quinta-feira, 23 de novembro de 2017

COMUNICAÇÃO SOBRE "NÃO DESEJARÁS A MULHER DO PRÓXIMO, DE KRZYSZTOF KIÉSLOWSKI"

 

1. Gostaria de partir de um pressuposto que me parece relevante: A ideia de "texto" de acordo com a Semiótica Discursiva, isto é, a ideia de que "texto" é toda e qualquer unidade de análise, não apenas, pois, o "texto" verbal. Assim, um espetáculo de dança ou de teatro, um quadro, uma escultura, uma instalação e, mesmo, uma performance constituem exemplos de texto, como o são um poema, uma novela ou um romance. 

2. Desse modo, um filme é um texto e, a exemplo de qualquer outro tipo de texto, é constituído por duas dimensões indissociáveis, só devidamente separadas para efeito de análise: Plano de Conteúdo e Plano de Expressão. Não existe entre um e outro hierarquia valorativa, ou seja, apenas como procedimento de análise é aceitável que se dê ênfase a um plano em detrimento do outro.

3. O Plano de Expressão é a dimensão mais visível de qualquer texto. É a forma, no caso do filme, as estratégias narrativas de que o cineasta lançou mão a fim de construir o seu texto, o texto fílmico.

4. O Plano de Conteúdo é o campo do sentido ou da significação. O filme explora tal assunto, o faz de certa perspectiva (sócio-política, filosófica, psicanalítica etc.) e me transmite essa mensagem etc. 

5. Importante: Todo texto estabelece com o receptor uma comunicação e essa só é possível porque todo texto constitui "linguagem", isto é, um sistema organizado de "signos", o que significa dizer que esse texto segue regras, sintaxe ou uma gramática específica a fim de comunicar significado. 

6. O texto fílmico, mais que qualquer outro tipo de texto, é uma linguagem dentro da qual se fazem perceber inúmeras outras linguagens: literatura, música, dança, teatro, artes visuais etc. Por isso compreender com competência um filme exige um mínimo de conhecimento da linguagem cinematográfica. Um enquadre, a sutileza de uma movimentação de câmera, o registro em close-up de um objeto etc., podem ser decisivos para o perfeito entendimento do que se passa num filme. 

7. O cineasta (o diretor), assim como o poeta, o pintor, o arquiteto etc., ao realizar um filme está lidando com o Plano de Conteúdo e com o Plano de Expressão. Mas é o Plano de Expressão que lhe confere a marca individual que se define como "estilo": as estratégias narrativas que utiliza, isto é, como enquadra, como utiliza a câmera, como estabelece pela extensão dos planos, das cenas e sequências ou, ainda, pelos recursos de iluminação ou acréscimo da trilha sonora, o ritmo narrativo do filme etc. Sem desprezar, é óbvio, a alma do mesmo, que é a montagem. 

8. Também o espectador, assim como o crítico de cinema, pode dar mais importância a um plano que a outro. Se ao Plano de Conteúdo, diz-se que é "conteudista", se ao Plano de Expressão, "esteticista". O certo, no entanto, é que um e outro só serão bem sucedidos em sua empreitada se se mostrarem capazes de perceber que os dois planos fílmicos, Forma e Conteúdo, são dimensões indissociáveis. 

9. Conclui-se, disso, que, mesmo num simpósio como este (que se debruça sobre as forças de sentido psicanalítico do filme), deve-se atentar para os procedimentos de expressão da obra, posto que "a imagem que aparece na tela não é jamais totalmente neutra, mas sempre um signo de algo mais, num certo grau", [...] "de modo que o filme parece condenado, seja à opacidade de um sentido rico, seja à clareza de um sentido pobre", segundo as palavras de Bernard Pingaud. 

10. Decálogo, episódio IX, Não desejarás a mulher do próximo (1990). 

       Direção: Krzysztof Kieslowski

       Roteiro: Krzysztof Piesiewicz e Kieslovski

       Música: Zbigniew Preisner

       Elenco: Ewa Blaszczyk, Piotr Machalica, Artur Barcis, Jan Jankoswki, Jolanta Pietek-Górecka, Katarzyna, Jerzy Trela.

       Duração: 58 min. 

