quinta-feira, 28 de outubro de 2021

A estreia vigorosa do craque

 

Em linhas gerais, pode-se falar de um contista de extração clássica, embora se constate aqui e além a adoção de um e outro procedimento de linguagem que lembram os experimentos narrativos de um Rubem Fonseca ou de um Dalton Trevisan, para nos reportarmos a dois dos maiores ficcionistas brasileiros do gênero.

Nada, no entanto, que ignore por completo as características fundamentais do 'grande' conto, desde que esta forma narrativa assumiu o estatuto que o consagraria como estrutura literária diferenciada: do ponto de vista dramático, as oito narrativas apresentam um único conflito, uma única ação, que se desenrola, com raríssimas exceções, num mesmo e único espaço (são irrelevantes, como se pode perceber no conto de abertura da coletânea, intitulado Meu tio, os deslocamentos físicos das personagens, que pouco importam para a célula dramática do enredo); é pequeno o número de personagens, estáticas, planas, tomando por base as categorias examinadas por E. M. Forst; o tom é o mesmo em todas as histórias e o ritmo da ação quase nunca sofre qualquer variação. Enfim, os textos estão estruturados com os elementos tradicionais da short-story, bem na linha do que professam os teóricos, observadas, claro, as sutilezas de estilo que lembram de Katherine Mansfield a Tchekhóv, guardadas as proporções devidas.

É curioso, particularmente pelo que vimos afirmando aqui, que Anos de chumbo e outros contos (Companhia Das Letras, 2021), a notável estreia de Chico Buarque na narrativa curta, seja possivelmente o melhor livro de ficção do ano, mesmo considerando-se que estamos a mais de dois meses do seu final.

Em que residem, assim, as qualidades da obra? Vamos lá.

Antes de tudo, com esse livro primoroso, Chico Buarque nos convence de que é possível se trabalhar com elementos clássicos e ser moderno como escritor, no sentido que se deve entender a modernidade em sua mais rigorosa extensão semântica, distinguindo-a dos meros modismos de ocasião, dos experimentos de linguagem que nem sempre resultam positivos quando tão-somente se quer fazer o diferente. Pelo contrário, na sua vigorosa estreia como contista, o escritor Chico Buarque explora os elementos básicos do conto clássico, espaço e foco narrativo, sobretudo, com uma sensibilidade de mestre: há nos seus contos o que se pode definir como uma 'poética do espaço', não como a definiu o filósofo Gaston Bachelard (1884-1962) para revelar a importância e o impacto do habitat no ser humano, mas como registro quase cinematográfico com que acompanha o desenrolar da ação. O olhar do narrador sobre o conflito dramático da história, assim, ultrapassa os limites da enunciação propriamente dita, e Chico nos convida a perceber com ele o que existe de mais sutil em termos significativos no enquadramento escolhido. Sob este aspecto, é magistral o que faz no conto Passaporte, quando a personagem central (identificada apenas como um "grande artista") vasculha o lixo de um banheiro de aeroporto à procura do documento criminosamente afundado ali por um desafeto anônimo (o ódio de que o próprio autor é vítima por parte dos bolsonaristas): "Não teve dúvida; com o polegar e o indicador içou o cartão de embarque, que trouxe a reboque meio metro de fio dental. Praticamente deitado na pia, imergiu o braço inteiro até as profundezas do saco de lixo, onde em meio a consistências de lodo tateou um papelão acetinado. Sim, tinha alcançado a capa do passaporte, que aparentemente estava aberto e perigava se desfazer, se puxado sob o peso de tamanha imundície".

Não menos impressionante do ponto de vista estético, diga-se, sem incorrer em spoiler, é a cena final em que o "grande artista" leva a cabo a sua motivação de vingar-se do "canalha", de que resulta a habilidosa exploração de um outro elemento do conto clássico: o epílogo com que guarda o enigmático e surpreendente desfecho da história.

Mas é com Cida, quarto dos oito contos do livro, que Chico Buarque rompe com as características tradicionais do gênero e transita com habilidade por um território próprio da modernidade em termos estruturais da narrativa. Aquele em que desaparecem as linhas demarcatórias que separam o conto da crônica: o ponto de vista é de um caminhante (o próprio Chico, deduz-se) que acompanha uma moradora de rua grávida numa praça do Leblon. O narrador aproxima-se da pedinte e, com o passar dos dias, desperta nela a confiança que logo desliza para um tipo de dependência que beira a paixão. Ela pede ao caminhante que cuide da filha por nascer, o que eleva a temperatura dramática do conto e deságua no belíssimo final da história cuja urdidura, não por acaso, dá a ver a mão do poeta.

Se, em termos formais, Anos de chumbo e outros contos está construído em matrizes literárias já conhecidas, o que, juízo precipitado, poderia desmerecer o livro, antes o eleva à categoria de um clássico do conto brasileiro.

Na linha do realismo dos anos 1970, mas decididamente atual na perspectiva do seu conteúdo, com que Chico Buarque expõe as mazelas do Brasil contemporâneo, Anos de chumbo e outros contos definitivamente situa seu autor como um dos maiores ficcionistas da literatura brasileira de todos os tempos.

Um livro para se ler de uma sentada --- e guardar-se como exemplo inconteste de obra-prima.

 

 

 

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

'Flâneur' em São Petersburgo

Em seu belíssimo Paris e seus poetas visionários, recém-lançado, o poeta e compositor Márcio Catunda diz sobre suas andanças pela capital francesa o seguinte: "Deambular em Paris tem sido para mim uma forma de estudar literatura. Seguindo na cidade as indicações que há, por toda parte, dos locais onde viveram seus grandes poetas, passei em frente aos endereços de meus ídolos".

