segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

A arte contra o ovo da serpente

                                              

Nos últimos anos, podemos observar que a produção de trabalhos acadêmicos no campo da arte tem crescido significativamente, o que reforça a ideia de que nem tudo está perdido, e que existem saídas e alternativas de ação para alguns sérios problemas que artistas, intelectuais e amantes da arte têm sido levados a enfrentar, nomeadamente entre nós brasileiros, desde janeiro de 2019. São livros, teses, dissertações, projetos de pesquisa, além de traduções de textos de autores estrangeiros importantes e considerados fundamentais sobre estética, filosofia e história da arte.

Em diferentes perspectivas, no entanto, esses trabalhos giram em torno de algumas questões fundamentais que parecem, ainda, continuar despertando o interesse de todos aqueles que lidam com a matéria: o que é arte? Quais são as suas histórias? Com que cariz têm sido examinadas hoje as diferentes linguagens artísticas? Qual o papel do artista em meio a um mundo dominado por referenciais científicos e pelos avanços da tecnologia? Ainda faz sentido a arte num mundo marcado por tantas contradições e cada vez mais intolerante? Por que, no âmbito da universidade, estudam-se as artes, e não a Arte?

Digo isso a propósito de ter em mãos (no monitor do computador, para ser mais preciso), uma dessas produções, cujos autores, gentilmente, pedem sobre a mesma algumas considerações deste velho labutador das artes, como se o livro já não tivesse entre as suas muitas qualidades uma notável vocação autorreferencial, razão por que constitui uma leitura antes de tudo "moderna" no melhor sentido da palavra. Explico-me: os textos, todos eles e em alguma medida, voltam-se para si mesmos, jogam com a curiosidade do leitor, abrem enigmas e apontam saídas, entrecruzam-se, dão-se as mãos, trilham caminhos porosos e dialógicos sem jamais perderem o fio da meada ou se distanciarem, minimamente que seja, do que elegeram com fundamental: a discussão em torno da própria arte.

Assim, multidisciplinar, nascido em grande parte da experiência artística pessoal de seus próprios autores, o livro é moderno não apenas por força do suporte de que lança mão para se tornar realidade, mas, sobretudo, insisto, por explorar procedimentos que rompem de vez com as fronteiras que separam (ou pareciam separar!) as diferentes semióticas --- fotografia, cinema, literatura, vídeo, artes plásticas etc. ---  o que resulta, como disse, gostosamente "poroso" no sentido atribuído à palavra por Walter Benjamin em belo ensaio sobre a cidade de Nápoles: --- "... porosidade é a lei inesgotável da vida nesta cidade, reaparecendo por toda parte." Por "poroso", pois, deve-se entender essa coexistência de diferentes olhares, perspectivas epistemológicas, inter-semiologias, que fazem com que este livro lance luz sobre regiões sombrias nas tentativas de diálogo entre as diferentes estéticas.

Abrindo esta seleta de textos, Carlinhos Perdigão dá ênfase ao teatro e seus contrapontos, levantando reflexões oportunas sobre a linguagem teatral e suas potências, ancorando sua abordagem na heterogeneidade dos elementos que a constituem e apontando alternativas para uma ressignificação do próprio ato de fazer teatro.

São emblemáticos sobre a relação entre as diferentes linguagens artísticas, com ênfase na poesia, no teatro e no cinema, os textos assinados por Duarte Dias. Com um domínio notável da carpintaria textual em termos da crítica formal, sem jamais incorrer em estímulos acadêmicos desnecessários, Duarte conduz o leitor a descobertas por demais pertinentes acerca das linhas de força que dão ao teatro de Shakespeare, por exemplo, a atualidade que possui. Vai além, estabelece interlocuções entre diferentes tipos de texto e saberes estéticos, apoiando-se no que existe de mais atual em termos teóricos para explorar transversalidades ou interterritorialidades, na perspectiva do que identifica como conexões possíveis entre literatura, escultura e cinema, e não só, como a nos lembrar que texto é toda e qualquer linguagem organizada de modo a transmitir sentidos, uma peça de teatro, um filme, um poema, uma tela etc.

Não menos interessante, noutra dimensão, o que faz Sérgio Costa quando pensa sobre o significado da arte em sua vida, o seu amor pela música --- "a arte mais perfeita, absoluta e universal". Numa visada que lembra um certo Michel Foucault de As palavras e as coisas, vale-se do texto literário curto para revelar-se um voyeur cearense, um tipo curioso de gente "que vive em uma esquina particular do mundo" sem jamais, no entanto, reduzir sua vitalidade enquanto criador aos limites de um provincianismo arcaico e inconsequente. Antes pelo contrário, a meio caminho entre o publicitário e o músico, alarga sua percepção de mundo no encontro de diferentes códigos e linguagens.

Na mesma linha, mas optando pela crônica como gênero narrativo pelo qual se mostra como criador, Renato Ângelo revisita a mitologia greco-romana, joga com potencialidades estéticas para enxergar o outro, transita por múltiplos cenários, a exemplo do que faz ao rememorar Ouro Preto, Minas Gerais, onde "depara e interage" com personagens atemporais e inclassificáveis, como Tomás Antônio Gonzaga, Deborah Colker, Picasso e Aleijadinho. 

Jair Cozta, com a mesma leveza, por sinal, revela-se doce memorialista acerca de enriquecedoras experiências como produtor e cineasta nos rincões do Cariri cearense  ---  Crato, para ser mais preciso  ---, brindando-nos com situações e "causos" bastante curiosos, bem na linha do que faz sobre o menino prodígio Abel, seu talento precoce, sua capacidade inata para atuar como protagonista de um filme ambientado na cidade e a repentina transformação do menino pobre num "príncipe nascido sob o signo de leão e sucessor da coroa de algum reino escandinavo".

Num momento delicado da vida nacional, em que a cultura e a arte têm sofrido golpes jamais imaginados à luz de uma sociedade democrática, pensante e politizada, que imaginávamos ser (e não somos!), mais que nunca é preciso fomentar a produção de trabalhos como A arte em estado crônico a fim de descolonizar o pensamento que se quer implantar no país em face das diferentes mídias  --- literatura, teatro, pintura, arquitetura, escultura, audiovisual, instalação multimídia, graffiti etc. --- condição sine qua non para reconquistar o espaço perdido em tão pouco tempo, em que pese a resiliência que, a um custo não raro desumano, pontificou a produção nacional nos últimos meses, Bacurau (Kleber Mendonça Filho), A vida invisível (Karin Ainöuz) e A democracia em vertigem, o belo finalista do Oscar 2020, de Petra Costa, para referir trabalhos de repercussão internacional.  

Esta coletânea constitui, portanto, uma contribuição importante entre nós sobre o sentido da arte e da memória num país marcado pelo reacionarismo e pelo horror diante do que se nos apresenta como um verdadeiro ovo da serpente.


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