11. Ocorre a Não desejarás a mulher do próximo (como de resto a todo o Decálogo) o que se pode identificar como uma intencional "heterogeneidade constitutiva" a partir do que preceitua o próprio Mandamento. Como uma propriedade comum a qualquer texto, há no texto fílmico em exame uma multiplicidade de vozes, sendo relevante aqui, em face das limitações de tempo, identificar duas vozes presentes: Primeiro, a voz "falocêntrica", segundo os pressupostos do Antigo Testamento, imperativa, autoritária, proibitiva, expressa no advérbio de negação do mandamento que dá título ao filme, a que se soma a sugestão da mulher como objeto possuído pelo homem. Segundo, a voz transgressora que se materializa no eixo dramático do filme  ---  a cobiça de um homem impotente pela sua própria mulher. 

12. Quem a possui, na contramão do que estabelece o IX Mandamento, é aquele que, segundo a voz das ruas, a "possui" sexualmente, ou seja, aquele que (perdoem-me a infelicidade da expressão) "funciona", que está dotado da capacidade física de realizar no coito a penetração.

13. Não à toa, um recurso formal eivado de simbolismo (o close-up) é recorrente no filme: 11:31" (cena em que ajuda um homem a abastecer seu carro com um funil); 13:26" (cena em que, desavisada, a enfermeira faz com o indicador e o polegar um gesto que a ele sugere a pequenez do seu sexo); 18:30" (cena em que a enfermeira movimenta o dedo ereto e o coloca entre as pernas) e 25:25" (cena em que a câmera se detém, num plano fechado, na empunhadura da máquina de fazer cópias de chaves). Para não falar do movimento sugestivo da personagem sobre a bicicleta, no ângulo da câmera em contra-plongée que sugere o ato sexual na perspectiva da mulher e o consequente "engrandecimento" da personagem masculina (componente psiquiátrico que norteia o desenrolar da história).  

14. Em todas essas cenas, é importante frisar, Kieslovski lança mão de recursos estilísticos: a escolha do plano é determinada pela distância entre a câmera e o objeto e pela duração focal.

15. Nas cenas em destaque, primeiríssimo plano, o enquadramento serve para assinalar o simbolismo da imagem (o falo ereto) e o poder de significação psicológico e dramático da cena sobre a personagem. Não é outra a razão por que o diretor adota o que se convencionou chamar de "câmera subjetiva", quer dizer, a câmera opera com a imagem do objeto a fim de mostrá-lo na perspectiva da personagem, carregando a imagem de força psicológica e dramática que tal objeto não teria se o registro tivesse a "frieza" da câmera objetiva. Nesse caso, o objeto seria apenas um elemento usado na composição do quadro.

16. Por último: Em O Absoluto Frágil, o filósofo esloveno Slavoj Zizek faz curiosa leitura do Decálogo, os Dez Mandamentos, sob o ponto de vista judaico-cristão a fim de questioná-lo. Reporta-se à teoria defendida pelo escritor John Gray (que considera uma versão vulgarizada de psicanálise narrativista-desconstrucionista segundo a qual, "se somos a história que contamos a nós mesmos a nosso respeito, a solução para o impasse está em uma reescrita 'positiva' da narrativa do nosso passado".

17. Slavoj Zizek, em tese, propõe em seu belíssimo ensaio a reescrita do próprio Decálogo e toma como elemento de apoio ao que defende aquele que considera o mais severo dos mandamentos, reportando-se à cena do monde Sinai: "o adultério  ---  sim  ---, se for sincero e servir ao objetivo de nossa profunda realização-de-si". Puro Lacan!

18. O filósofo chama-nos a atenção para o fato de que "o Decálogo (os mandamentos divinos impostos de maneira traumática) tem nos 'direitos humanos' modernos o seu contrário. Diz ele: "Como demonstra amplamente a experiência de nossa sociedade pós-política liberal-permissiva, os direitos humanos são, no fundo, 'apenas direitos de violar os Dez Mandamentos".

19. O macho-dominador do filme, que propõe à mulher ter um amante reedita o Deus ciumento do Decálogo, mas se comporta como a esposa do marido infiel a quem lança a peremptória mensagem: "Faça mas faça de um jeito que eu não tome consciência de nada".

