quinta-feira, 29 de julho de 2021

A verdade de um Romance

Platão fez à arte restrições conhecidas. Para ele, sendo mimese, imitação, a arte se contrapõe à verdade, trazendo ao plano da experiência estética reproduções fenomênicas, isto é, imitação da imitação do eterno paradigma das Ideias. A fim de tornar assimilável a complexa questão, realizou, dando voz a Sócrates, como personagem de um dos seus mais importantes diálogos, República, o Mito da Caverna, que considero a mais bela alegoria de que se tem notícia. Para dizer o que pensava ser a verdade, a Ideia, mentiu.

Mas foi Aristóteles quem defendeu o que é essencial, ainda hoje, para que não se cometam equívocos e se façam interpretações distorcidas daquilo que é a arte: a mais bela mentira, conforme as palavras do compositor francês Claude Debussy. Mesmo quando capaz de revelar a verdade, como defendeu Pablo Picasso.

Para Aristóteles, na contramão do que professara Platão, seu preceptor, é o fato de ser mimese que dá à arte a sua perfeita dimensão, muito além do que se entende por realidade, pois que a arte, muito mais que reproduzir servilmente a aparência das "coisas", as recria, emprestando-lhes uma nova dimensão.

Sem meias-palavras, está na Arte Poética, ele diz: A poesia não só pode, como deve, separar-se da realidade e dar a público fatos e personagens não como são, mas como poderiam e deveriam ser. Foi além, sustentou que o artista pode introduzir no seu fazer o irracional e o impossível; e pode até mesmo mentir e lançar mão de paralogismos, raciocínios falaciosos, desde que os torne (o irracional e o impossível), "verossímeis".

Desse modo, querer do artista, um escritor, por exemplo, que limite a sua criação a uma dada realidade, é um equívoco grosseiro, quase perverso, pois significa impedir que exercite a sua liberdade de criação, imaginando como as coisas poderiam ser. No cinema, no teatro, na literatura e em todas as demais linguagens estéticas, é a capacidade de invenção do artista que torna o objeto por ele criado  ---  um poema, um romance, um filme etc. --- algo maior que a pura realidade. A arte existe para que o homem não morra de tanta verdade, assim nos lembrava Nietzsche, em sua genialidade.

A dicotomia verdade/mentira, infelizmente, continua a despertar a curiosidade do público consumidor da obra de arte. No caso da literatura, a narrativa de ficção, sobretudo, são recorrentes as tolas questões: "É verdade ou invenção?", "Isso aconteceu realmente?", "Ficção ou realidade?".

Se um romance, para ilustrar o que me interessa aqui, é narrado em primeira pessoa, então, os questionamentos são recorrentes, como se ao artista (independentemente do seu tamanho e do seu prestígio), não fosse dado por direito do ofício, mentir, apagar os traços de sua individualidade e ir ao outro, colocando-se em seu lugar, no milagre intraduzível de sua invenção: Não se pode atribuir ao autor aquilo que é próprio do narrador. Um romance é uma invenção e tudo nele deve ser visto à luz do artifício e da fantasia... nascidos da necessidade humana de criar irrealidades como se fossem a realidade elevada a sua máxima potência.

Em livro clássico sobre o assunto, Mikhail Bakhtin trabalha com duas categorias que ajudam a entender essa dicotomia em que estão colocados autor e narrador: O autor primário é o autor (a pessoa) que está fora da obra, aquele que a criou como objeto artístico. O autor secundário, num romance em primeira pessoa, é imanente à estrutura da obra e responsável por sua construção. É notável, como exemplo, o Brás Cubas, de Machado de Assis. Ou, não menos bem imaginado, o Paulo Honório, do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos.

Recentemente, publiquei pela Editora Sarau das Letras Quase Romance, em que a personagem Paulo escreve dentro do livro um outro livro. Reflexividade, livro dentro do livro, narração dentro da narração. Tudo mentira, embora calcado numa realidade que, não sendo minha, é do leitor, a quem pertence um livro sempre que dado a público pelo seu autor. O autor primário, diga-se em tempo.

Ambientado no Rio de Janeiro e tendo como fio condutor os acontecimentos sombrios dos anos de chumbo, traz de volta ao leitor um tempo que não pode ser esquecido, de tortura, do AI-5, dos militares mandando e desmandando em meio a dor e sangue. E a traição, não de Ana, sobre quem pesam as acusações do marido ciumento, mas dele mesmo em relação aos ideais de um país mais justo, mais humano e livre.

