quinta-feira, 8 de julho de 2021

Solidão e Companhia

Quase de uma sentada, li no final de semana Solidão e Companhia, A vida de Gabriel García Márquez, curiosa biografia do autor de Cem Anos de Solidão assinada pela jornalista Silvana Paternostro.

Não se trata, quero evidenciar, de um grande livro, desses que devam figurar nas melhores estantes. Longe disso. É livro para se ler despretensiosamente, como quando jogamos conversa fora no barzinho da esquina, entre amigos.

Aliás, o livro tem esse formato: é o resultado de dezenas e dezenas de gravações levadas a efeito pelo jornalista colombiana com amigos e familiares de Gabo, pessoas anônimas que conviveram estreitamente com escritor muito antes dele se tornar o lendário Nobel de Literatura.

É nisso, exatamente, que reside a força da biografia, diferente do muito que já se conhece sobre Gabriel García Márquez a partir de depoimentos e declarações de gente famosa, chefes de Estado, artistas de cinema e os ricos com que, sabe-se, gostava de conviver, e que enchem páginas de biografias inegavelmente importantes do colombiano, a exemplo das de Dasso Saldívar e Gerald Martin.  Ou, para falar de um livro essencial para quem deseja conhecer a infância e juventude do escritor, Viver Para Contar, apaixonante relato do próprio García Márquez traduzido para o português por Eric Nepomuceno.

Os depoimentos arrolados em Solidão e Companhia, claro, dada a natureza de sua narrativa, não devem ser tomados como revelações irretocáveis acerca da vida de Gabo. Não, aqui e acolá se pode perceber que essas recordações estão contaminadas pela saudade, pela admiração incontida e, não raro, pelo ressentimento, quando não pela poeira do tempo, uma vez que quase todos os entrevistados são pessoas idosas, o que implica muitas vezes descontinuidades e "resmungos" que exigem do leitor tentar ele mesmo tirar conclusões acerca dos fatos rememorados.

Mas são as alusões ao processo de construção do que se pode com justiça considerar-se um dos maiores clássicos da literatura de todos os tempos (refiro-me, óbvio, a Cem Anos de Solidão) que justifica o meu entusiasmo com essa curiosa biografia, em que pesem as fragilidades há pouco destacadas, que mais acrescentam que suprimem ao livro, insisto.

Além disso, o que dá ao livro um sabor próprio das leituras amenas, esclarece ocorrências não muito lisonjeiras em que estiveram envolvidos dois monstros sagrados da prosa de ficção latino-americana, ambos ganhadores do Prêmio Nobel: ele, García Márquez, e o peruano Mário Vargas Llosa.

Refiro-me, desculpando-me por dar destaque ao que deveria ser visto como irrelevante, ao famoso soco desferido por Llosa, até então um de seus maiores amigos, no rosto do autor de O Amor nos Tempos do Cólera.

A história é no mínimo curiosa, pois que revela traços de caráter dos gênios envolvidos: Llosa viajava de navio e, fato recorrente na vida do sedutor incorrigível que dizem ser, envolve-se com uma desconhecida por quem se apaixona e abandona a esposa. Em represália, esta lhe diz um dia: "Não pense que não sou atraente. Amigos seus como Gabo estavam atrás de mim".

Um dia os escritores se encontram em um teatro na cidade do México e Gabo foi em direção a Llosa de braços abertos a fim de cumprimentá-lo. Eis que é recebido com um soco que o deixaria marcado por semanas. "Isso é pelo que você tentou com minha esposa", teria lhe dito o peruano.

Jamais voltariam a se cruzar.

Como é quase sempre enorme o abismo que separa o artista do homem, é voz unânime entre os entrevistados, por exemplo, a revelação de que o sucesso de Gabriel García Márquez "atacou-o como um animal, um touro". É o que afirma seu afilhado Santiago, no que, por sinal, é seguido pelos amigos, para os quais o colombiano foi se tornando cada vez mais arrogante até morrer, em 17 de abril de 2014.

Mas o livro é muito mais que um relato maledicente. Recomendo-o.

  

 

 

 

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