quarta-feira, 25 de abril de 2018

Nelson Pereira dos Santos

Com a morte de Nelson Pereira dos Santos (1928-2018), perdeu o Brasil seu mais importante realizador de cinema desde Glauber Rocha (1931-1981). Intelectual de esquerda, com passagem pelo PCB, para cujo partido produziu trabalhos memoráveis no campo da crítica cinematográfica, e da literatura, de que era profundo conhecedor, Nelson foi presença notável em momentos decisivos das lutas em favor da redemocratização do país. 

Como poucos grandes artistas brasileiros, tinha uma fina compreensão do que se pode definir como a função social da arte, o que salta aos olhos de qualquer espectador minimamente atento aos conteúdos explorados por ele em sua vasta cinematografia. Estão nela, desde a estreia com Rio, 40 graus, em 1956, os despossuídos de uma sociedade cruelmente desigual, negros e mestiços, a gente simples do morro e da periferia, os humilhados e ofendidos dos quatro cantos do país. 

Mas, se é oportuno realçar o compromisso com as lutas em favor de uma sociedade mais justa e mais humana, de que Nelson Pereira dos Santos jamais se esquivou, num momento em que mesmo o audiovisual presta-se a fortalecer a retomada de um pensamento de extrema-direita, a exemplo do que fazem despudoradamente os cineastas José Padilha e Marcos Prado com a série O mecanismo, em streaming da Netflix, é sobre o artista brilhante que gostaria de tecer aqui algumas considerações. 

Na melhor tradição do cinema neorrealista, Nelson Pereira dos Santos deixa-nos com sua obra um dos mais expressivos legados do cinema mundial. Refiro-me, aqui, ao esteta, ao diretor de algumas das mais inesquecíveis sequências do cinema brasileiro, bem na linha do que se vê logo no início de Rio, 40 graus, quando a câmera subjetiva de Nelson acompanha um menino pobre atrás de sua lagartixa de estimação, que fugira para o zoológico da Quinta da Boa Vista, alojando-se na jaula das cegonhas; chama-a, e a custo a resgata. Vê-se, então, em closes bergmanianos, a expressão terna do garoto diante da beleza imensa do parque, atração turística inacessível para ele. A sequência torna-se ainda mais tocante quando um segurança toma-lhe a lagartixa das mãos e a atira para as cobras. Em plano fechado, vê-se o réptil dirigindo-se no rumo de sua presa inesperada. Que bela alegoria da sociedade de classes. 

Entretanto, a despeito de ter feito com Rio, 40 graus uma estreia notável, por suas imensas qualidades de forma e conteúdo, nada que se possa comparar a Vidas Secas (1963), quarto filme de Nelson Pereira dos Santos, roteirizado a partir do romance de mesmo nome do escritor alagoano Graciliano Ramos. 

Aqui, plasmando-se no que define como inigualável senso dos valores dramáticos e na segura penetração psicológica do escritor, Nelson realizou um singular trabalho de adaptação: reinventou a narrativa do livro sendo-lhe, no entanto, rigorosamente fiel; modificou sua estrutura textual a fim de obter resultados impensáveis numa linguagem não literária, como o discurso indireto livre ou fluxo de consciência*, que torna possível para o espectador acompanhar o que se passa na cabeça de Fabiano, Sinhá Vitória, os dois meninos e, numa prova de sua genialidade com a câmera, da própria cachorra Baleia. 

É esse recurso narrativo, por sinal, que Nelson Pereira dos Santos explora à perfeição já nas sequências iniciais do filme, quando revela, por exemplo, o desejo obsessivo de Sinhá Vitória de ter uma cama confortável como a de Seu Tomás, um proprietário de terras para quem o marido trabalhara. Para não falar da comovente (e plasticamente soberba) cena da morte lenta de Baleia, quando a montagem da narrativa remete o espectador para o poético delírio da cachorra, a ver nutridos preás que, supostamente, surgiriam do mato ressequido como alternativa para matar a fome de Fabiano e sua família.

Como só os grandes diretores são capazes de fazer de forma exemplarmente bem sucedida, em meio à pobreza da produção cinematográfica nacional da época, Nelson Pereira dos Santos tirou leite de pedras, esgotou, com uma criatividade incomum, os parcos recursos de que dispunha para realizar uma filmografia de altíssimo nível, por que não dizer a mais elevada experiência estética do Brasil em termos cinematográficos.

