quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Há 200 anos, o ensino de artes era prioridade

Numa coincidência irônica, para um governo que professa secundária a importância do ensino de artes nas escolas do país, o Brasil festeja em 2016 duzentos anos de um dos fatos mais relevantes para a cultura nacional: a Missão Artística Francesa, vinda aqui, em 1816, por força de um acordo envolvendo franceses e a Corte portuguesa. O projeto tinha por objetivo o ensino sistemático de artes e da arquitetura civil, contando, entre outros, com nomes de prestígio nos meios intelectuais da Europa, com destaque para Nicolas Antoine Taunay, Auguste Marie Taunay, Marc e Zéphyrin Ferrez, August-Henri-Victor Grandjean de Montigny  e ninguém menos que Jean-Baptiste Debret.

Se é verdade que a arte brasileira já contemplava alguma identidade com artistas de muito talento, desde as primeiras manifestações do Barroco mineiro, com pelo menos dois nomes de reconhecida importância, a exemplo de Aleijadinho e Mestre Ataíde, não é menos afirmativo dizer que a Missão Artística Francesa ressignificou a cultura brasileira e responde pelos primeiros sinais de nossa existência para o Velho Mundo. Mas é sobre Jean-Baptiste Debret que gostaria de tecer, na coluna de hoje, algumas considerações.

Trata-se de um dos mais prestigiados cronistas do Brasil. Explico-me: Debret, além de um pintor notável, cuja obra transita do neoclássico para o romântico, revelou-se um escritor de estilo absolutamente sedutor, tendo assinado uma obra incontornável sobre o Brasil de inícios do século XIX intitulada Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, que, dentro dos festejos pelo transcurso do segundo centenário da Missão Artística Francesa, acaba de chegar às livrarias em edição luxuosa da Imprensa Oficial do Governo de São Paulo.

O livro, com qualidade editorial digna de nota, reúne em um volume os três tomos originais da Viagem, com um registo iconográfico expressivo das litografias do pintor francês sobre o Brasil, abordando temas diversos: a Corte, costumes, eventos, arquitetura etc.; a paisagem brasileira, diversidade botânica etc.; grupos indígenas e escravos, indumentária, práticas e costumes, condições de vida, cativeiro etc.

Não cause estranheza o fato de que o registro se dê pela pena e pelo pincel de um artista europeu, coisa menos significativa se levarmos em conta que os registros de fundação do caráter nacional brasileiro, em sua quase totalidade, originam-se de viajantes. Sob este aspecto, todavia, a obra de Debret mais ainda sobressai e deve ser exaltada: embora convidado de um projeto oficial, o artista dedicou seu tempo, entre 1816 e 1831, não a documentar com suas belas aquarelas a vida da Corte, simplesmente. Há em cada prancha um olhar analítico, atento e sensível às contradições sociais do país em formação, razão por que a contemplação das imagens é mais que uma experiência estética sublime, o que já justificaria a importância de se travar contato com as 150 litografias cuidadosamente reproduzidas nesta edição de Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. O texto de Debret, sem curvar-se ao realismo comumente cobrado de registros do gênero (crônicas de viagem), revela a sensibilidade artística do autor, o que resulta leve, solto, não raro poético. Numa palavra: ler esta obra é, antes de tudo, imensamente prazeroso. Vejamos um trecho:

"Tudo assenta (...) neste país no escravo negro; na roça ele rega com seu suor as plantações do agricultor; na cidade o comerciante fá-lo carregar pesados fardos; se pertence ao capitalista é como operário ou na qualidade de moço de recados que aumenta a renda do senhor. Mas, sempre mediocremente alimentado e maltratado, contrai às vezes os vícios dos nossos domésticos, expondo-se a castigos públicos, revoltantes para um europeu (...). Sem o consolo do passado, sem a confiança do futuro, o africano esquece o presente (...) e como essas plantas cansadas de produzir, acaba definhando a duas mil léguas de sua pátria, sem nenhuma recompensa pelos seus serviços menosprezados".

Dando a ver as contradições de um sistema perverso, o livro encanta pelo que traz de significativo para a elevação de nossa sensibilidade e capacidade de enxergar com senso de justiça o que é preciso transformar. É o papel da arte, o que explica, em parte, o descaso de hoje para com a matéria. Mérito para D. João VI.

Pena que, sob muitos aspectos, o Brasil de hoje deixe tanto a desejar ao Brasil de duzentos anos atrás. À época, quando menos, havia da parte do governo sensibilidade para entender que um país se faz, como quis Lobato, com homens e livros, com incentivo à produção cultural e, o que é mais notável, com a percepção certeira de que o ensino de artes deve ser prioridade para qualquer governante que se pretenda sério. Reitero: que pena!

