sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Uma furtiva lágrima

Durante a semana, desde que teci comentários sobre o mais recente romance de Nélida Piñon, foram recorrentes as mensagens que recebi sobre a autora, e, em especial, o seu livro de memórias Uma furtiva lágrima. O fato de que esses comentários estivessem relacionados a este livro, e não a Um Dia chegarei a Sagres, objeto de minha resenha, gerou em mim uma curiosidade: por que tanta alusão a Uma furtiva lágrima, sobre o qual apenas afirmei possuir qualidades estéticas notáveis?

Numa dessas inquietações intelectuais de gosto meramente especulativo, ocorreu-me concluir que o fato se prendia a se tratar de crônicas, em que pese a nítida inclinação para o memorialismo, gênero que tem ganhado nos últimos 30 ou 40 anos um imenso prestígio. Não sem desprezar, por óbvio, a hipótese de que tal motivação ainda se devesse à beleza do título, Uma furtiva lágrima, cuja força expressiva desliza do poético para o confessional, num momento em que são tantas as razões para o pranto discreto, que se faz a furto, como se se procurando passar despercebido.  

Bibliofilia à parte, pensei na hipótese de falar sobre o livro em coluna futura, o que faço hoje motivado, mais ainda, pelas circunstâncias de Nélida Piñon ter arrebatado com Uma furtiva lágrima, na quinta-feira 26, mais um prêmio Jabuti.

O livro é, como já o tinha afirmado, de uma beleza comovente, desses que prendem o leitor por razões que exorbitam suas qualidades formais (embora literatura seja, antes de tudo, isto!) e ganhe musculatura pela ternura que emana de suas páginas, constituindo um exemplo raro nos últimos anos do que se pode identificar como função evasiva da literatura em seu sentido positivo. Explico-me: o livro não representa sob qualquer aspecto um caminho para a fuga da realidade, pelo viés com que se leem comumente certos autores que levam ao esquecimento circunstancial da angústia e das dores tão comuns nos dias de hoje. Não, longe disso. Não é livro de entretenimento.

Dedicado in memoriam ao inesquecível amigo Gravetinho Piñon, segundo palavras com que a própria Nélida reporta-se ao cão a quem dedicou o seu amor mais verdadeiro e mais "humano", Uma furtiva lágrima leva o leitor a fugir do seu lado torto, pragmático e egotista em favor de uma experiência de embelezamento interior que só o milagre da arte e da literatura é capaz de operar com tanta intensidade e de maneira tão definitiva, ainda que na eternidade de um instante  --- que me perdoem o que vai de paradoxal nisso.

Exemplo prático do que afirmo está nas primeiras páginas do livro, no texto intitulado Sentença, quando a escritora se volta para a experiência incomunicável de ter sido desenganada por erro médico a poucos meses de vida. Aí, depara-se o leitor com a dignidade quase sobre-humana da narradora para dizer da morte que se avizinha e da capacidade para domá-la a tempo de enxergar nos detalhes mais bizarros o significado de toda uma existência: "Pensei em fazer um diário breve, um resumo dos meus últimos dias, segundo sentença do oncologista que, com parcimônia e convicção, antes mesmo dos resultados dos últimos exames, foi conclusivo. Eu teria entre seis meses e um ano. Retornei a casa disposta a me preparar".

Em meio à angústia, e ao silêncio só rompido ante a presença de Gravetinho (e Suzy, uma cadelinha igualmente amada), Nélida reúne forças para soerguer-se, impávida, contra a brutalidade do mundo: "... Não ignoro os efeitos do mal radical e tampouco desejo que se faça desta exposição visceral instrumento de arte. E isto porque sou vulnerável aos estertores oriundos da inquisição, do tráfico negreiro, do holocausto, dos genocídios sistemáticos das guerras religiosas, da limpeza étnica, do estupro ideológico, dos porões da ditadura".

Um livro raro, que não se deve desconhecer.

 

 

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

PT lidera em returnos

Foi morta pelo poder/que queria silenciar/a sua voz de denúncia/e a extrema rebeldia/com palavras de luar (Maria Teresa Horta, sobre Marielli)

Às vésperas do Dia da Consciência Negra, comemorado hoje como forma de desconstruir o mito da benevolência de uma princesa branca contra o racismo, o Brasil dá mais uma incontrastável prova de viver um tempo de horrores no que diz respeito à questão racial.

Primeira negra eleita na cidade de Joinville, a professora Ana Lúcia Martins, do PT, vem sendo alvo de ameaças assumidamente fascistas, coisa de resto já esperada num país que tem como presidente Jair Bolsonaro.

Mal saído o resultado das urnas, na segunda-feira 16, acumulavam-se mensagens no Twitter que indicam correr Ana Lúcia os mesmos riscos que culminaram com o assassinato da vereadora Marielli Franco, no Rio de Janeiro, há pouco mais de dois anos.

As mensagens, segundo depoimento da advogada Andreia Indalencio Rochi, à Folha, "falam que precisam matá-la para um suplente branco assumir, que fascistas mandam e que ela precisa se cuidar". Com Marielli, sabe-se, em inícios do seu mandato como vereadora do Rio de Janeiro, ocorreu exatamente isso. Até que se cumprisse o que diziam essas ameaças, num crime hediondo que, mesmo não esclarecido em sua totalidade, tem evidências apontadas para um endereço bastante conhecido do Rio de Janeiro.