 

 

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Stone, Lula e Mantegna

"Pegaram o Lula com a Lava Jato, foi selvagem, uma história suja".

A afirmação acima não é minha e nem de nenhum entusiasta do PT. Foi feita por um americano de 74 anos, em Cannes, onde acontece há duas semanas o mais prestigiado festival de cinema do mundo.

Trata-se do cineasta Oliver Stone, nascido em 1946 na cidade de Nova York, formado pela Universidade de Yale, diretor e roteirista de mais de 25 longas-metragens (e de premiados documentários) e ganhador de dois Oscar de Melhor Diretor, por Platoon (1986) e Nascido em 4 de julho (1989), além de um Oscar de Melhor Roteiro Adaptado por O Expresso da meia noite (1978).

A declaração de Oliver Stone, pois, insere-se num contexto em que o presidente Lula vem obtendo seguidas vitórias junto ao STF e provas mais que convincentes indicam a parcialidade de Sergio Moro em todos os processos que envolviam o ex-presidente. Não é muito lembrar que, no auge da operação de Curitiba, eram recorrentes as viagens de Moro aos Estados Unidos, como a prestar contas dos seus criminosos serviços a fim de tirar Lula do processo sucessório de 2018 e limpar o caminho para a eleição de um candidato de extrema-direita em tudo alinhado ao projeto norte-americano de destruição das lideranças latino-americanas de esquerda.

"A mentalidade no Ocidente agora é completamente anti-Rússia, anti-China, anti-Irã, anti-Cuba, anti-Venezuela. Não se pode falar nada de bom sobre eles. No Brasil, Lula foi para a prisão, eles se livraram do Lula. Eles policiam o mundo", disse o diretor.

Oliver Stone, por sinal, dedica-se à realização de um documentário sobre Lula. Para ele, existem fatos que apontam com clareza para o que houve no Brasil em 2018, esquema perverso de perseguição ao ex-presidente em que estiveram envolvidos mídia, grandes grupos empresarias e instâncias de poder no país e nos Estados Unidos.

Quanto ao que vem ocorrendo no Brasil nesses últimos dias, desde as complicações da saúde do presidente Jair Bolsonaro, à parte o desejo deste colunista no sentido de que se recupere e venha a reunir condições físicas de pagar por seus crimes, a concluir pelo que indicam as apurações da CPI da Covid-19, é de provocar náusea a exploração política que os bolsominions vêm fazendo do caso.

Como observa em sua coluna de hoje na Folha o jornalista Reinaldo Azevedo, "a foto do herói moribundo, mas com ar beatífico, como triunfo do martírio, é uma cola plástica do 'Cristo Morto' de Mantegna".

Com a agudeza intelectual e o senso de humor que atravessam invariavelmente os seus textos, Azevedo faz referência a uma têmpera sobre tela (68x81 cm) do pintor italiano Andrea Mantegna tendo como assunto o Cristo morto.

Em perspectiva que resulta profundamente sedutora, como a projetar na imagem a grandiosidade do homem ungido à condição de mártir, a obra intitula-se Lamentação sobre o Cristo Morto, pintada entre 1475 e 1478, e constitui uma das peças mais aclamadas da Renascença Italiana.

Contemplei-a, há muitos anos, na Pinacoteca de Brera, em Milão, mas ainda guardo o impacto que me causaram os procedimentos formais da obra: o enquadramento e a angulação sobretudo, algo como um perspectivismo ilusório que redimensiona o corpo inerte do Cristo, que a um só tempo assusta e fascina.

A confirmar a arguta percepção de Reinaldo Azevedo sobre as motivações de divulgar-se a foto do presidente em condições tão deprimentes, no quadro de Mantegna aparecem outras figuras: a Virgem Maria e São João, num tipo de lamentação silenciosa e terna, além de uma terceira que supostamente identifica-se como Maria Madalena.

Na foto do presidente enfermo, destaca-se o crucifixo de Dom Fernando José Monteiro Guimarães ladeado por outras pessoas "a abençoar o Mito", como bem observa o jornalista.

A criação genial de Mantegna ressalta sua aguçada percepção das dicotomias de um espetáculo em que a morte já anuncia a ressuscitação, a vitória do espírito sobre o corpo, simbolizando a dubiedade humana e divina da figura retratada.

