quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Prólogo, ato, epílogo

Na mesma semana em que foi tratada como "aquela mulher sórdida" pelo Ministro da Educação, Abraham Weintraub, num dos episódios mais abomináveis de que se tem notícia em toda a história da pasta, a deusa do teatro brasileiro, Fernanda Montenegro, lança Prólogo, ato, epílogo (Companhia das Letras, 392 págs.), autobiografia produzida com a colaboração de Marta Góes.
O livro assinala as comemorações pelos 70 anos de carreira da mais notável atriz brasileira desde que morreu Cacilda Becker, nome de maior prestígio até o final dos anos 60.
Fernanda Montenegro, da altura dos seus irretocáveis 90 anos, contados com exatidão no próximo dia 16, conta no livro a sua trajetória desde a infância, no Rio de Janeiro, onde nasceu no bairro de Campinho, entre Jacarepaguá, Cascadura e Madureira, até tornar-se a nossa mais "respeitada" atriz do rádio, do teatro e do cinema. Comenta seus trabalhos de maior repercussão nos palcos, peças que marcaram a história do teatro nacional, com destaque para as memoráveis montagens de A Moratória (1955), O Beijo no Asfalto (1961), Fedra (1986); no cinema, A Falecida (1965), Eles não Usam Black-tie (1981), Central do Brasil (1998) e na televisão, A Morta sem Espelho (1963), Guerra dos Sexos (1983) e O Outro Lado do Paraíso (2017).
Mas ler as memórias de Fernanda Montenegro (li-as em ebook), é muito mais que revisitar a grande agenda do teatro e do cinema brasileiros, mesmo quando a atriz verticaliza seus comentários cobertos de lucidez sobre a arte no país e seu entorno, na linha do que faz referindo-se às desastrosas ações do governo de Fernando Collor, como fechar o Ministério da Cultura, ou quando se refere à campanha das Diretas Já, de que participou desde o primeiro evento no dia 12 de janeiro de 1984 , em Curitiba. É também se deleitar com a leveza de seu depoimento e a forma não menos delicada de recordar passagens emocionantes de sua vida, na perspectiva do que faz sobre a primeira viagem à Europa, em 1974, com o marido, Fernando Torres, e os filhos: "Voamos até Cagliari e lá tomamos um ônibus para Oristano, a cidade mais próxima da aldeia dos meus sardos. [...] A metade da casa de pedra em que meus avós viveram ainda estava lá". A essa altura de suas recordações, reporta-se a outras viagens, como a de 2010, para receber homenagens de autoridades em Bonarcado, Roma e Milão.
Sobre o ofício de atriz, dá um depoimento um tanto amargo: "Troquei de pele durante 70 anos. Nunca tive meu próprio rosto nem postura". E arremata, citando Cecília Meirelles: "Em que espelho ficou perdida minha face?". Vai além, relembra os amigos, os atores e atrizes que lhe serviram de modelo, gente como Grande Otelo, Bibi Ferreira e a francesa Henriette Morineau, de quem ressalta a " disciplina absoluta". Para terminar com a declaração que nós, seus admiradores confessos, jamais queríamos ouvir: "Tudo vai se harmonizando para a despedida inevitável. Mas acordo e canto".
Em sua visita recente a Fortaleza, homenageada durante a solenidade de abertura do CineCeará 2019, Fernanda Montenegro repreendeu com elegância as atrizes de A Vida invisível, filme de Karin Aïnouz, que, desatentas, deixavam o palco do José de Alencar sem o rito do agradecimento à plateia: "Psiu, voltem!" tonitruou Fernanda, "Um elenco não deixa um palco assim!"
E dando-lhes as mãos, curvou-se no proscênio com a dignidade de sempre, enquanto duas lágrimas, confesso, rolaram-me pela face serenamente.
 

   

 

 

2 comentários:

  1. O obscurantismo só aumenta o brilho e o respeito que devemos a está mulher admirável.

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  2. A sensatez e a sensibilidade de Fernanda Montenegro nos faz admirar, ainda mais, a arte brasileira,seja Literatura,Teatro ou Cinema tão bem representadas pela Dama de nossa cultura. As palavras, ora elegantemente ríspidas e claramente e ,honrosamente, emocionadas do amigo Álder Teixeira ecoam como um alerta para a nossa sociedade, de modo especial a todos aqueles que admiram ou trabalham no campo das artes. Suas letras aqui registradas neste blog representam,sem sobra de dúvidas, o pensamento da cátedra intelectual deste país.
    Forte abraço,meu amigo.

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