sábado, 28 de setembro de 2019

A vida invisível de Eurídice Gusmão

Por curioso, não assisti, ainda, ao filme, plasmado no livro homônimo de Martha Batalha. Mas li este que é o romance de estreia da autora pernambucana, 47, nascida no Recife. Li, que fique claro, meio que por influência do Karim Aïnouz, cujo filme ganhou o prêmio "Um certo olhar", seção dos profissionais de cinema, no Festival de Cannes 2019. 
Arrebatou-me.
Com um perfume machadiano que lembra a fase romântica do bruxo de Cosme Velho, e a leveza rara de Lygia Fagundes Telles de Ciranda de Pedra (1954), por exemplo, A vida invisível de Eurídice Gusmão, ambientado no Rio de Janeiro dos anos 40, narra a comovente história das irmãs Gusmão desde o desaparecimento, sem dar notícias, de Guida, o drama de Eurídice, e a repercussão dessa perda na vida da pacata dona de casa na primeira metade do século 20.
Nada, assim, na ligeireza do primeiro olhar, que exceda, insisto, ao que fez Machado de Assis na fase preconceituosamente classificada "imatura". Há, natural, o toque prazeroso da leitura, a tessitura clara e envolvente, sem que lhe falte, como não falta a Ressureição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878), para ser mais didático, a impostura sutil da fase realista de Machado (que começa a partir de 1881), nem a poesia doce de Lygia no livro de estreia. 
É romance na acepção rigorosa do termo, cuja estrutura, mesmo lembrando os clássicos citados, mostra-se original, criativa e, acima de tudo, reveladora do absoluto domínio da narrativa que surpreende em se tratando de um livro de estreia.
Se em Machado de Assis o contexto nos remete à sociedade carioca de fins do século 19, com ênfase para a figura aparentemente submissa da mulher doméstica, educada para ser boa esposa (aos olhos dos leitores menos atentos, sobretudo), e em Lygia deparamos com o desmembramento da família e sua repercussão na vida de Virgínia, personagem central do romance, Batalha explora o universo feminino em nova chave, mais simbólica, mais empenhada em espelhar a mulher comum, avós e bisavós que povoam este país tão marcado por contradições, tabus e machismos de variados carizes.
A novidade? Bem, a novidade está em que Martha Batalha constrói um romance sólido, calcado num cruzamento de histórias individuais que seduzem o leitor da primeira à última de suas 185 páginas, cujos núcleos dramáticos trazem à tona a vida íntima de personagens fascinantes: Zélia, a vizinha fofoqueira; seu pai, Álvaro, o jornalista conquistador e beberrão que leva a família a desconstruir-se impiedosamente; a cuidadora de crianças Filomena, ex-prostituta convertida; o solteirão Antônio, perdido de amores por Eurídice e Luiz, o ricaço republicano. Todos eles, para além do que é comum em romances do gênero, elaborados com requinte, pois que Batalha os retrata com elementos epistemológicos que, a um só tempo, deixam ver da crueza naturalista ao psicologismo freudiano.
A forma como tece, analisa, disseca a amargura existencial de Zélia, uma das personagens mais bem imaginadas do romance contemporâneo, é digna de um mestre: "Até que Zélia resistiu bastante. Resistiu às roupas remendadas e às calcinhas de segunda mão. [...] Resistiu às risadas dos primos e à falta de carinho da mãe. [...] Resistiu à sopa rala e ao choro dos irmãos mais novos".
Com a sensibilidade da grande artista e a sutileza dos narradores "perversos", que sabem desvendar o segredo da miséria alheia e nos contagiar como se seus cúmplices, Batalha vai desfazendo os nós do enigma, expondo as vísceras do infortúnio de Zélia: "Mas Zélia não resistiu à adolescência. Quando percebeu dois caroços de feijão por trás do peito, quando sentiu as dores no ventre baixo acompanhadas de sangue, quando descobriu desejos e temores que não sabia de onde vinham, nem para que serviam, seu inflexível otimismo se flexionou".
"Zélia tem boca de gaveta, Zélia tem boca de gaveta!", os primos agora diziam.
É lapidar, emblematicamente cruel, como só nos grandes escritores é possível encontrar com tamanha força, o parágrafo com que a narradora desfecha o drama da ultrajante Zélia, como a expor a origem de sua maledicência e sua maldade sem freios. 
Sob este aspecto, desculpando-me pela extensão do fragmento, considero relevante citá-lo, porque notável como narrativa, primoroso pelo ritmo e pelo estilo: "Numa tarde com poucas pessoas na casa ela foi até o banheiro. Trancou a porta e conferiu seu rosto no espelho. Aquela não era mais a imagem da criança levemente estrábica. [...] Aquela era a imagem de uma moça com cabelos desajeitados, olhos e nariz desajeitados, espinhas salpicando a testa desajeitada e uma imensa boca, que esbanjava lábios e dentes. Era uma boca abundante, desnecessária, excessiva. Duas linhas grossas que cortavam o rosto sem piedade. Zélia permaneceu olhando a própria imagem enquanto formava a opinião que teria de si para o resto da vida. Era uma mulher feia".
Se me vali de uma personagem "secundária", é que não me permiti ser spoiler desta vez. 
Quanto ao romance, é coisa soberba. Vale conferir, se não o fez ainda.
   



  
     

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