1. Gostaria de partir de um pressuposto que me parece relevante: A ideia de "texto" de acordo com a Semiótica Discursiva, isto é, a ideia de que "texto" é toda e qualquer unidade de análise, não apenas, pois, o "texto" verbal. Assim, um espetáculo de dança ou de teatro, um quadro, uma escultura, uma instalação e, mesmo, uma performance constituem exemplos de texto, como o são um poema, uma novela ou um romance.
2. Desse modo, um filme é um texto e, a exemplo de qualquer outro tipo de texto, é constituído por duas dimensões indissociáveis, só devidamente separadas para efeito de análise: Plano de Conteúdo e Plano de Expressão. Não existe entre um e outro hierarquia valorativa, ou seja, apenas como procedimento de análise é aceitável que se dê ênfase a um plano em detrimento do outro.
3. O Plano de Expressão é a dimensão mais visível de qualquer texto. É a forma, no caso do filme, as estratégias narrativas de que o cineasta lançou mão a fim de construir o seu texto, o texto fílmico.
4. O Plano de Conteúdo é o campo do sentido ou da significação. O filme explora tal assunto, o faz de certa perspectiva (sócio-política, filosófica, psicanalítica etc.) e me transmite essa mensagem etc.
5. Importante: Todo texto estabelece com o receptor uma comunicação e essa só é possível porque todo texto constitui "linguagem", isto é, um sistema organizado de "signos", o que significa dizer que esse texto segue regras, sintaxe ou uma gramática específica a fim de comunicar significado.
6. O texto fílmico, mais que qualquer outro tipo de texto, é uma linguagem dentro da qual se fazem perceber inúmeras outras linguagens: literatura, música, dança, teatro, artes visuais etc. Por isso compreender com competência um filme exige um mínimo de conhecimento da linguagem cinematográfica. Um enquadre, a sutileza de uma movimentação de câmera, o registro em close-up de um objeto etc., podem ser decisivos para o perfeito entendimento do que se passa num filme.
7. O cineasta (o diretor), assim como o poeta, o pintor, o arquiteto etc., ao realizar um filme está lidando com o Plano de Conteúdo e com o Plano de Expressão. Mas é o Plano de Expressão que lhe confere a marca individual que se define como "estilo": as estratégias narrativas que utiliza, isto é, como enquadra, como utiliza a câmera, como estabelece pela extensão dos planos, das cenas e sequências ou, ainda, pelos recursos de iluminação ou acréscimo da trilha sonora, o ritmo narrativo do filme etc. Sem desprezar, é óbvio, a alma do mesmo, que é a montagem.
8. Também o espectador, assim como o crítico de cinema, pode dar mais importância a um plano que a outro. Se ao Plano de Conteúdo, diz-se que é "conteudista", se ao Plano de Expressão, "esteticista". O certo, no entanto, é que um e outro só serão bem sucedidos em sua empreitada se se mostrarem capazes de perceber que os dois planos fílmicos, Forma e Conteúdo, são dimensões indissociáveis.
9. Conclui-se, disso, que, mesmo num simpósio como este (que se debruça sobre as forças de sentido psicanalítico do filme), deve-se atentar para os procedimentos de expressão da obra, posto que "a imagem que aparece na tela não é jamais totalmente neutra, mas sempre um signo de algo mais, num certo grau", [...] "de modo que o filme parece condenado, seja à opacidade de um sentido rico, seja à clareza de um sentido pobre", segundo as palavras de Bernard Pingaud.
10. Decálogo, episódio IX, Não desejarás a mulher do próximo (1990).
Direção: Krzysztof Kieslowski
Roteiro: Krzysztof Piesiewicz e Kieslovski
Música: Zbigniew Preisner
Elenco: Ewa Blaszczyk, Piotr Machalica, Artur Barcis, Jan Jankoswki, Jolanta Pietek-Górecka, Katarzyna, Jerzy Trela.
Duração: 58 min.
