Desde final de agosto, aniversário de nascimento de meu pai, tenho me dedicado a rever os grandes clássicos do western, gênero que amava e com o qual me iniciou nos amores à sétima arte. Revi, duplamente envolvido com sua beleza estética, No tempo das diligências (1939), um filme absolutamente brilhante de John Ford, com John Wayne e Claire Trevor; Rio de vermelho (1948), outro momento sublime do gênero, assinado por Howard Hawks, com o mesmo John Wayne e Montgomery Clift e o insuperável Shane (1954), com Alan Ladd, Van Heflin e Jean Arthur. Revi, ainda, os clássicos do spaghetti western, que meu velho adorava.
Acho que a minha paixão pelo cinema nasceu de fato com o western, muito provavelmente por que, como cinéfilo, fui precocemente seduzido pela forma como os grandes realizadores do gênero exploravam os recursos da linguagem cinematográfica, suas escolhas no processo de construção da narrativa, as estruturas internas de cada filme etc., quando o comum, ainda hoje, é que os espectadores se voltem para outra vertente, o que, na falta de uma terminologia mais clara, convenciona-se identificar como uma vertente temática. Esta, como o próprio nome sugere, volta-se para o tema do filme, a trama, o perfil psicológico das personagens e a tessitura dramática que constitui o interesse maior das pessoas que vão ao cinema.
Para um certo público, entre o qual me coloco de corpo e alma, e a que tenho me dedicado como estudioso e professor dessa arte, importa, sobremaneira, o tratamento formal dispensado pelo cineasta na construção do filme, as estratégias narrativas, o arcabouço estético ou, numa palavra, a poética que define o que chamamos o estilo autoral: enquadramento, composição pictural (o quadro é uma tela), a movimentação de câmera, a luz, o cenário, o guarda-roupa, a música, os ruídos, o silêncio. É nisso, sobretudo, que consiste a força do cinema e a sua beleza como uma arte que nasceu da confluência de diferentes códigos, do que resulta seu prestígio como uma arte do tempo --- e do espaço, por que não dizer?
Quando falo de estilo, poética autoral, é claro que estou pisando um terreno por demais especializado, estranho ao que é mesmo a razão de ser da Arte em suas muitas linguagens. Mas, como negar?, é despertando o interesse pelo uso das ferramentas que se pode proporcionar aos que vão ao cinema, ao teatro, aos museus, aos que ouvem música e veem novelas de tevê etc., condições de separar o joio do trigo, de escolher com segurança as melhores produções em vez do lixo que a indústria cultural oferta ou impõe a todos todos os dias. Aí, para retomar uma reflexão levada a efeito numa de minhas últimas crônicas, reside, por certo, a necessidade imperiosa de que a Arte seja matéria obrigatória do núcleo comum da escola de ensino médio, na contramão do que propõe o governo criminoso de Michel Temer.
Mas, voltemos ao cinema.
Por que, então, fazer a apologia de um gênero cinematográfico menos exigente, a exemplo do western, dirá o leitor? Pior, fazer o elogio de filmes inferiores, como o faroeste italiano? É aí que me parece oportuno realçar a atenção para a questão do estilo como forma de rever posições e julgamentos carregados de preconceito e juízos intolerantes em relação ao que a tradição aponta como o cinema clássico.
Nesse sentido, alguns diretores do western foram artistas esplêndidos. Em minhas aulas, não raro, exibo para os alunos sequências inesquecíveis do gênero e tenho, para minha felicidade, contribuído para que se abram para a beleza de filmes que, antes, lhes pareciam tolos, ingênuos, pouco criativos, desinteressantes do ponto de vista artístico etc., e que passam a ver com novos olhos e a divulgar sua poética naquilo que têm de mais valioso e sedutor. A sequência de abertura de Era uma Vez no Oeste, por exemplo, é uma aula de cinema.
Sobre ele, aliás, conto-lhe aqui uma curiosidade.
Certa vez, Bertolucci, então um realizador menos conhecido, é surpreendido com uma telefonema de Sergio Leone, de quem assistira ao belo Três homens em conflito (que também revi em homenagem saudosista ao meu pai) e que considera um dos seus filmes preferidos. Leone convida-o a escrever o roteiro de um filme que constitua uma homenagem a todos os westerns, uma referência intertextual aos grandes filmes do gênero. Surge, assim, o imperdível Era uma Vez no Oeste.
Não é outra, pois, a razão por que a obra-prima de Sergio Leone é mesmo um exemplo do que se identifica no campo das artes como intertextualidade. O filme é, intencionalmente, uma "colcha de retalhos" de alguns momentos inesquecíveis do cinema. Na sequência de abertura, a que me referi acima, faz uma alusão a uma cena notável de Matar ou Morrer, de Fred Zinnemann; a chegada da locomotiva, é uma citação a O Cavalo de Ferro (1954), de John Ford.
O alusionismo (o ato de fazer alusão a outros filmes) era comum à época e constitui um tipo de homenagem que mais embeleza e empresta força a filmes notáveis. Ao rever grandes clássicos do western, como disse, prestei, morto de saudade, a minha homenagem ao meu velho pai. Que sejam bons os filmes do Céu!
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