20. A interlocução entre Slavoj Zizek e Kieslowski nos dez capítulos do seu impagável Decálogo são, ao meu modesto ver, incontornáveis. MAS ISSO É APENAS UMA PROVOCAÇÃO PARA O DEBATE.

 

 

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Di Cavalcanti, 120 anos

Há 120 anos nascia no Rio de Janeiro Emiliano Di Cavalcanti. Subjetivações à parte, trata-se do mais importante artista do modernismo brasileiro, não apenas pelo rigor estético com que construiu sua vastíssima obra, leve-se em conta ter feito parte de um grupo a que pertencem nomes de peso das artes visuais do país, como os de Portinari, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, mas por ser, tanto quanto o extraordinário artista que foi, um intelectual dedicado a desvendar os traços com que se procura definir o que, na falta de melhor expressão, chamaríamos de caráter nacional brasileiro. 

Ao lado de ser, pois, um pintor dotado de uma capacidade de figuração que o notabiliza entre os seus pares, Di foi um intelectual dotado de fina compreensão do espírito de brasilidade por que se nortearam os realizadores do mais relevante acontecimento cultural e artístico do país, a Semana de Arte Moderna de 1922. 

Em tempo, lembremos que foi Di Cavalcante o idealizador do referido evento. 

Como Mário de Andrade, mas antes deste, Di era possuidor de uma sensibilidade incomum para identificar as forças populares que haveriam de ser decisivas para a nacionalização da arte brasileira. Também a ele se deve atribuir, com justiça, as alternativas de ação diante dos desafios culturais da primeira metade do século XX no Brasil. Tanto quanto Mário de Andrade, Di soube conduzir o país, em termos artísticos, na direção de uma ruptura definitiva com os cânones dominantes, quase em sua totalidade estranhos às nossas raízes culturais. 

Foi, acima de tudo, um pintor da modernidade, mais ou menos na linha do que explora Charles Baudelaire, em seu notável O Pintor da Vida Moderna, acerca da flânerie no conjunto da obra do pintor francês Constantin Guys, entendendo-se por flânerie o gosto pelo voltear desinteressado e atento da rua, o caminhar pela cidade em constante observação dos elementos humanos que a constituem. 

A diferença, a essa altura fundamental, entre Di e Constantin Guys, reside no fato de que, se este atenta para o contexto urbano em sua efervescência cotidiana, aquele se volta para o lirismo íntimo das personagens mais humildes da cidade, a exemplo do mestiço, da prostituta, do vendedor de peixes e outros párias de uma sociedade marcada por imensas contradições. É com esses, invariavelmente, que Di Cavalcanti vai povoar sua obra, quer por aguçada sensibilidade lírica, quer por convicção ideológica publicamente assumida. 

Consta que terá produzido algo em torno de nove mil trabalhos durante os sessenta anos dedicados à arte, dos quais, rigorosamente catalogados, são a ele atribuídos 5.365 (óleo sobre tela, sobre cartão, sobre madeira, guache, aquarela, grafite, nanquim, painéis, tapeçarias, cenários etc.). 

Sua obra, perpassada de impactante qualidade poética, representa uma bela porção do que se fez de mais surpreendente em termos artísticos no Brasil modernista. É preciso que se evidencie aqui, no entanto, que se tornaria um crítico do movimento em termos nacionais, pelo que identificou como burguês no esteio político em que a geração de 22 se sustentou. Essa a razão por que, um ano após a Semana de Arte Moderna, deixaria o país rumo a Europa, em busca de novas orientações estéticas e políticas. 

A propósito dos 120 anos de Di Cavalcanti, visitei há pouco, na Pinacoteca de São Paulo, prestigiada exposição de 200 de seus maiores trabalhos. Trata-se da maior e mais importante exposição do pintor em 46 anos, uma narrativa pictórica que se estende de 1920 a 1950. É nesse período, por sinal, que deparamos com o Di mais atento ao transitório, ao fugidio, arriscando-se com um lirismo incontido ao encontro das cenas urbanas impregnadas de erotismo e musicalidade. 

