Há muito não me sentia tão agredido com uma notícia de jornal. Refiro-me à bestialidade levada a efeito por moradores de Morrinhos, periferia de Guarujá-SP, contra a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, 33, mãe de dois filhos, morta sob maus-tratos impiedosos, que foram de chutes a pauladas, e um exótico 'tiro de misericórdia' de um ciclista que passava no local -- o pneu da bicicleta sobre o pescoço, como a selar a conquista de uma vitória.
Vi a notícia e cruzei os braços, tomado de um torpor para o qual não encontro palavras com que possa descrever. Aos poucos, recobrando a plena consciência do que acabara de acompanhar pelo noticiário, com direito a imagens registradas pelo celular de um transeunte, entreguei-me a uma atitude impotente de reflexão sobre o fato. Pavoroso, hediondo, bárbaro, no sentido mais negativo da expressão.
O linchamento, que haverá de ter comovido toda uma Nação, deveu-se ao fato de que a vítima fora confundida com uma mulher a quem são atribuídas tentativas de sequestro de menores para práticas de magia negra. A mesma polícia informaria: no Guarujá, não há registros de desaparecimento de crianças e as histórias de sequestro são improcedentes. Meu Deus.
O pior: fosse mesmo Fabiane a mulher contra quem se veiculavam tais desconfianças, pela internet, como se ficou sabendo, nem mesmo isso torna aceitável o que se fez. É inumano, lembra ocorrências da Idade Média, a exemplo do que ficou documentado na peça As bruxas de Salem, de Artur Miller, levada no cinema pelo diretor Nicholas Hytner, em 1996.
Ambos, peça e filme, infelizmente, foram inspiradas em fatos reais. No estado do Massachusetts, Estados Unidos, em fins do século XVII, uma escrava, Tituba, narrou para amigas histórias vodus, próprias do imaginário da África Ocidental. Como as moças tivessem pesadelos na mesma madrugada, Tituba foi considerada praticante de magias negras capazes de "embruxar" suas ouvintes.
Presa, com outras mulheres, também julgadas "culpadas", Tituba foi torturada e finalmente executada. Mais tarde, ficou-se sabendo, os próprios acusadores reconheceram ter cometido uma injustiça. Mas já era tarde.
O caso de Guarujá, para além do que guarda de bestial, reedita o que parece vir se tornando uma prática comum, aceita como natural por parte significativa do que representa a chamada opinião pública. Dessa feita, que esse tipo de "justiça" ocorre quase sempre a pessoas pobres, cujas verdades mais íntimas são desprezadas e suas identidades ignoradas, a vítima traz no nome a simbologia de sua vida pessoal e familiar, Fabiane Maria de Jesus, mais uma Maria, como tantas outras.
Amanhã, cuidemos, tal história de crueldade, que logo cairá no esquecimento, poderá ocorrer a todos aqueles contra quem forem assacadas acusações do gênero. É bastante que alguém use a internet como um insano fez na rede "Guarujá Alerta". É da natureza humana, curvo-me diante da triste possibilidade. Mas o que está em xeque, não tenho dúvidas, é a figura do Estado.
Segundo ouvi de uma entrevistada, Fabiane tingira os cabelos de louro havia poucas horas, e saíra de casa para, vaidosa, visitar uma amiga. Um exemplar da Bíblia sob o braço.
Vi a notícia e cruzei os braços, tomado de um torpor para o qual não encontro palavras com que possa descrever. Aos poucos, recobrando a plena consciência do que acabara de acompanhar pelo noticiário, com direito a imagens registradas pelo celular de um transeunte, entreguei-me a uma atitude impotente de reflexão sobre o fato. Pavoroso, hediondo, bárbaro, no sentido mais negativo da expressão.
O linchamento, que haverá de ter comovido toda uma Nação, deveu-se ao fato de que a vítima fora confundida com uma mulher a quem são atribuídas tentativas de sequestro de menores para práticas de magia negra. A mesma polícia informaria: no Guarujá, não há registros de desaparecimento de crianças e as histórias de sequestro são improcedentes. Meu Deus.
O pior: fosse mesmo Fabiane a mulher contra quem se veiculavam tais desconfianças, pela internet, como se ficou sabendo, nem mesmo isso torna aceitável o que se fez. É inumano, lembra ocorrências da Idade Média, a exemplo do que ficou documentado na peça As bruxas de Salem, de Artur Miller, levada no cinema pelo diretor Nicholas Hytner, em 1996.
Ambos, peça e filme, infelizmente, foram inspiradas em fatos reais. No estado do Massachusetts, Estados Unidos, em fins do século XVII, uma escrava, Tituba, narrou para amigas histórias vodus, próprias do imaginário da África Ocidental. Como as moças tivessem pesadelos na mesma madrugada, Tituba foi considerada praticante de magias negras capazes de "embruxar" suas ouvintes.
Presa, com outras mulheres, também julgadas "culpadas", Tituba foi torturada e finalmente executada. Mais tarde, ficou-se sabendo, os próprios acusadores reconheceram ter cometido uma injustiça. Mas já era tarde.
O caso de Guarujá, para além do que guarda de bestial, reedita o que parece vir se tornando uma prática comum, aceita como natural por parte significativa do que representa a chamada opinião pública. Dessa feita, que esse tipo de "justiça" ocorre quase sempre a pessoas pobres, cujas verdades mais íntimas são desprezadas e suas identidades ignoradas, a vítima traz no nome a simbologia de sua vida pessoal e familiar, Fabiane Maria de Jesus, mais uma Maria, como tantas outras.
Amanhã, cuidemos, tal história de crueldade, que logo cairá no esquecimento, poderá ocorrer a todos aqueles contra quem forem assacadas acusações do gênero. É bastante que alguém use a internet como um insano fez na rede "Guarujá Alerta". É da natureza humana, curvo-me diante da triste possibilidade. Mas o que está em xeque, não tenho dúvidas, é a figura do Estado.
Segundo ouvi de uma entrevistada, Fabiane tingira os cabelos de louro havia poucas horas, e saíra de casa para, vaidosa, visitar uma amiga. Um exemplar da Bíblia sob o braço.
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