Nas aulas de Estética do Cinema, não raro ouço a seguinte indagação: "O que faz de um filme um grande filme?" A pergunta, que a princípio pode parecer ingênua, é de uma complexidade imensa. Vejamos: Existem filmes interessantes, filmes belos, empolgantes, transgressores, provocativos e que, por curioso que pareça, não se sustentam diante de uma análise criteriosa do ponto de vista cinematográfico. E, no entanto, existem filmes que sequer comportam essa adjetivação e são soberbos como arte cinematográfica. Como se vê, nada é de fato tão simples quando se pretende analisar um filme. O mesmo acontece às outras linguagens estéticas, à pintura, à fotografia, à música etc.
Por que isso acontece? O que faz com que certos filmes arrebatam plateias, fiquem no imaginário das pessoas como obras perfeitas, mesmo quando suas deficiências formais ou conteudísticas (e não raro formais e conteudísticas) são óbvias aos olhos do crítico de cinema? Talvez por que, grosso modo, a maior parte das pessoas não tenha sido preparada para "ver um filme" como obra de arte, mas, tão-somente, como entretenimento, como fuga do indesejável, como uma circunstância em que se aceita a irrealidade como se a realidade fosse --- numa palavra, como passatempo. Se isso é válido, porque a arte não existe para especialistas, claro, não é menos válido afirmar que um especialista, um estudioso de cinema, um crítico honesto, podem tornar a experiência de assistir a um filme muito mais rica, mais completa em suas forças de sentido e, mesmo, em sua beleza estética.
Assim como uma tela se faz notar por sua composição, como na obra de um Giotto di Bondone; por sua força dramática, como em Caravaggio ou Géricault; pelo senso simbólico de sua imagem, como em Botticelli; pela luz, em Turner; pela exploração do espaço, como em Da Vinci ou pela originalidade da pincelada, em Van Gogh, ou, ainda, pelo poder da comunicação, como em Pablo Picasso, Tintoretto, Rubens, Cézanne etc., um filme notabiliza-se pelo domínio da linguagem, pelo equilíbrio de massas, no quadro, pelo ritmo da narrativa, pela beleza da fotografia, pela movimentação e angulação da câmera, pela poética autoral que faz de um Bergman, por exemplo, um artista inconfundível.
Some-se a isso um bom roteiro, uma direção de arte rigorosa, um figurino coerente com o tempo histórico do filme, um desempenho eficiente do elenco, uma música que se some à imagem para enriquecê-la de forma especial e convincente, uma montagem meticulosa e expressiva e, sobremaneira, uma direção geral que torne a obra fílmica menos teatral e mais narrativa, na linha do que professava François Truffaut, pois que ao diretor cabe o impagável papel de concentrar numa as muitas linguagens do cinema. Eis os elementos estéticos para os quais deve o espectador direcionar sua atenção, atirando-se ao encontro do que existe de verdadeiramente artístico num filme e o faz, em meio a uma produção inumerável de outros títulos, um grande filme.
Saber ver um filme, pois, é muito mais que compreendê-lo, simplificando o seu julgamento numa questão de gosto. A tendência da nossa crítica de cinema, através dos tempos, tem-se caracterizado pelas abordagens conteudísticas, desprezando a estilística cinematográfica, a "mise-en-scène" propriamente dita. Para o contentamento dos que amam o cinema, felizmente, cada vez mais ganha espaço nos cineclubes, nas academias, nas salas de aula das escolas e universidades, uma motivação para o corpo a corpo com a estilística cinematográfica, no viés em que se destacam autores incontornáveis como David Bordwell e Jacques-Aumont. Um filme é um grande filme, pois, pelas escolhas narrativas, pelo manuseio competente dos meios de expressão próprios do cinema (o estilo), sem perder de vista a dramaturgia e os componentes culturais e ideológicos, claro.
*Álder Teixeira, Professor de Estética do Cinema, é Mestre em Literatura e Doutor em Artes pela UFMG.
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