Do experimentalismo de Vidas secas ao realismo elegante de Memórias do cárcere (1984), da ousadia estilística de Como era gostoso o meu francês (1972) ao naturalismo de O amuleto de Ogum (1975), sem esquecer Rio, Zona Norte (1957), Tenda dos milagres (1977), Jubiabá (1987), e tantos outros filmes importantes de sua lavra, ombreando-se a Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos é muito mais que uma figura central do Cinema Novo. Seu nome se confunde com a própria história do Cinema, do Brasil e do mundo

 * Representação verbal ou imagética do conteúdo e processos psíquicos da personagem de modo parcial ou totalmente desarticulado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

sexta-feira, 20 de abril de 2018

O Sol na Cabeça

Só mesmo o ódio que a grande imprensa, capacho da elite brasileira e dos partidos que a representam, nutre pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para fazer com que um prêmio Nobel da Paz chegue ao país e nenhuma reportagem especial, nenhuma entrevista seja realizada com ele por qualquer dos grandes jornais ou emissoras de TV. Refiro-me a Adolfo Pérez Esquivel, que veio ao Brasil, na semana que termina, a fim de visitar o ex-presidente, detido há duas semanas nas dependências da Polícia Federal, em Curitiba.

Só mesmo uma Justiça comprometida com os interesses por que se orienta o golpismo fascista, que impera no Brasil, para impedir que um prêmio Nobel da Paz possa visitar um amigo, não por acaso a maior e mais importante liderança de esquerda viva do Continente, e uma das maiores e mais importantes figuras públicas do mundo.

Só mesmo num país atrasado e moralmente desfigurado é possível ocorrer tão inequívoca prova de despreparo político e intelectual, a exemplo do que se viu por esses dias em Curitiba. Uma vergonha!

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Em tempo: Aonde anda a corriola da Praça Portugal? Onde quedam, pálidos de vergonha, os batedores de panela? Em que lugar, tomada de ódio e intolerância, a gente bonita, as camisas "oficiais" da seleção brasileira? Onde, em que escaninho da desfaçatez, os apitos, as coreografias ensaiadas, os adesivos dos automóveis, "Eu não tenho culpa, votei no Aécio"?

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À uma poltrona da Livraria Cultura, chega-me ao encontro o poeta e membro da Academia Cearense de Letras, Dimas Macedo. Aborda-me sobre o escritor carioca Geovani Martins, cujo livro de estreia chega às lojas do Brasil e de mais sete outros países como um sucesso estrondoso. 

Tomo nas mãos o livro de contos "O Sol na Cabeça", título que me remete, de imediato, à belíssima "Trem Azul", de Lô Borges. Subjetivação à parte, leio de cabo a rabo essa verdadeira obra-prima de feitio neorrealista que explora o submundo do morro carioca, de personagens marcados há décadas pelo sofrimento, sobreviventes das UPP's, das guerras entre facções, milícias e incursões militares, da segregação social e do preconceito da classe média alta do Rio de Janeiro. 

Os contos, embora vazados num estilo que se pode considerar clássico do gênero, objetividade, unidade de tema e ação, número reduzido de personagens, diálogos como fator narrativo decisivo para a elucidação da trama etc., traz um tratamento de linguagem que se notabiliza pela força dramática e fidedignidade ao mundo em que transcorre a quase totalidade das narrativas. 

É o que se pode concluir, por exemplo, da leitura do primeiro conto, "Rolézim", com discurso em primeira pessoa e uma linguagem extraída da voz do morro, em que pontuam, por isso mesmo, um quase dialeto eivado de gíria e estilizações que se permitem, aqui e além, a introdução de termos advindos da classe média carioca que constitui, em grande parte das histórias, o contraponto do olhar humilhado e ofendido do narrador, que não raramente dá a ver a própria figura humana do autor, ele mesmo morador da favela. 

A propósito dessa incomunicabilidade, dessa invariavelmente frustrada experiência de alteridade, verdadeiro leitmotiv do que existe de mais humano nesse livro desconcertante, vejamos o fragmento: --- "De um momento pro outro tudo se desfaz, tudo desaba, e ficamos sozinhos frente ao abismo que é a outra pessoa. Daí vem uma vontade de falar não sei o quê, só pra tentar reunir uns pedaços da gente, meia dúzia de restos espalhados pelo mistério que é a convivência". 

