sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Di Cavalcanti, 120 anos

Há 120 anos nascia no Rio de Janeiro Emiliano Di Cavalcanti. Subjetivações à parte, trata-se do mais importante artista do modernismo brasileiro, não apenas pelo rigor estético com que construiu sua vastíssima obra, leve-se em conta ter feito parte de um grupo a que pertencem nomes de peso das artes visuais do país, como os de Portinari, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, mas por ser, tanto quanto o extraordinário artista que foi, um intelectual dedicado a desvendar os traços com que se procura definir o que, na falta de melhor expressão, chamaríamos de caráter nacional brasileiro. 

Ao lado de ser, pois, um pintor dotado de uma capacidade de figuração que o notabiliza entre os seus pares, Di foi um intelectual dotado de fina compreensão do espírito de brasilidade por que se nortearam os realizadores do mais relevante acontecimento cultural e artístico do país, a Semana de Arte Moderna de 1922. 

Em tempo, lembremos que foi Di Cavalcante o idealizador do referido evento. 

Como Mário de Andrade, mas antes deste, Di era possuidor de uma sensibilidade incomum para identificar as forças populares que haveriam de ser decisivas para a nacionalização da arte brasileira. Também a ele se deve atribuir, com justiça, as alternativas de ação diante dos desafios culturais da primeira metade do século XX no Brasil. Tanto quanto Mário de Andrade, Di soube conduzir o país, em termos artísticos, na direção de uma ruptura definitiva com os cânones dominantes, quase em sua totalidade estranhos às nossas raízes culturais. 

Foi, acima de tudo, um pintor da modernidade, mais ou menos na linha do que explora Charles Baudelaire, em seu notável O Pintor da Vida Moderna, acerca da flânerie no conjunto da obra do pintor francês Constantin Guys, entendendo-se por flânerie o gosto pelo voltear desinteressado e atento da rua, o caminhar pela cidade em constante observação dos elementos humanos que a constituem. 

A diferença, a essa altura fundamental, entre Di e Constantin Guys, reside no fato de que, se este atenta para o contexto urbano em sua efervescência cotidiana, aquele se volta para o lirismo íntimo das personagens mais humildes da cidade, a exemplo do mestiço, da prostituta, do vendedor de peixes e outros párias de uma sociedade marcada por imensas contradições. É com esses, invariavelmente, que Di Cavalcanti vai povoar sua obra, quer por aguçada sensibilidade lírica, quer por convicção ideológica publicamente assumida. 

Consta que terá produzido algo em torno de nove mil trabalhos durante os sessenta anos dedicados à arte, dos quais, rigorosamente catalogados, são a ele atribuídos 5.365 (óleo sobre tela, sobre cartão, sobre madeira, guache, aquarela, grafite, nanquim, painéis, tapeçarias, cenários etc.). 

Sua obra, perpassada de impactante qualidade poética, representa uma bela porção do que se fez de mais surpreendente em termos artísticos no Brasil modernista. É preciso que se evidencie aqui, no entanto, que se tornaria um crítico do movimento em termos nacionais, pelo que identificou como burguês no esteio político em que a geração de 22 se sustentou. Essa a razão por que, um ano após a Semana de Arte Moderna, deixaria o país rumo a Europa, em busca de novas orientações estéticas e políticas. 

A propósito dos 120 anos de Di Cavalcanti, visitei há pouco, na Pinacoteca de São Paulo, prestigiada exposição de 200 de seus maiores trabalhos. Trata-se da maior e mais importante exposição do pintor em 46 anos, uma narrativa pictórica que se estende de 1920 a 1950. É nesse período, por sinal, que deparamos com o Di mais atento ao transitório, ao fugidio, arriscando-se com um lirismo incontido ao encontro das cenas urbanas impregnadas de erotismo e musicalidade. 

Nos subúrbios da modernidade, Di Cavalcanti 120 anos, como é denominada a mostra, traça com um rigor analítico digno de nota, um perfil preciso e precioso do mais brasileiro dos pintores da primeira geração modernista. Como o próprio título da mostra sugere, trata-se de um artista que ousou beber nas fontes da nacionalidade, contribuindo, assim, para tirar a arte brasileira do lugar periférico a que estava condenada. 

Sem esquecer, em tempo, que foi dos subúrbios das cidades que Di Cavalcanti extraiu a matéria com que realizou uma obra que traz em si, como poucas de sua época, o cheiro, o sabor e a malemolência peculiares do que se convencionou definir por brasilidade, eixo da nossa tradição histórica e cultural.   

 

 

 

 

 

 


 

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