Numa coincidência irônica, para um governo que professa secundária a importância do ensino de artes nas escolas do país, o Brasil festeja em 2016 duzentos anos de um dos fatos mais relevantes para a cultura nacional: a Missão Artística Francesa, vinda aqui, em 1816, por força de um acordo envolvendo franceses e a Corte portuguesa. O projeto tinha por objetivo o ensino sistemático de artes e da arquitetura civil, contando, entre outros, com nomes de prestígio nos meios intelectuais da Europa, com destaque para Nicolas Antoine Taunay, Auguste Marie Taunay, Marc e Zéphyrin Ferrez, August-Henri-Victor Grandjean de Montigny e ninguém menos que Jean-Baptiste Debret.
Se é verdade que a arte brasileira já contemplava alguma identidade com artistas de muito talento, desde as primeiras manifestações do Barroco mineiro, com pelo menos dois nomes de reconhecida importância, a exemplo de Aleijadinho e Mestre Ataíde, não é menos afirmativo dizer que a Missão Artística Francesa ressignificou a cultura brasileira e responde pelos primeiros sinais de nossa existência para o Velho Mundo. Mas é sobre Jean-Baptiste Debret que gostaria de tecer, na coluna de hoje, algumas considerações.
Trata-se de um dos mais prestigiados cronistas do Brasil. Explico-me: Debret, além de um pintor notável, cuja obra transita do neoclássico para o romântico, revelou-se um escritor de estilo absolutamente sedutor, tendo assinado uma obra incontornável sobre o Brasil de inícios do século XIX intitulada Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, que, dentro dos festejos pelo transcurso do segundo centenário da Missão Artística Francesa, acaba de chegar às livrarias em edição luxuosa da Imprensa Oficial do Governo de São Paulo.
O livro, com qualidade editorial digna de nota, reúne em um volume os três tomos originais da Viagem, com um registo iconográfico expressivo das litografias do pintor francês sobre o Brasil, abordando temas diversos: a Corte, costumes, eventos, arquitetura etc.; a paisagem brasileira, diversidade botânica etc.; grupos indígenas e escravos, indumentária, práticas e costumes, condições de vida, cativeiro etc.
Não cause estranheza o fato de que o registro se dê pela pena e pelo pincel de um artista europeu, coisa menos significativa se levarmos em conta que os registros de fundação do caráter nacional brasileiro, em sua quase totalidade, originam-se de viajantes. Sob este aspecto, todavia, a obra de Debret mais ainda sobressai e deve ser exaltada: embora convidado de um projeto oficial, o artista dedicou seu tempo, entre 1816 e 1831, não a documentar com suas belas aquarelas a vida da Corte, simplesmente. Há em cada prancha um olhar analítico, atento e sensível às contradições sociais do país em formação, razão por que a contemplação das imagens é mais que uma experiência estética sublime, o que já justificaria a importância de se travar contato com as 150 litografias cuidadosamente reproduzidas nesta edição de Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. O texto de Debret, sem curvar-se ao realismo comumente cobrado de registros do gênero (crônicas de viagem), revela a sensibilidade artística do autor, o que resulta leve, solto, não raro poético. Numa palavra: ler esta obra é, antes de tudo, imensamente prazeroso. Vejamos um trecho:
"Tudo assenta (...) neste país no escravo negro; na roça ele rega com seu suor as plantações do agricultor; na cidade o comerciante fá-lo carregar pesados fardos; se pertence ao capitalista é como operário ou na qualidade de moço de recados que aumenta a renda do senhor. Mas, sempre mediocremente alimentado e maltratado, contrai às vezes os vícios dos nossos domésticos, expondo-se a castigos públicos, revoltantes para um europeu (...). Sem o consolo do passado, sem a confiança do futuro, o africano esquece o presente (...) e como essas plantas cansadas de produzir, acaba definhando a duas mil léguas de sua pátria, sem nenhuma recompensa pelos seus serviços menosprezados".
Dando a ver as contradições de um sistema perverso, o livro encanta pelo que traz de significativo para a elevação de nossa sensibilidade e capacidade de enxergar com senso de justiça o que é preciso transformar. É o papel da arte, o que explica, em parte, o descaso de hoje para com a matéria. Mérito para D. João VI.
Pena que, sob muitos aspectos, o Brasil de hoje deixe tanto a desejar ao Brasil de duzentos anos atrás. À época, quando menos, havia da parte do governo sensibilidade para entender que um país se faz, como quis Lobato, com homens e livros, com incentivo à produção cultural e, o que é mais notável, com a percepção certeira de que o ensino de artes deve ser prioridade para qualquer governante que se pretenda sério. Reitero: que pena!