Nos subúrbios da modernidade, Di Cavalcanti 120 anos, como é denominada a mostra, traça com um rigor analítico digno de nota, um perfil preciso e precioso do mais brasileiro dos pintores da primeira geração modernista. Como o próprio título da mostra sugere, trata-se de um artista que ousou beber nas fontes da nacionalidade, contribuindo, assim, para tirar a arte brasileira do lugar periférico a que estava condenada. 

Sem esquecer, em tempo, que foi dos subúrbios das cidades que Di Cavalcanti extraiu a matéria com que realizou uma obra que traz em si, como poucas de sua época, o cheiro, o sabor e a malemolência peculiares do que se convencionou definir por brasilidade, eixo da nossa tradição histórica e cultural.   

 

 

 

 

 

 


 

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Mais um ano sem Roberto

É compreensível que, pela visibilidade social e, sobretudo, pelo sucesso na atividade política, Roberto despertasse algum desconforto a muita gente, coisa que a sua morte e o reconhecimento, um tanto tardio, de suas imensas qualidades de homem, deitariam ao chão. Em vida, por questões políticas, aqui e acolá, vez e outra, foi retaliado e quase retalhado, incompreendido, injustiçado, sem, contudo, jamais perder a serenidade ou alimentar qualquer sentimento negativo ou revanchista. Um homem bom, superior a qualquer maldade ou inveja de que fosse alvo.

Acima de tudo, porém, Roberto soube granjear amigos como ninguém. E era um líder nato, uma figura humana para a qual, onde quer que estivesse, todos os olhares naturalmente se voltavam. Tinha algo abençoado nos seus gestos mais desinteressados, uma radiação benigna em sua palavra. Com o passar do tempo, cada vez mais, fico convencido de que Roberto era uma dessas pessoas que vêm ao mundo para cumprir uma missão, para dar com a sua vida um exemplo de complacência permanente, e boa vontade no trato com o próximo, a quem veem como um irmão.

Não bastassem essas qualidades absolutamente necessárias, de natureza íntima do ser humano, Roberto estava invariavelmente bem-humorado e tinha uma presença de espírito desconcertante. Eram alegres os momentos de entretenimento ao seu lado, tinha sempre uma piada nova, uma improvisação brincalhona, uma provocação jocosa com um e outro, um jeito de fazer festa das mínimas coisas.

Na atividade política, onde se notabilizaria pela capacidade de negociação, pela disposição para o diálogo e pela correção de propósitos, foi um visionário e um construtor de sonhos. Para ele, pude testemunhar de perto, nada era maior que o interesse coletivo, o bem-estar do povo. Suas ideias eram radicalmente assentadas na vontade da maioria, na satisfação das aspirações alheias, desde que, para torná-las realidade, jamais tivesse de abrir mão dos seus princípios, dos valores morais por que orientava suas decisões.

Sem dúvida, foi o melhor prefeito de Iguatu de todos os tempos, em que pese o tempo mínimo de sua administração.

Como vereador e líder de bancada na Câmara, só uma vez me indispus com Roberto. Fui favorável a uma emenda a um projeto de aumento de salário dos servidores municipais, apresentada por um vereador de oposição, e, considerando a repercussão aos cofres públicos superiores às possibilidades reais, Roberto vetou-a. Deixei a liderança da bancada e 'cruzei' os braços ante os projetos de sua administração. E as matérias do seu interesse começaram a ser derrubadas pela oposição.

Dois ou três meses depois, por volta de onze horas, meia-noite, pouco mais ou menos, Roberto bate à porta de minha casa. Estava com o então vice-prefeito Marcelo Sobreira, exultantes os dois. A primeira pesquisa de opinião sobre a administração Iguatu acima de tudo, o lema do seu governo, indicava uma aprovação enorme, com números nunca obtidos por qualquer prefeito anterior.

Fomos para a beira da piscina, abri um uísque e varamos a madrugada jogando conversa fora. Acabara aquilo que, em verdade, nunca existira, a inimizade entre nós. Nas sessões seguintes, os projetos de Roberto voltariam a ser aprovados. Havia mais que o meu voto pessoal, que jamais negara ao que fosse bom para a cidade, havia o meu empenho, o discurso, modéstia à parte, convincente na perspectiva do que debatíamos, o jeito de tratar com os opositores, àquela altura assimilado do próprio convívio com Roberto.