 

 


 

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Nem tudo está perdido

Desde a divulgação do nome para o Nobel de Literatura 2016, semana que passou, muita gente tem me abordado na rua: "O que acha de Bob Dylan como 'escritor'?" A pergunta, mais que uma simples curiosidade, por si só reflete um certo preconceito. Além de, em muitos casos, patentear completo desconhecimento do que representa Dylan para a poesia universal há muito tempo. No rigor da discussão, todavia, existem aspectos pertinentes para a dúvida em termos de teoria literária, sobre o que, faz anos, escrevi aqui mesmo neste espaço.

Sim, poema e letra de música, via de regra, atendem a processos criativos diferenciados: o primeiro (repare que estou usando o termo "poema" em vez de "poesia") surge sob a preocupação rítmica, submetido previamente a um código, o código verbal; a letra de música, não, pois esta, embora se valha do mesmo código, pode ser criada antes ou depois da melodia.

Antes de prosseguir, por oportuno, esclareço a diferença entre "poema" e "poesia": poema é a composição verbal escrita em versos, a poesia, para além disso, é a atmosfera, o clima, o estado de espírito, a intuição que desperta emoção, experiência do belo e do sentimento estético, independentemente do código: uma pintura, um movimento de dança, uma cena fílmica, uma canção, o cair da tarde etc., ocasionam dentro do homem o enlevo próprio do que se define modernamente como "poesia". É, pois, imaterial, prescinde da palavra escrita; o poema, não. O assunto, como se vê, trata de questões relativamente complicadas. Costumo dizer, por isso, que toda paixão envolve poesia, por mais que o ser apaixonado seja incapaz de construir poemas, expressão que resulta de uma intuição associada ao conhecimento, no caso, o conhecimento da técnica de escrever em versos, obedecendo a procedimentos racionais, portanto.

Teoria literária à parte, voltemos a Bob Dylan. Dylan, embora tenha se notabilizado mais como compositor e intérprete de sua obra, vai muito além do que faz um simples compositor. Ele trabalha suas letras com um rigor que extrapola o simples condicionamento melódico, escolhe a palavra com a atenção do poeta, mede com precisão cirúrgica a relação espaço/tempo, a força semântica e estética de cada palavra e, o que é definitivo para que o seu "discurso" poético exceda a simples preocupação sonora, dá ao texto verbal a substância ideológica que o faz ir além da música e atingir a dimensão literária. É, por essa razão, um escritor, que lança mão da matéria verbal sem escravizá-la à medida prévia e externa chamada de "melodia".

A propósito, por conta de sua escolha como Nobel de Literatura do ano, revi No Direction Home, Bob Dylan, de Martin Scorsese, eletrizante documentário sobre o artista americano. Com um tratamento narrativo rigoroso, o filme traça a trajetória humana e artística de Dylan, desde suas raízes no Minessota, sua tumultuada carreira em meios nem sempre saudáveis em bairros periféricos de Nova York e apresentações no Greenwich Village até a definitiva consagração nos anos 60. Os depoimentos sobre o astro são em grande parte imperdíveis, bem como a presença incontornável de nomes como Joan Baez, Allen Ginsberg em momentos pouco conhecidos de suas carreiras. O filme está à venda em DVD.

Por último, sem o pleno domínio da língua, pelo que se perde aqui e além a força poética de uma palavra ou expressão, recorri à estante a fim de ler como maior atenção as belíssimas letras de Bob Dylan, com destaque para "poemas" excepcionais como Hurricane (Furacão), sobre a questão racial e o jogo sujo da Justiça americana: "Agora todos os criminosos de terno e gravata / estão livres para beber martinis e ver o sol nascer / enquanto Rubin senta como Buda em uma cela minúscula: / um homem inocente no inferno".

Mas, populares, os poemas existenciais saltam da página para o coração e a mente, levando o leitor a uma experiência a um tempo intuitiva e racional capaz de apontar caminhos para um mundo melhor. Na conhecida Blowin`in the Wind, por exemplo, deparamos com o poeta em sua plenitude lírica: "Quantas estradas um homem deve percorrer / pra poder ser chamado de homem?, é como inicia Soprando no Vento, para concluir com versos que anos a fio tocam corações de diferentes países como um chamamento: "Sim, e quantas vezes um homem deve olhar para cima / antes de conseguir ver o céu? / Sim, e quantos ouvidos um homem deve ter / pra poder conseguir ouvir as pessoas chorarem? / Sim, e quantas mortes serão necessárias até ele saber / que pessoas demais morreram? / A resposta, meu amigo, está soprando no vento".

Numa época em que o mundo, em estado de delírio, dá uma guinada para a direita, a voz indignada de Bob Dylan constitui motivo de sobra para justificar o prestigiado prêmio que a Academia Sueca lhe concede.

E sinaliza, felizmente, que nem tudo está perdido.

