É claro que, em matéria de arte sobretudo, desaconselha-se o uso de rótulos do tipo "maior poeta", "maior pintor", "maior romancista", posto que há, nisso, quase sempre, uma boa dose de subjetivação. Feita esta observação, contudo, contradigo-me intencionalmente para considerar Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, não necessariamente nesta ordem, os três maiores nomes da poesia brasileira de todos os tempos. Mas é sobre este último, por força do centenário de nascimento, comemorado na quinta-feira 9, que gostaria de tecer aqui breves considerações.
Filho de uma família tradicional de Pernambuco, João Cabral de Melo Neto era irmão do historiador Evaldo Cabral de Melo e primo do poeta Manuel Bandeira e do sociólogo Gilberto Freyre, o que evidencia a vocação intelectual e artística do clã. A exemplo desses monstros da inteligência nordestina, cujas obras pontuam com merecido destaque, no Brasil, o que existe de mais significativo em suas áreas, João Cabral de Melo Neto notabilizou-se como um dos expoentes da poesia de língua portuguesa do século 20, ombreando com nomes de peso como Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade.
Mais que nesses, no entanto, um traço é evidente na poesia de João Cabral de Melo Neto: a ausência de um lirismo que sobressaia como pedra de toque do poema, o que não significa dizer que o poeta se coloque na contramão de todo e qualquer lirismo. Antes pelo contrário, se é notável a forma como trabalha o verso, lembrando um escultor cuja matéria-prima fosse a palavra, não menos notável é a força do sentimento que existe por trás de cada imagem, quase sempre se revelando de modo surpreendente e luminoso, bem na linha do que se pode descobrir no seu antológico O Cão Sem Plumas: "A cidade é passada pelo rio/como uma rua/é passada por um cachorro;/uma fruta por uma espada". O que se vê, aqui, é a claridade do estilista em diálogo estreito com o homem sensível, mas de uma sensibilidade que não se permite piegas ou minimamente derramada. É que João Cabral de Melo Neto, como um Paul Valéry brasileiro, excedeu como artesão da palavra, tendo como poucos a fina compreensão de que poesia é, antes de tudo, forma, linguagem, escolha rigorosa do vocábulo em estado bruto, construção de discurso, sem incorrer no formalismo frio e inconsequente de certos estruturalismos em voga, no país e no mundo, quando produziu o que há de mais expressivo em sua obra.
Essa mesma "tensão" entre conteúdo e forma, sentimento e isenção (nunca impassibilidade!), diga-se em tempo, de que soube obter resultados memoráveis como o estilista extraordinário que foi, pode-se perceber em outras dimensões da poética cabralina: deve-se destacar, nesse sentido, a forma como soube lidar com a questão social sem jamais deslizar para a atitude meramente panfletária. Marxista, atento aos problemas do país, inconformado com a desigualdade social advinda de um modelo econômico perverso, João Cabral de Melo Neto fez da palavra uma arma de luta em favor dos mais pobres e desassistidos, os "Severinos" que povoam seu teatro, por exemplo. Aqui, ressalte-se, está uma outra aparente contradição: confessando-se inimigo da música, que identificava como barulho, produziu poemas extremamente musicais, como atesta o fato de Morte e Vida Severina ter sido irretocavelmente musicada por Chico Buarque de Hollanda. É que melodia e ritmo, sabe-se, na perspectiva da teoria literária, são coisas distintas. Aquela, prende-se à rima, ao uso seletivo de sonoridades, paronomásias, assonâncias e aliterações; este, ao fraseado, acentos e combinações de tônicas e átonas na construção do verso.
Poeta da forma, antes de tudo, João Cabral de Melo Neto esteve sempre atento a essas questões, por isso a sua poesia é muito maior que qualquer subjetivação, figurando como um nome incontornável da literatura de língua portuguesa do século 20.
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