quarta-feira, 8 de junho de 2016

O estupro em tela

Clássico da filmografia de Stanley Kubrick, Laranja Mecânica, 1971, entrou para a história do cinema não somente pela força de sua arte em tudo extraordinária, mas pela polêmica que suscitou à época do seu lançamento. Há nele mais que uma música arrebatadora e uma linguagem que já projetara Antony Burguess, autor do livro em que se baseia, como um escritor inovador e dono de uma visão do futuro assustadora.

Uma sequência, particularmente, impressiona: uma mulher é estuprada por uma gangue ao som de Singing in the Rain. Lembro que a reação das pessoas durante a projeção (a nudez ridiculamente coberta por bolas pretas) traduzia bem o impacto diante de imagens tão chocantes  --  mãos no rosto, cenhos franzidos e gritos incontidos.

Violento, assustador, sordidamente vocacionado para a estetização da maldade humana eram palavras e expressões recorrentes mal se deixava a sala de projeção do filme. Jamais, todavia, ocorria a alguém achar possível tanta brutalidade se não na perspectiva de uma arte controvertida e, deixemos isso claro, absolutamente incontornável de um gênio do cinema.

Aos olhos do senso comum, a arte, no caso, nem mesmo imitava a vida. Indicado ao Oscar em quatro categorias, no entanto, Laranja Mecânica ganharia incontáveis prêmios mundo afora, com destaque para o de Melhor Filme e Melhor Direção dos Críticos de Cinema de Nova York. Passados tantos anos desde o seu lançamento, a película ainda seduz e choca, num misto de encantamento e escárnio que imortaliza a obra e seu realizador.

Outros filmes abordariam o tema do estupro, com destaque para o emblemático Irreversível, de Gaspar Noé, 2002. Num plano-sequência arrebatador, Alex, interpretada por Monica Bellucci, é violentada por quase dez minutos, durante os quais o espectador é preso sob o domínio de uma estética paradoxal, pois as imagens deslumbram e revoltam com igual intensidade.

Anos antes, a atriz Jodie Foster havia conquistado o seu primeiro Oscar na pele de uma mulher violentada em Acusados, 1988, de Jonathan Kaplan. A sequência do estupro impressiona pelo realismo da câmera de Kaplan, que construíra seu filme a partir de um roteiro de Tom Topor.  O filme, registre-se, foi inspirado num caso real ocorrido no estado americano de Massachusetts.

Semana que vem, já aguardado com grande expectativa, estreia aqui Paulina, do cineasta argentino Santiago Mitre (O Estudante, 2011), em que a protagonista que dá nome ao filme é violentada por adolescentes numa região pobre da Argentina. Não o vi e, por óbvio, não posso tecer sobre o longa de Mitre qualquer comentário, mas vejo com entusiasmo o timing da aludida estreia (refiro-me ao hediondo estupro de uma adolescente de 16 anos no Rio) como oportuna alternativa para que autoridades, entidades de classe, escolas e universidades possam levar a efeito um debate responsável sobre a violência contra a mulher, num país em que, a custo de inconfessáveis verdades, levanta-se a prumo um governo fascista e misógino.

 

 

 

 

 

 

 

 

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