Com a morte de Nelson Pereira dos Santos (1928-2018), perdeu o Brasil seu mais importante realizador de cinema desde Glauber Rocha (1931-1981). Intelectual de esquerda, com passagem pelo PCB, para cujo partido produziu trabalhos memoráveis no campo da crítica cinematográfica, e da literatura, de que era profundo conhecedor, Nelson foi presença notável em momentos decisivos das lutas em favor da redemocratização do país.
Como poucos grandes artistas brasileiros, tinha uma fina compreensão do que se pode definir como a função social da arte, o que salta aos olhos de qualquer espectador minimamente atento aos conteúdos explorados por ele em sua vasta cinematografia. Estão nela, desde a estreia com Rio, 40 graus, em 1956, os despossuídos de uma sociedade cruelmente desigual, negros e mestiços, a gente simples do morro e da periferia, os humilhados e ofendidos dos quatro cantos do país.
Mas, se é oportuno realçar o compromisso com as lutas em favor de uma sociedade mais justa e mais humana, de que Nelson Pereira dos Santos jamais se esquivou, num momento em que mesmo o audiovisual presta-se a fortalecer a retomada de um pensamento de extrema-direita, a exemplo do que fazem despudoradamente os cineastas José Padilha e Marcos Prado com a série O mecanismo, em streaming da Netflix, é sobre o artista brilhante que gostaria de tecer aqui algumas considerações.
Na melhor tradição do cinema neorrealista, Nelson Pereira dos Santos deixa-nos com sua obra um dos mais expressivos legados do cinema mundial. Refiro-me, aqui, ao esteta, ao diretor de algumas das mais inesquecíveis sequências do cinema brasileiro, bem na linha do que se vê logo no início de Rio, 40 graus, quando a câmera subjetiva de Nelson acompanha um menino pobre atrás de sua lagartixa de estimação, que fugira para o zoológico da Quinta da Boa Vista, alojando-se na jaula das cegonhas; chama-a, e a custo a resgata. Vê-se, então, em closes bergmanianos, a expressão terna do garoto diante da beleza imensa do parque, atração turística inacessível para ele. A sequência torna-se ainda mais tocante quando um segurança toma-lhe a lagartixa das mãos e a atira para as cobras. Em plano fechado, vê-se o réptil dirigindo-se no rumo de sua presa inesperada. Que bela alegoria da sociedade de classes.
Entretanto, a despeito de ter feito com Rio, 40 graus uma estreia notável, por suas imensas qualidades de forma e conteúdo, nada que se possa comparar a Vidas Secas (1963), quarto filme de Nelson Pereira dos Santos, roteirizado a partir do romance de mesmo nome do escritor alagoano Graciliano Ramos.
Aqui, plasmando-se no que define como inigualável senso dos valores dramáticos e na segura penetração psicológica do escritor, Nelson realizou um singular trabalho de adaptação: reinventou a narrativa do livro sendo-lhe, no entanto, rigorosamente fiel; modificou sua estrutura textual a fim de obter resultados impensáveis numa linguagem não literária, como o discurso indireto livre ou fluxo de consciência*, que torna possível para o espectador acompanhar o que se passa na cabeça de Fabiano, Sinhá Vitória, os dois meninos e, numa prova de sua genialidade com a câmera, da própria cachorra Baleia.
É esse recurso narrativo, por sinal, que Nelson Pereira dos Santos explora à perfeição já nas sequências iniciais do filme, quando revela, por exemplo, o desejo obsessivo de Sinhá Vitória de ter uma cama confortável como a de Seu Tomás, um proprietário de terras para quem o marido trabalhara. Para não falar da comovente (e plasticamente soberba) cena da morte lenta de Baleia, quando a montagem da narrativa remete o espectador para o poético delírio da cachorra, a ver nutridos preás que, supostamente, surgiriam do mato ressequido como alternativa para matar a fome de Fabiano e sua família.
Como só os grandes diretores são capazes de fazer de forma exemplarmente bem sucedida, em meio à pobreza da produção cinematográfica nacional da época, Nelson Pereira dos Santos tirou leite de pedras, esgotou, com uma criatividade incomum, os parcos recursos de que dispunha para realizar uma filmografia de altíssimo nível, por que não dizer a mais elevada experiência estética do Brasil em termos cinematográficos.
Do experimentalismo de Vidas secas ao realismo elegante de Memórias do cárcere (1984), da ousadia estilística de Como era gostoso o meu francês (1972) ao naturalismo de O amuleto de Ogum (1975), sem esquecer Rio, Zona Norte (1957), Tenda dos milagres (1977), Jubiabá (1987), e tantos outros filmes importantes de sua lavra, ombreando-se a Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos é muito mais que uma figura central do Cinema Novo. Seu nome se confunde com a própria história do Cinema, do Brasil e do mundo.
* Representação verbal ou imagética do conteúdo e processos psíquicos da personagem de modo parcial ou totalmente desarticulado.