Álder Teixeira*
Eis que termina o Festival Varilux do Cinema Francês edição 2017. Como sempre, teve-se a oportunidade de assistir a grandes filmes, mesmo considerando-se que houve um declínio em relação ao ano passado. Se é assertivo dizê-lo, como tem sido recorrente, a exibição de pelo menos três filmes justifica qualquer entusiasmo. Correndo o risco de ser mal compreendido, quem sabe ser taxado de exageradamente subjetivo em termos de avaliação --- ou afeito a juízos estéticos demasiado apurados por alguns ---, arrisco-me a destacar, pela ordem, três filmes: O Filho Uruguaio, Frantz e Rodin.
Sobre o primeiro, escrevi dia desses neste mesmo espaço. Frantz fica para depois, pois é sobre o último, do cineasta Jacques Doillon, que gostaria de tecer hoje algumas considerações.
Não que o avalie como um filme sem defeitos. Antes pelo contrário, posto que o roteiro, por exemplo, pareceu-me mal articulado e alheio a alguns aspectos por que se deve orientar uma narrativa fílmica bem sucedida. Nada, contudo, que comprometa o entendimento ou disperse o espectador em face daquilo que lhe é essencial, ou seja, a motivação de explorar um recorte da vida e arte do escultor Auguste Rodin. Dito isto, vamos às qualidades do filme, o que mais interessa aqui, começando, como é recomendável, pela sinopse.
Já famoso e gozando de prestígio nos meios artísticos da época, anos 80 do século XIX, Auguste Rodin (Vincent Lindon) trabalha na primeira obra encomendada pelo Estado, A Porta do Inferno, plasmada no clássico de Dante Alighieri. Aos 40 anos, vive com a mulher, Rose Beuret (Séverine Caneele), em meio a modelos, peças escultóricas, gesso, argila etc., num ateliê que bem reflete a subjetividade reinante em tudo que faz.
A direção de arte, sob este aspecto, é de uma competência que impressiona desde as primeiras cenas, sobre o que faremos observações mais adiante. É quando o esteio dramático do filme passa a girar em torno do envolvimento de Rodin com sua aluna Camille Claudel (Izia Higelin). Terminada a relação, Rodin passa a explorar na sua arte novas possibilidades processuais, de que resultam obras soberbas, como o Monumento a Balzac, em homenagem ao autor de A Comédia Humana, exemplarmente representadas numa das sequências mais felizes do filme.
Se há nítido descompasso entre o processo criativo de Rodin e a cinebiografia assinada por Doillon, assumidamente estruturada em moldes convencionais, na contramão do que fez o escultor, não me parece este aspecto suficiente para desmerecer o filme, na linha do que se verificou por ocasião de sua apresentação no Festival de Cannes. Longe disso.
Jacques Doillon excedeu em tecnicalidade cinematográfica. Do filme, tenha-se um mínimo de sensibilidade artística, não existissem outras qualidades formais soberbas (escolha de planos, movimentação de câmera, iluminação etc., trabalhadas à perfeição), é justo afirmar que se trata de uma verdadeira aula de iniciação estética. Vejamos.
É unânime a percepção de que a obra de Auguste Rodin sobressai, para além de tudo que a diferencia como obra de um gênio da escultura moderna, pela obsessiva preocupação com a sensualidade do corpo humano, coisa belamente evidenciada pela câmera de Doillon.
Agregue-se a isso um elemento de cunho biográfico: Rodin era um homem concupiscente, libidinoso, razão por que irresistível e sedutor em sua época. Mas o filme, em momento algum, banaliza-se em sua dimensão erótica. As cenas de sexo são conduzidas com um rigor estético notável, o que serve antes para referir dois aspectos grandiosos da própria arte do escultor: a sensorialidade no ato da criação, o golpe gestual, as sensações táteis. Não raro, num tipo de interlocução semiótica, depara-se com uma imagem de forte sugestão tridimensional, a exemplo dos planos em que a angulação da câmera resulta num "escorço", técnica de representação pictórica em que um objeto ou distância espacial parecem mais curtos do que em realidade são.
A luz é suave, o ritmo da narrativa é conforme a densidade dramática do enredo, a textura da imagem condizente com o ambiente cenográfico, ao que se soma a perfeita escolha do fundo musical, notadamente nas sequências em que vemos o artista em plena atividade como escultor.
Mas, pelas limitações de espaço, por último sinto-me condicionado a exaltar aquela que me parece a maior qualidade do filme. Rodin foi antes de tudo um artista atento ao que, no domínio histórico do Impressionismo, chamava-se "vérité intérieure", o sentimento subjetivo, a verdade interior. A forma escultórica assumia as sensações experimentadas pelo contemplador. Não pela visão, diga-se em tempo, mas pelo tato.
Como observou Herbert Read, em estudo brilhante da obra de Auguste Rodin, se ao escultor é negada a experiência tátil, isso vem em seu prejuízo. No filme de Jacques Doillon, essa limitação como que é suplantada. Exagero à parte, "vemos" o filme com o corpo inteiro. Há nele, como na obra do artista homenageado, um realismo visual que extrapola os limites do comum. Tudo é forma, beleza, grandiosidade. Assim como sempre ocorre quando se trata de artistas esplêndidos, a exemplo de um Donatello, um Michelângelo e, claro, um Auguste Rodin. De encher os olhos.
- Doutor em Artes pela UFMG, Professor de Estética do Cinema, História da Arte e Filosofia da Arte.