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Os filmes do Céu

Desde final de agosto, aniversário de nascimento de meu pai, tenho me dedicado a rever os grandes clássicos do western, gênero que amava e com o qual me iniciou nos amores à sétima arte. Revi, duplamente envolvido com sua beleza estética, No tempo das diligências (1939), um filme absolutamente brilhante de John Ford, com John Wayne e Claire Trevor; Rio de vermelho (1948), outro momento sublime do gênero, assinado por Howard Hawks, com o mesmo John Wayne e Montgomery Clift e o insuperável Shane (1954), com Alan Ladd, Van Heflin e Jean Arthur. Revi, ainda, os clássicos do spaghetti western, que meu velho adorava.

Acho que a minha paixão pelo cinema nasceu de fato com o western, muito provavelmente por que, como cinéfilo, fui precocemente seduzido pela forma como os grandes realizadores do gênero exploravam os recursos da linguagem cinematográfica, suas escolhas no processo de construção da narrativa, as estruturas internas de cada filme etc., quando o comum, ainda hoje, é que os espectadores se voltem para outra vertente, o que, na falta de uma terminologia mais clara, convenciona-se identificar como uma vertente temática. Esta, como o próprio nome sugere, volta-se para o tema do filme, a trama, o perfil psicológico das personagens e a tessitura dramática que constitui o interesse maior das pessoas que vão ao cinema.

Para um certo público, entre o qual me coloco de corpo e alma, e a que tenho me dedicado como estudioso e professor dessa arte, importa, sobremaneira, o tratamento formal dispensado pelo cineasta na construção do filme, as estratégias narrativas, o arcabouço estético ou, numa palavra, a poética que define o que chamamos o estilo autoral: enquadramento, composição pictural (o quadro é uma tela), a movimentação de câmera, a luz, o cenário, o guarda-roupa, a música, os ruídos, o silêncio. É nisso, sobretudo, que consiste a força do cinema e a sua beleza como uma arte que nasceu da confluência de diferentes códigos, do que resulta seu prestígio como uma arte do tempo  ---  e do espaço, por que não dizer?

Quando falo de estilo, poética autoral, é claro que estou pisando um terreno por demais especializado, estranho ao que é mesmo a razão de ser da Arte em suas muitas linguagens. Mas, como negar?, é despertando o interesse pelo uso das ferramentas que se pode proporcionar aos que vão ao cinema, ao teatro, aos museus, aos que ouvem música e veem novelas de tevê etc., condições de separar o joio do trigo, de escolher com segurança as melhores produções em vez do lixo que a indústria cultural oferta ou impõe a todos todos os dias. Aí, para retomar uma reflexão levada a efeito numa de minhas últimas crônicas, reside, por certo, a necessidade imperiosa de que a Arte seja matéria obrigatória do núcleo comum da escola de ensino médio, na contramão do que propõe o governo criminoso de Michel Temer.

Mas, voltemos ao cinema.

Por que, então, fazer a apologia de um gênero cinematográfico menos exigente, a exemplo do western, dirá o leitor? Pior, fazer o elogio de filmes inferiores, como o faroeste italiano? É aí que me parece oportuno realçar a atenção para a questão do estilo como forma de rever posições e julgamentos carregados de preconceito e juízos intolerantes em relação ao que a tradição aponta como o cinema clássico.

Nesse sentido, alguns diretores do western foram artistas esplêndidos. Em minhas aulas, não raro, exibo para os alunos sequências inesquecíveis do gênero e tenho, para minha felicidade, contribuído para que se abram para a beleza de filmes que, antes, lhes pareciam tolos, ingênuos, pouco criativos, desinteressantes do ponto de vista artístico etc., e que passam a ver com novos olhos e a divulgar sua poética naquilo que têm de mais valioso e sedutor. A sequência de abertura de Era uma Vez no Oeste, por exemplo, é uma aula de cinema.

Sobre ele, aliás, conto-lhe aqui uma curiosidade.

Certa vez, Bertolucci, então um realizador menos conhecido, é surpreendido com uma telefonema de Sergio Leone, de quem assistira ao belo Três homens em conflito (que também revi em homenagem saudosista ao meu pai) e que considera um dos seus filmes preferidos. Leone convida-o a escrever o roteiro de um filme que constitua uma homenagem a todos os westerns, uma referência intertextual aos grandes filmes do gênero. Surge, assim, o imperdível Era uma Vez no Oeste.

Não é outra, pois, a razão por que a obra-prima de Sergio Leone é mesmo um exemplo do que se identifica no campo das artes como intertextualidade. O filme é, intencionalmente, uma "colcha de retalhos" de alguns momentos inesquecíveis do cinema. Na sequência de abertura, a que me referi acima, faz uma alusão a uma cena notável de Matar ou Morrer, de Fred Zinnemann; a chegada da locomotiva, é uma citação a O Cavalo de Ferro (1954), de John Ford.

O alusionismo (o ato de fazer alusão a outros filmes) era comum à época e constitui um tipo de homenagem que mais embeleza e empresta força a filmes notáveis. Ao rever grandes clássicos do western, como disse, prestei, morto de saudade, a minha homenagem ao meu velho pai. Que sejam bons os filmes do Céu!