11. Ocorre a Não desejarás a mulher do próximo (como de resto a todo o Decálogo) o que se pode identificar como uma intencional "heterogeneidade constitutiva" a partir do que preceitua o próprio Mandamento. Como uma propriedade comum a qualquer texto, há no texto fílmico em exame uma multiplicidade de vozes, sendo relevante aqui, em face das limitações de tempo, identificar duas vozes presentes: Primeiro, a voz "falocêntrica", segundo os pressupostos do Antigo Testamento, imperativa, autoritária, proibitiva, expressa no advérbio de negação do mandamento que dá título ao filme, a que se soma a sugestão da mulher como objeto possuído pelo homem. Segundo, a voz transgressora que se materializa no eixo dramático do filme --- a cobiça de um homem impotente pela sua própria mulher.
12. Quem a possui, na contramão do que estabelece o IX Mandamento, é aquele que, segundo a voz das ruas, a "possui" sexualmente, ou seja, aquele que (perdoem-me a infelicidade da expressão) "funciona", que está dotado da capacidade física de realizar no coito a penetração.
13. Não à toa, um recurso formal eivado de simbolismo (o close-up) é recorrente no filme: 11:31" (cena em que ajuda um homem a abastecer seu carro com um funil); 13:26" (cena em que, desavisada, a enfermeira faz com o indicador e o polegar um gesto que a ele sugere a pequenez do seu sexo); 18:30" (cena em que a enfermeira movimenta o dedo ereto e o coloca entre as pernas) e 25:25" (cena em que a câmera se detém, num plano fechado, na empunhadura da máquina de fazer cópias de chaves). Para não falar do movimento sugestivo da personagem sobre a bicicleta, no ângulo da câmera em contra-plongée que sugere o ato sexual na perspectiva da mulher e o consequente "engrandecimento" da personagem masculina (componente psiquiátrico que norteia o desenrolar da história).
14. Em todas essas cenas, é importante frisar, Kieslovski lança mão de recursos estilísticos: a escolha do plano é determinada pela distância entre a câmera e o objeto e pela duração focal.
15. Nas cenas em destaque, primeiríssimo plano, o enquadramento serve para assinalar o simbolismo da imagem (o falo ereto) e o poder de significação psicológico e dramático da cena sobre a personagem. Não é outra a razão por que o diretor adota o que se convencionou chamar de "câmera subjetiva", quer dizer, a câmera opera com a imagem do objeto a fim de mostrá-lo na perspectiva da personagem, carregando a imagem de força psicológica e dramática que tal objeto não teria se o registro tivesse a "frieza" da câmera objetiva. Nesse caso, o objeto seria apenas um elemento usado na composição do quadro.
16. Por último: Em O Absoluto Frágil, o filósofo esloveno Slavoj Zizek faz curiosa leitura do Decálogo, os Dez Mandamentos, sob o ponto de vista judaico-cristão a fim de questioná-lo. Reporta-se à teoria defendida pelo escritor John Gray (que considera uma versão vulgarizada de psicanálise narrativista-desconstrucionista segundo a qual, "se somos a história que contamos a nós mesmos a nosso respeito, a solução para o impasse está em uma reescrita 'positiva' da narrativa do nosso passado".
17. Slavoj Zizek, em tese, propõe em seu belíssimo ensaio a reescrita do próprio Decálogo e toma como elemento de apoio ao que defende aquele que considera o mais severo dos mandamentos, reportando-se à cena do monde Sinai: "o adultério --- sim ---, se for sincero e servir ao objetivo de nossa profunda realização-de-si". Puro Lacan!
18. O filósofo chama-nos a atenção para o fato de que "o Decálogo (os mandamentos divinos impostos de maneira traumática) tem nos 'direitos humanos' modernos o seu contrário. Diz ele: "Como demonstra amplamente a experiência de nossa sociedade pós-política liberal-permissiva, os direitos humanos são, no fundo, 'apenas direitos de violar os Dez Mandamentos".
19. O macho-dominador do filme, que propõe à mulher ter um amante reedita o Deus ciumento do Decálogo, mas se comporta como a esposa do marido infiel a quem lança a peremptória mensagem: "Faça mas faça de um jeito que eu não tome consciência de nada".
20. A interlocução entre Slavoj Zizek e Kieslowski nos dez capítulos do seu impagável Decálogo são, ao meu modesto ver, incontornáveis. MAS ISSO É APENAS UMA PROVOCAÇÃO PARA O DEBATE.