A poucos dias do segundo turno das eleições para prefeito em 57 cidades com mais de 200 mil habitantes, nas quais 28 candidatos pertencem a partidos de esquerda ou identificados a ela, pode-se perceber que está em jogo muito mais que o destino administrativo de cidades. Das urnas, a 29 deste mês, sairá uma forma de pensar o país, o Estado de Direito e a democracia.

A professora negra Ana Lúcia, eleita vereadora em Joinville, é do PT, legenda que dobrou a sua participação no segundo turno em relação a última eleição para prefeito  ---  e participa do processo, este ano, com o maior número de candidatos.

Não é pouco, diga-se por fim, para um partido que as vozes do fascismo no Brasil afirmam ter degringolado.

 

 

 

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Novos Ventos

É muito cedo, por certo, para falar em desconstrução do ideário neofascista no mundo. Há indícios, no entanto, de que a onda ultradireitista vem sofrendo abalos sucessivos, o que constitui alento para os que amam a democracia e se angustiam com as ameaças que esta vem sofrendo na segunda metade dos anos 2000.

Começou com a vitória dos chilenos em favor de uma nova carta constitucional, o que já seria significativo por si só. Mas os chilenos foram além: não era bastante espezinhar o texto de conteúdo pinochetista, jogando-o à lata de lixo a que a própria História já se encarregara de fazer com o seu idealizador. A nova constituição nascerá de uma constituinte formada meio a meio por homens e mulheres, algo impensável à luz dos valores profundamente conservadores (ou reacionários) por que se vinham orientando as ações de mesma natureza mundo afora.

Na sequência, e talvez a mais significativa das mudanças ocorridas nos dois últimos anos, a vitória do socialista Luis Arce (MAS), na Bolívia, numa reação contundente contra o golpe que derrubara Evo Morales.

Em tempo, deve-se frisar: o ex-presidente foi recebido como herói em sua volta ao país.

Sem falar, porque já distante, o caso da Argentina, onde Alberto Fernández venceu no primeiro turno eleições consideradas decisivas para a revitalização das forças de esquerda no continente.

Coroando essa sequência de avanços, em meio à onda ultradireitista que alcançara sua maior altura em 2016, com a eleição de Donald Trump para presidente dos EUA, a vitória do democrata Joe Biden indica uma inequívoca tendência de refluxo do que vinha colocando em risco as liberdades em diferentes países neste século.

No Brasil, ainda que seja preocupante o quadro de incertezas, pesquisas apontam que nas eleições de domingo 15, nas principais capitais, os candidatos vitoriosos devem estar à esquerda e ao centro do espectro político. A indicar, também entre nós, o que pode ser o fim da retomada facistoide que atingira o seu ponto culminante em 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro, seus candidatos tendem a sofrer uma derrota acachapante em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e, em proporções mais leves, em Fortaleza.

Tudo a indicar, como se vê, que os ventos estão soprando em outra direção, e os reacionários brasileiros, saídos dos esconderijos como ratos famintos há pouco menos de dois anos, devem "Jair se acostumando".      

P.S. Esta coluna rende homenagem ao cineasta argentino Fernando Solanas, morto em Paris, sábado 7, depois de contrair coronavírus, aos 84 anos. Solanas foi um artista engajado contra a ditadura no seu país e no mundo. Deixa-nos, sobre o tema, clássicos como "Memorias del Saqueo" (2004), "La Dignidad de los Nadies" (2005), "Argentina Latente" (2007) e o belíssimo "Tangos – O Exílio de Gardel" (1985).

 

 

 

 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A nau perdida

"É a nau perdida/Trem que chega/A nova dança/Mata verde, esperança/Em suas tranças vou voar", diz a bela poesia de Geraldo Azevedo.

Num país em que se  faz júri para julgar a vítima em vez do criminoso, cria-se o "estupro culposo" para isentar a figura do estuprador e mulheres (infelizmente muitas!) saem em defesa do machismo, falta muito pouco para se eleger Tim Maia como nosso maior filósofo. É só recordar a afirmação a ele atribuída: --- "O Brasil é o único país onde prostituta tem orgasmo, cafetão tem ciúme, traficante é viciado e pobre é de direita". Incorreção política à parte, é algo hilário o que se vê hoje sobre o país.

A propósito, por curiosidade, vasculho mensagens na internet que "analisam" as eleições americanas e deparo com coisas impagáveis de um e outro lado, isto é, de "torcedores" de Donald Trump ou Joe Biden, reflexo em grande parte da polarização que tomou conta do país nos últimos anos. E a mesma a "sensatez", claro: "Ganhamos", é como começa sua mensagem um entusiasta brasileiro do partido republicano, quase como a dizer que obteve informações de dentro da Casa Branca. Nada que se compare, no entanto, ao que afirma um deputado federal cearense sobre o atual presidente americano candidato à reeleição: "Trump é um defensor das liberdades e dos pobres e negros, o melhor presidente americano desde Ronald Reagan".

Um outro, desfiando reflexões dignas de um especialista, chama a atenção para o fato de que uma vitória de Joe Biden "é um risco para o Brasil, porque fortalece o PT". E por aí vai a enxurrada de loucuras sobre a eleição para presidente dos Estados Unidos e em que dimensão isso nos diz respeito. Tom Jobim estava com a razão: "O Brasil não é para amadores".

E assim, sem rumo certo, vamos nós, nesta nau dos insensatos, tristes diabos à procura da sobrevivência política em meio a um mar revolto.

Haveremos de deparar, por milagre ou sem ele, com o coqueiro da ilha sob cuja sombra aguardaremos a chegada do salvador.