas areias de Copacabana, exemplifica bem a sensibilidade com que Barreto acrescenta a Flores Raras um tempero político: "Que país é este em que um presidente eleito pelo povo é deposto e os homens se divertem na praia?" (cito de memória), pergunta a personagem a uma dada altura do filme.
O comentário de Elizabeth Bishop sobre a indiferença dos brasileiros frente às questões políticas do país, felizmente postas por terra com as manifestações de rua no mês passado, serve, contudo, para evidenciar o olhar arrogante da escritora acerca das nossas muitas mazelas. Para ela, como é possível conferir na bela apresentação que Paulo Henriques Britto faz para Os poemas escolhidos de Elizabeth Bishop, editado pela Companhia das Letras, "como país o Brasil não tem saída -- não é trágico como o México, não, mas apenas letárgico, egoísta, meio complacente, meio maluco". Verdade à parte, o que não atenua a indelicadeza de quem foi recebida com todas as honras pelo brasileiros, sabe-se que Bishop não poupava palavras em seu desânimo contra o Brasil, notadamente o Rio de Janeiro, sobre cuja cidade fez ainda uma declaração impiedosa: "Todas as multidões, ônibus, bondes, lojas, cozinhas são tão sujos, escuros, sebosos!". Ou sobre a vida cultural dos brasileiros: "Os prazeres intelectuais são poucos e pouco sérios, de modo geral!". Alguma admiração da poeta acerca do Brasil, se há, vem sempre embalada por uma surpresa em face do exotismo do país. É assim que reage, também, quando é hora de se referir, como um profeta, aos nossos homens de letras (e um político notável), como Carlos Lacerda, grande amigo de Lota: "... honesto, sim, mas ele tem um ego grande demais e provavelmente vai acabar como um político cínico dentro de dez anos". A história viria a confirmar.
Bruno Barreto, embora explorando com sutileza o espírito cáustico de Bishop, de quem omitiu em grande parte a mordacidade das críticas dirigidas aos brasileiros, construiu a personagem com notável rigor, emprestando-lhe, a exemplo do que fez com o perfil psicológico de Lota (irrepreensivelmente interpretada por Glória Pires) uma densidade que torna o filme exemplar do ponto de vista dramático. Ao que se soma, como dissemos, uma composição de quadro irretocável, em que a textura da imagem e os efeitos de luz (o colorido é sedutor) fazem sobressair uma direção de arte digna de nota. Vale conferir.