É que a forma como Geovani Martins expõe a verdadeira luta de classes em que se veem inseridas as personagens dos contos, ao lado de todas as imensas qualidades de uma escrita original e coerente, reflete a maturidade precoce do escritor e aponta para uma nova percepção estética em termos da prosa de ficção brasileira contemporânea. Um achado. 

 

 

 

 

 

 

 


 

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Direita e Esquerda

É obsedante a evocação de conceitos ideológicos, poucas vezes utilizados com exatidão, em meio ao festival de tolices que tomam conta do país num dos momentos mais graves de sua História. O espectro dos termos "direita" e "esquerda" é um deles. E haja afirmações que a um só tempo expõem a ignorância intelectual e o exercício do ódio desmedido ao contraditório, alimentando de substâncias nocivas o ar quase irrespirável do ambiente político nacional.

De resto, sabe-se ou deveria saber-se que os conceitos "direita" e "esquerda" remontam ao século XVIII, e prendem-se a uma necessidade de natureza prática: "Os que forem contrários às mudanças, sentem-se à minha direita, o que forem favoráveis, à minha esquerda", foi como decidiu organizar o auditório o presidente da mesa da Assembleia pouco antes da Revolução Francesa. Daí, convencionou-se rotular de "direita" aqueles que se posicionam contra as transformações, e, de "esquerda", os que defendem essas transformações. Mas a coisa, claro, teve desdobramentos conceituais significativos, como tentaremos explicar.

Há os radicalmente contrários às mudanças, ditos de "extrema-direita ou reacionários", que não admitem avanços e, mais que isso, desejam o retrocesso; 2. os que não querem mudanças, mas se mostram satisfeitos com o que existe no cenário político, sendo rotulados de "centro-direita ou conservadores"; 3. os que defendem mudanças graduais, consentidas pela sociedade, aos quais se aplica a classificação de "centro-esquerda ou reformistas"; e 4. aqueles que pregam transformações radicais, os de "extrema-esquerda ou revolucionários".

Simplificações à parte, o certo é que tais conceitos são de uso recorrente nos dias de hoje, mundo afora, nomeadamente no Brasil, em que os avanços sociais do governo do Partido dos Trabalhadores já em parte foram enterrados pelo golpismo de Michel Temer e sua quadrilha, cuja tão cobiçada cereja encima o bolo do retrocesso desde a semana passada com a prisão (sem provas!) do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Não custa reconhecer, no entanto, que o país volta ao tempo do autoritarismo e das práticas nazi-fascistas ombreando-se a outros países do Continente, no que parece ser uma onda reacionária cujas consequências se fazem notar, no Brasil,  com o movimento orquestrado do Executivo, do Congresso Nacional e do Judiciário no sentido de espezinhar a Constituição Federal e tirar das eleições de outubro o líder das pesquisas de intenção de voto para presidente, pela objetiva razão de que sua vitória representaria a superação do golpe de 2016 e a recondução do país a uma orientação de governo mais à esquerda.

No que tange à classificação do espectro de ideias a que nos referíamos, é oportuno ressaltar que, na contramão do que professam diferentes teses acadêmicas no contexto da pós-modernidade, para as quais os conceitos de direita e esquerda perderam a sua validade, tornando-se obsoletos em face da complexidade de motivações políticas e estruturas de governo por que se orienta o mundo contemporâneo, sobressaem as contribuições teóricas do pensador italiano Norberto Bobbio no clássico Direita e Esquerda, para quem não se pode negar validade àquilo que faz parte do imaginário e da linguagem da vida cotidiana.

Considerando que a realidade é bem mais complicada do que as tipologias abstratas com que se tem procurado rotular convicções e práticas políticas, e o despreparo com que tais termos são utilizados, na maior parte das vezes, por quem não tem a menor ideia do que significam, ocorre-me lembrar das palavras do linguista americano Noam Chomsky, ele mesmo citado por Bobbio no referido livro: --- "... a distinção entre direita e esquerda é claríssima e poderia ser resumida de modo breve e simplificado, sem distinções sutis mais sofisticadas, na tese de que a esquerda está do lado dos pobres e a direita do lado dos ricos". Simples assim.