O fotógrafo da presidência, como o pintor mantuano, teve a perfeita compreensão do objetivo perseguido, prestando-se, com sua arte, a enaltecer o sofrimento e a resignação de um Mito.

A que ponto chegamos.

 

 

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Solidão e Companhia

Quase de uma sentada, li no final de semana Solidão e Companhia, A vida de Gabriel García Márquez, curiosa biografia do autor de Cem Anos de Solidão assinada pela jornalista Silvana Paternostro.

Não se trata, quero evidenciar, de um grande livro, desses que devam figurar nas melhores estantes. Longe disso. É livro para se ler despretensiosamente, como quando jogamos conversa fora no barzinho da esquina, entre amigos.

Aliás, o livro tem esse formato: é o resultado de dezenas e dezenas de gravações levadas a efeito pelo jornalista colombiana com amigos e familiares de Gabo, pessoas anônimas que conviveram estreitamente com escritor muito antes dele se tornar o lendário Nobel de Literatura.

É nisso, exatamente, que reside a força da biografia, diferente do muito que já se conhece sobre Gabriel García Márquez a partir de depoimentos e declarações de gente famosa, chefes de Estado, artistas de cinema e os ricos com que, sabe-se, gostava de conviver, e que enchem páginas de biografias inegavelmente importantes do colombiano, a exemplo das de Dasso Saldívar e Gerald Martin.  Ou, para falar de um livro essencial para quem deseja conhecer a infância e juventude do escritor, Viver Para Contar, apaixonante relato do próprio García Márquez traduzido para o português por Eric Nepomuceno.

Os depoimentos arrolados em Solidão e Companhia, claro, dada a natureza de sua narrativa, não devem ser tomados como revelações irretocáveis acerca da vida de Gabo. Não, aqui e acolá se pode perceber que essas recordações estão contaminadas pela saudade, pela admiração incontida e, não raro, pelo ressentimento, quando não pela poeira do tempo, uma vez que quase todos os entrevistados são pessoas idosas, o que implica muitas vezes descontinuidades e "resmungos" que exigem do leitor tentar ele mesmo tirar conclusões acerca dos fatos rememorados.

Mas são as alusões ao processo de construção do que se pode com justiça considerar-se um dos maiores clássicos da literatura de todos os tempos (refiro-me, óbvio, a Cem Anos de Solidão) que justifica o meu entusiasmo com essa curiosa biografia, em que pesem as fragilidades há pouco destacadas, que mais acrescentam que suprimem ao livro, insisto.

Além disso, o que dá ao livro um sabor próprio das leituras amenas, esclarece ocorrências não muito lisonjeiras em que estiveram envolvidos dois monstros sagrados da prosa de ficção latino-americana, ambos ganhadores do Prêmio Nobel: ele, García Márquez, e o peruano Mário Vargas Llosa.

Refiro-me, desculpando-me por dar destaque ao que deveria ser visto como irrelevante, ao famoso soco desferido por Llosa, até então um de seus maiores amigos, no rosto do autor de O Amor nos Tempos do Cólera.

A história é no mínimo curiosa, pois que revela traços de caráter dos gênios envolvidos: Llosa viajava de navio e, fato recorrente na vida do sedutor incorrigível que dizem ser, envolve-se com uma desconhecida por quem se apaixona e abandona a esposa. Em represália, esta lhe diz um dia: "Não pense que não sou atraente. Amigos seus como Gabo estavam atrás de mim".

Um dia os escritores se encontram em um teatro na cidade do México e Gabo foi em direção a Llosa de braços abertos a fim de cumprimentá-lo. Eis que é recebido com um soco que o deixaria marcado por semanas. "Isso é pelo que você tentou com minha esposa", teria lhe dito o peruano.

Jamais voltariam a se cruzar.

Como é quase sempre enorme o abismo que separa o artista do homem, é voz unânime entre os entrevistados, por exemplo, a revelação de que o sucesso de Gabriel García Márquez "atacou-o como um animal, um touro". É o que afirma seu afilhado Santiago, no que, por sinal, é seguido pelos amigos, para os quais o colombiano foi se tornando cada vez mais arrogante até morrer, em 17 de abril de 2014.

Mas o livro é muito mais que um relato maledicente. Recomendo-o.

