segunda-feira, 9 de outubro de 2017

"A Fonte", 100 anos depois

De um amigo querido, vem um post curioso em que o crítico de arte e artista plástico americano Robert Florczak detona indiscriminadamente os maiores nomes da Arte Moderna, nomeadamente da arte dita contemporânea. Há muito, sabe-se, Florczak dedica-se a emitir julgamentos estéticos os mais severos contra artistas importantes, na linha de Andy Warhol, Jackson Pollock e Marcel Duchamp.

Embora trate-se de um estudioso renomado, com inúmeros trabalhos publicados mundo afora, no campo da crítica de arte, o esteta americano, supostamente movido por um sentimento passional que obscurece sua capacidade analítica, atira à vala comum artistas de perfis estilísticos os mais diversos, adotando em sua verve condenatória mecanismos de avaliação muitas vezes inapropriados na perspectiva de uma e outra obra.

Ao fazê-lo, lamentavelmente, reduz seu julgamento a uma mera opinião, não raro destituída de fundamentação teórica indispensável a qualquer apreciação crítica.

Ocorre-me lembrar, por oportuno, um artigo em que Robert Florczack debruça-se sobre a obra de Marcel Duchamp a fim de provar o que afirma ser a absoluta ausência de sentido ou qualquer validade do ponto de vista artístico. É exatamente aqui que encontro um gancho para levantar algumas reflexões sobre a crítica do senhor Florczack no que diz respeito à arte moderna e, em especial, ao artista francês. Faço-o, por sinal, a propósito de comemorar-se este ano o centenário de "A Fonte", supostamente a mais polêmica obra de arte conceitual de que se tem notícia.

Sobre ela, pois, ouso fazer as seguintes considerações.

Começo por aludir ao fato de que a referida obra faz parte de um conjunto de trabalhos a partir dos quais Marcel Duchamp presta significativa contribuição à filosofia da arte no que existe de mais relevante na busca de uma definição, ou mesmo de uma compreensão mais consistente acerca do sentido da arte e de sua necessidade num mundo pautado pela lógica do capital e dos valores a ele associados.

À época, registre-se, Duchamp não era um aventureiro, um pobre diabo à procura de espaço nos meios artísticos parisienses, mas um pintor de sucesso, egresso da respeitadíssima Academia Julian, dentro de cujas paredes dedicara-se a tentar deslindar as potencialidades da linguagem pictórica, algo que se pode entender como o exercício sistematizado do que se estabelece como a Teoria da Arte.

"A Fonte", aliás, de 1917, não é, outrossim, o seu primeiro ready-made, modalidade artística por ele criada e que, em palavras ligeiras, é como se chama o objeto utilitário industrializado retirado do seu espaço de origem e inserido no contexto dos objetos "ditos" artísticos, no qual perde a sua funcionalidade objetiva original e ganha forças de sentido metafóricas, ou seja, sensoriais, estéticas.

Em 1915, dois anos antes, portanto, Marcel Duchamp já escandalizara setores da crítica de arte europeia com uma simples roda de bicicleta exposta sobre um banco num espaço destinado ao que se define tradicionalmente como "arte". Seu gesto transgressor, ainda hoje abominado por críticos renomados, como o americano Robert Florczack, punha por terra o mito romântico do artista como um ser iluminado e dotado de atributos geniais, aos quais, via de regra, é dispensável a capacidade de pensar, elaborar formas, emitir percepções subjetivas do que, equivocadamente, chamamos de realidade.

Ao romper com conceitos engessados acerca do que é a arte, os ready-made levantam uma questão muito mais importante do que os olhos preconceituosos de críticos de renome relutam a ver: como definir a arte? O que, necessariamente, deve caracterizar um objeto para que o definamos como arte? A arte é algo exclusivo de alguns seres dotados de gênio ou um meio de expressão como tantos outros, como à época afirmou o próprio Marcel Duchamp?

A obra, que faz cem anos em 2017, "A Fonte" ("Urinol" ou "Chafariz", como também se tornou conhecida) mais que apenas escandalizar os empedernidos de plantão, pois, serve para demonstrar que todo objeto, uma cadeira, um vaso, um cachimbo etc., é um "discurso" e sua decodificação (ato ou efeito de interpretar um texto) depende do contexto em que se faz perceber.

Ao expor um urinol num espaço "aurático" destinado ao que se define como arte, denominando-o e dando-lhe uma assinatura autoral, Duchamp procedeu a um processo inventivo que atribuiu ao objeto uma potencialidade sígnica de que estava desprovido como produto utilitário industrial.

Outros artistas, desde sempre abominados pela crítica conservadora, Robert Florczack à frente, hoje, fizeram o mesmo. Klee, Kandinsky, Warhol e Magritte, para ficar nos poucos nomes que me ocorrem agora. Todos esses, em alguma medida e de diferentes maneiras, repensaram o estatuto da representação artística clássica. Ao pintar um cachimbo e emoldurá-lo numa salão de artes contemporâneas, sob cuja imagem lê-se a assertiva "Ceci n'est pas une pipe" (Isto não é um cachimbo), Magritte deu início a uma arte em que se "preenche" o espaço vazio entre a imagem e a linguagem.

Aborrecido com o fato de que senhoras parisienses censuravam suas "odaliscas" por não se parecerem com "mulheres reais", Matisse não se conteve e foi às raias da objetividade: --- "Senhoras, isso não são mulheres, são pinturas!".  

Quanto à obra de Marcel Duchamp, claro, essa foi rejeitada. E foi sua rejeição que lhe agregou novas forças de sentido, emprestando-lhe um significado histórico incomensurável: fez eclodir o seu conteúdo estético tremendamente transgressor.

E isso aconteceu, pasmem, há exatos cem anos.        

 

 

 

 

 

 

 


 

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