Na noite do sábado, véspera do acidente trágico em que viria a falecer, Roberto veio a ter comigo. Eu jantava com Sulene, minha mulher à época, num restaurante da cidade. Falou-me das visitas que fizera a alguns vereadores a fim de convencê-los a votarem em mim para presidente da Câmara Municipal. Estava confiante, e, fugindo da modéstia que lhe era peculiar, afirmou: – "Vou fazê-lo presidente da Câmara!"

Morreria poucos minutos depois.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Histórias da Sexualidade

Duramente atacada pelo olhar cada vez mais obtuso da Folha de S. Paulo, que insiste em confundir o Brasil com a Finlândia, para lembrar aqui o que me disse a admirável antropóloga Lilia M. Schwarcz, que participou diretamente da produção e curadoria do evento, a exposição Histórias da Sexualidade, que visito hoje no Masp (Museu de Arte de São Paulo), vem se confirmando como o maior acontecimento no campo das Artes Visuais neste preocupante 2017.

Não bastasse a qualidade do acervo exposto, que reúne de obras-primas do museu, como A Banhista e o Cão Griffon (1870), de Renoir, a inquietantes pesquisas estéticas de Francis Bacon, a exemplo de Estudo do Corpo Humano (1949), a mostra tem a coragem de enfrentar desafios enormes, mesmo fora do território das artes.

Para ser mais claro, Histórias da Sexualidade, em menos de uma semana, foi objeto de cinco mandados de segurança. Esta a razão por que o Masp, esdruxulamente, foi condicionado a proibir a visitação para menores de 18 anos.

Num momento em que o país atravessa o mais deslavado retrocesso político-cultural de que se tem notícia, desde o Golpe de 1964, a exposição enseja, pois, a oportunidade de abrir um debate menos apaixonado ideologicamente e mais fundamentado sob o ponto de vista estético, o que, convenhamos, deveria ser mais relevante  ---  agora e sempre!

Mas, afinal, a que domínio pertence a discussão em torno do nu artístico? Ao estético, que diz respeito à arte propriamente dita, ou ao psicológico-moral, como agora, submetido a interesses conservadores e politicamente condenáveis?

É visitar qualquer livro de História da Arte e constatar: o nu é assunto do que existe de mais significativo em qualquer estilo de época, da arte grega à pós-modernidade. E, para os que se escondem sob as bandeiras das diferentes religiões a fim de justificar o injustificável, não é muito lembrar que os maiores pintores de todos os tempos, na linha de um Rafael, um Ticiano, um Michelangelo, um Velazquez, um Courbet, um Renoir, um Delacroix, um Manet, um Ingres, para mencionar aqui verdadeiros gênios das artes visuais, dedicaram-se enfaticamente ao tema da nudez, não raro sob encomenda da Igreja Católica.

Em pleno terceiro milênio, todavia, no Brasil, a expensas de um governo desmoralizado sob o ponto de vista ético, segmentos da sociedade organizam-se no intuito de controlar o destino da arte no país. O nu artístico, assim, que é explorado tortuosamente nos milhares de sites virtuais, ao alcance de crianças e adolescentes, é tratado no campo da arte como coisa obscena e indecente. Quanta hipocrisia.

Toda arte é representação, mesmo quando se estiver diante do obsceno. O nu, em si, nada tem de obsceno, mas a essência da obscenidade está na mente de quem a contempla, debaixo da forte influência do contexto em que se confundem a representação e o representado.

Não nos choca, portanto, a quase absoluta nudez numa praia ou numa pista de desfile carnavalesco, mas todos haveremos de nos sentir incomodados em presença de corpos nus no centro da cidade, no adro de uma igreja ou no pátio de uma escola.

Uma modelo, nua diante do escultor ou do pintor, não se sentirá constrangida pelos os olhos que atentam para os detalhes de sua nudez, mas se cobrirá, enrubescida, se se perceber observada pelo olhar invasivo do operário trabalhando no alto de um poste ao lado do ateliê. A nudez é a mesma, mas é diferente a contemplação.

Esta a razão por que me encanta estar aqui, in loco, visitando esta notável exposição sobre a sexualidade, que, se queira ou não e apesar de tudo, há de dividir a história da curadoria da arte brasileira em duas águas. Como na canção popular, todavia, é preciso estar atento e forte.