  

 

 

 

sexta-feira, 2 de julho de 2021

Ainda sobre F. M. Dostoiévski

Quando, semana passada, escrevi sobre os duzentos anos de Fiódor M. Dostoiévski, confesso não esperar que a coluna tivesse a repercussão que teve. O fato de receber tantas mensagens, por e-mail e WhatsApp, constituiu motivo de entusiasmo pessoal, confesso, menos pelo fato de que os comentários em sua totalidade constituam um tipo de aplauso para este colunista, coisa de que, é natural, se abastece o ego de quem escreve, aqui ou em Londres.

Impressionou-me, sobretudo, o interesse que o escritor russo tem despertado cada vez mais junto aos leitores brasileiros, de certo conquistados pelas traduções que se têm feito direto do original nos últimos anos. Ponto para a editora 34, e, claro, para tradutores da estatura de Boris Schnaiderman, Tatiana Belinky e, mais recentemente, Paulo Bezerra, Fátima Bianchi e Irineu Franco Perpétuo. Uma beleza.

Duas dessas mensagens faço questão de destacar aqui: a primeira questiona em que livro de Dostoiévski aparece a expressão "A beleza salvará o mundo", a que, diz o leitor, tantas vezes tenho feito alusão ao longo dos anos. A segunda, mais assertiva, questiona que se possa, a exemplo do que fiz, considerar-se o autor de Crime e Castigo um crítico do capitalismo. Vamos por parte.

Começo por dizer que a beleza é assunto recorrente na obra do escritor russo, mas é nos romances O Idiota e Os Irmãos Karamazov, particularmente, que a expressão atravessa a narrativa com insistência.

No primeiro, a expressão usada pelo príncipe Míchkin é repetida recorrentes vezes. No segundo, embora a expressão não seja rigorosamente essa, o tema da beleza vai ser aprofundado, ecoando, numa reconhecida projeção do autor, suas ideias sobre o mistério da iniquidade numa perspectiva cristã.

Essa preocupação filosófica com a beleza, no entanto, é esteio em que se sustenta quase toda a obra do autor. Sob este aspecto, uma fala da personagem Arkádi, em O Adolescente, um dos cinco grandes romances da maturidade, é emblemático: "... O senhor empregou mais uma vez a palavra 'beleza' e justamente ontem e todos estes dias tem-me essa palavra atormentado...", diz ele, dirigindo-se a Makar Ivanovitch.

Quanto a vislumbrar crítica de Dostoiévski ao modelo econômico capitalista, questão de fato mais complexa, não é sem razão que se pode considerar possível tal leitura mesmo no romance Crime e Castigo, a que me referi por este viés na coluna da semana passada. Considerando-se as limitações de espaço (o tema exigiria páginas de argumentação!), valho-me de uma fala de Raskólnikov para suscitar no leitor um bom motivo de reflexão sobre o que afirmei: "Crime? Que crime?... O fato de eu ter matado um piolho nojento, nocivo, uma velhota usurária, que não faz falta a ninguém? Tem cem anos de perdão aquele que mata quem sugava a seiva dos pobres; isso lá é crime? Não penso nele, e nem sequer penso em apagá-lo".

Mas, se ainda assim persistirem dúvidas, é caso mais explícito o romance O Jogador, de 1866, publicado portanto no mesmo ano que Crime e Castigo, em que, na linha do que Joseph Frank, em biografia incontornável do escritor russo,  diz ser um exemplo clássico de sua pegada de cunho antropológico, sociológico e econômico, salta aos olhos uma certeira e irrecusável crítica ao poder do dinheiro, do ganho fácil, das perdas devastadoras e outras mazelas do capitalismo.

Há cento e quarenta anos de sua morte, ocorrida em 1881, ao lado de construir uma obra monumental sobre a condição humana, suas contradições, seus medos, seu egoísmo, seus pecados e sua irrefreável e sempre frustrada busca da salvação, Dostoiévski parece reportar-se aos tempos atuais. Nesse sentido, a História mais ainda lhe acrescentou.

Ao desfechar esta coluna, ocorrem-me as palavras de uma personagem do romance Humilhados e Ofendidos, cujo título não deveria passar despercebido: "O mais obscuro dos homens é sempre um homem e leva o nome de irmão".

Proferidas por um humilde servidor público, o herói do romance, essas palavras são bastante para revelar o profundo sentimento de companheirismo de Dostoiévski para com aqueles a quem a sociedade explora, como a levá-lo, perversamente, aos limites da condição humana.

É ler um dos maiores escritores de todos os tempos, por ocasião dos duzentos anos desde o seu nascimento, e tirar o leitor suas conclusões.