quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Contemporânea de si mesma

A biografia de Ignez Fiuza, o que nos deu a ver a sua vida admirável, eu já conhecia à distância. Sabia que se tratava antes de tudo de uma mulher muito elegante e bela. Sabia dos relevantes serviços prestados à cultura cearense (à Arte sobretudo), com as mais de duas centenas de exposições de obras plásticas, grande parte das quais dignas de figurar nos anuários da grande Arte brasileira e mundial.  Sabia, claro, da sua visibilidade, da sua presença marcante nos eventos do que se convencionou chamar de high society. Da incentivadora das artes, da galerista, sabia, bem como que a ela se devia atribuir em medida generosa o fato de terem as artes plásticas cearenses saído do acanhamento a que estiveram condenadas sempre  --  um tipo de provincianismo que a impedia de atirar-se no seio da cultura brasileira do século XX.
 
Quis o destino, com suas travessuras, que se cruzassem a minha vida e a vida de Ticiana, filha de Ignez Fiuza, cujo nome, natural, constitui uma homenagem ao pintor cretense responsável pelo desenvolvimento da pintura renascentista, com o traço solto e as cores vibrantes que dona Ignez tanto admirava. 
 
Passo a passo, fomos construindo, assim, uma relação maior que uma simples relação de sogra e genro. Tínhamos muito em comum: os dois amávamos a arte, e com Ticiana, passei a frequentar a intimidade da casa de dona Ignez e a conviver estreitamente com ela, num tipo de amizade que me levou a nutrir-lhe um sentimento de verdadeiro fã, digo melhor, um sentimento de um quase filho, razão por que fui, rapidamente, atentando para um outro lado de sua personalidade, que, hoje posso afirmar, é muito mais iluminado que o conjunto de atributos que a máquina social exige das pessoas de vulto: o nome, a aparência, o modo de vestir-se, o desempenho nos ambientes requintados, a elegância no trato com os pares, numa palavra, a "forma" dentro da qual se encontra a identidade de uma pessoa notável.
 
Fui passando a conhecer o outro lado de uma figura humana extraordinária, dotada de um senso de humor agudo, de uma capacidade de improvisação incomum. Fui conhecendo a sua informalidade, se é que, aqueles que não a conheceram de perto, poderão acreditar no que digo. Ignez Fiuza informal? Sim, informal, com todas as letras. Tudo, é óbvio, sem perder o glamour, a ternura, a sensibilidade sem nome, a delicadeza dos gestos, a classe em doses elevadas, por fim: sem jamais deixar de ser a elegância personificada que foi.
 
Por isso, a princípio, ficava eu sem lugar para colocar as mãos diante de uma tirada desconcertante dela, um improviso, uma jocosidade, uma graça etc. Nunca um resmungo, uma rabugice, uma palavra grosseira, um gesto inapropriado em qualquer situação. Dela vinha, invariavelmente, uma alternativa de ação, um jeito de tirar beleza das coisas, bons exemplos, grandes lições. 
 
Pedras toscas, galhos secos de árvores, toros de madeira apanhados à margem dos caminhos, tudo, tudo, em suas mãos abençoadas, virava em pouco tempo verdadeiras obras de arte.
 
Disse Hannah Arendt, se não me falha a memória, que "sem o sopro da vida, o corpo humano é um cadáver; sem pensamento, o espírito humano está morto". Nada mais verdadeiro em se tratando de Ignez Fiuza. Esta a razão por que teve sempre um espírito tão irrequieto, uma necessidade anímica de mover o mundo, de embelezar a vida, de tirar leite de pedra, se preciso fosse, para criar, inventar formas, expressar  energias, sentidos, poesia, cores, linhas, traços, texturas... júbilo, êxtase, prodigalidade. Era a sua forma de existir!
 
Brincando, certa vez lhe disse: a senhora, dona Ignez, é a nossa Susan Sontag, nossa Simone de Beauvoir, nossa Camille Claudel, nossa Frida Kahlo! Ao que me respondeu, sem pestanejar, antes de abrir-se em gargalhada: "Obrigada, Drummond!"
 
Amiga das viagens, pelo Brasil e pelo mundo, há pouco mais de dois meses, esteve comigo e Ticiana no Rio de Janeiro. Estava radiante, como era costume estar. Fomos juntos a teatros, museus, livrarias, brindamos em restaurantes, festejamos a vida com um entusiasmo que vinha de sua presença tão feliz e tão nobre, tão cheia de brilho, de generosidade, de encanto... que jamais me pôde passar pela cabeça a ideia de que seria aquela a nossa última viagem.
 
Certa noite, enquanto saboreávamos um bom tinto, ela, Ticiana e eu, pediu-me que identificasse a música que se fazia ouvir. Tici, minha filha, vai ser esta a música dos meus 92 anos (que completaria a dois meses daquela data): "... quem não gosta de samba, bom sujeito não é, ou é ruim da cabeça ou doente do pé". Sem comentário.
 
Ontem, saí à varanda de casa para ver o anoitecer. Do mar, corria uma brisa calma e o horizonte guardava um silêncio que me pareceu inabitual. O fim da tarde era insuportavelmente triste, como se a natureza se martirizasse por não ter sido capaz de operar o milagre. Dona Ignez morreu.
 
Peito aberto, enquanto tento escrever a coluna de hoje, abro, ligeiramente trêmulo, o seu livro de memórias, Jogando Conversa Fora, sobre o qual produzi por ocasião do lançamento uma crônica neste espaço. Só agora, todavia, atento para o que nele é quase uma premonição:
 
 "Tudo tem começo, meio e fim.  Só que a gente vai vivendo, vivendo, sem se perceber dessa realidade. Agora, passando por quase essa 'derradeira fase' (friso da autora), como dizia Jane Fonda, quero segurar minhas forças que estão mais debilitadas e saber aceitar este meu novo momento."
 
A sutil maneira de ser coerente, de aceitar a novidade das coisas, de viver o presente com a intensidade possível. Dona Ignez, como vemos, foi uma contemporânea de si mesma, o que poucos, por inteiro, são capazes de ser. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
            
           

3 comentários:

  1. Lindo expressar desta saudade sem tamanho, da gratidão por ter bebido dessa fonte Inezgotável.

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  2. Lindo expressar desta saudade sem tamanho, da gratidão por ter bebido dessa fonte Inezgotável.

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  3. Testemunho sensível, suspiro poético que pereniza em palavras o sopro de vida da dama das Artes cearenses, Ignez Fiuza.

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