Essa experiência, diga-se em tempo, acho que, em diferentes medidas, faz parte da vida de cada amante da literatura, do cinema e mesmo das artes plásticas. A arte, com sua força e sua magia, desperta nos que a apreciam, comprometidamente, um certo fascínio, um tipo de sortilégio que, cedo ou tarde, extrapola as fronteiras do livro, do quadro pictórico, da tela do cinema, para se tornar paixão, de que resultam manias as mais diversas.

Vadiar pelas cidades, como fez Catunda à cata de vestígios do que foi a Paris de outrora, emblematicamente registrada pelos olhos de seus poetas preferidos, é uma dessas gostosas manias, para alguns inconfessáveis, porque pueris, insanas, desprovidas de razões justificáveis, num mundo, como disse Nietzsche, saturado de realidade.

A essas andanças despropositadas por avenidas, ruas, parques, logradouros das cidades, tomando por base o poeta Baudelaire, Walter Benjamin deu o nome de flânerie, segundo diz, citando Dickens, "passatempo predileto dos povos com imaginação". A ele se deve o fato de que a figura do flâneur, o ser errante, o vagueante conhecedor das ruas, tenha se tornado objeto de estudo em termos acadêmicos no século XX, verdadeiro arquétipo da modernidade.

De minha parte, vivi essa experiência em São Petersburgo, cidade-cenário dos grandes romances de Fiódor Dostoiévski.

Construída para ser uma "janela para o Ocidente", em 1703, por Pedro, o Grande, e carinhosamente chamada de Piter pelos russos, Petersburgo é detentora de uma beleza e de um estilo citadino que não encontram par entre as grandes e mais importantes cidades do mundo. Situada no entroncamento do rio Neva com o golfo da Finlândia, em meio as águas do mar Báltico, é conhecida nos manuais turísticos como a Veneza do Norte. Isso porque a cidade está cortada por imensos canais, pontes e braços do rio que compõem a imagem mais representativa de São Petersburgo  ---  e desconcertam o visitante já ao primeiro bater de olhos. Foi assim comigo.

No verão, por ser de todas as cidades do mundo a mais localizada ao norte, ocorrem em São Petersburgo as famigeradas Noites Brancas, poeticamente exploradas em livros e filmes inesquecíveis. Com este título, exatamente, Dostoiévski escreveu e publicou em 1848, na contracorrente do Realismo já vigente na literatura russa, um dos seus mais belos romances: durante uma das românticas 'noites brancas' de São Petersburgo, numa ponte sobre o rio Neva, dois jovens se encontram para viver uma das histórias de amor mais belas da literatura russa e do cinema, não por acaso adaptado que foi por Lucchino Visconti e Robert Bresson.

De Crime e castigo, é São Petersburgo cenário das mais memoráveis passagens, aquelas em que, tomado de angústia e de espanto, Raskólnikov percorre as ruas da cidade, cruzando o Neva sob o peso do sentimento de culpa que é mesmo um dos fios condutores da obra mais conhecida de Dostoiévski.

A uma dada altura, como que por encanto, paro às margens do Neva e alforrio o olhar para o bem longe: como em panorâmica, posso contemplar a ilha de Vassílevski, a fortaleza de Pedro e Paulo (que serviu de prisão para Dostoiévski), a Ponte de Trindade e o Hermitage, antigo Palácio de Inverno, imagem que trago guardada nas retinas para o sem fim dos tempos. Aqui esteve Raskólnikov, esta a paisagem que seus olhos atormentados descortinaram um dia, ocorre-me pensar.

Vendo-me absorto, como se entregue a sonhos irreveláveis, T., minha mulher à época, indaga: "O que foi? Tudo bem?", ao que respondo: "Nada, nada. Está tudo bem!", e volto para a realidade a fim de retomar o caminho...

Quanto a São Petersburgo, ainda voltarei a falar depois.

   

 

 

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Dostoiévski: juventude, transição e maturidade

 

Na sequência de textos dedicados a Fiódor Dostoiévski (1821-1881), por ocasião dos 200 anos do nascimento do escritor russo, atendo a curiosidade de um leitor quanto às diferentes fases em que se pode dividir sua obra.

Comumente rotulada como imatura, e mais adequadamente como produção da juventude, a primeira fase da obra de Dostoiévski estende-se do livro de estreia, Gente Pobre (1846), até Humilhados e ofendidos (1861), em que figuram, entre outros, O Duplo (1846) e Noites Brancas (1848). É a fase dita romântica do autor, em que sobressaem as descrições do caráter humano numa perspectiva sentimental e vocacionada a exaltar a ternura e a abnegação das personagens como atributos capazes de salvar o mundo. Aqui é facilmente reconhecível o elemento autobiográfico, com destaque para a infância e adolescência do escritor, quase sempre vistas com idealismo, em que pesem a timidez e o incontido complexo de Édipo por que orienta, numa e noutra fases, parte significativa de sua obra. Veem-se, ainda, o elogio da humildade, da capacidade de perdoar e da compaixão para com o sofrimento humano em qualquer dimensão, mesmo quando a abordagem envereda para o social, na linha do que faz, como sugere o próprio título, já no livro de estreia. Nada que venha a obscurecer, diga-se a tempo, o senso de análise, a tentativa de apontar caminhos e a forte tendência religiosa que será uma marca recorrente no conjunto da obra. A narração é em primeira pessoa, predominantemente, e não são raras as reflexões de cunho estético, a obra de arte como tentativa de superação do conflito existencial --- e a sondagem psicológica que constituirá o esteio temático das fases seguintes.

Também conhecida como pós-siberiana, posto que produzida depois dos anos de condenação por seu envolvimento como o ideário revolucionário de Pietrachévski, que pretendia depor o czar Nicolau I, a segunda fase tem início com o romance Humilhados e ofendidos (1861) e caracteriza-se pela exploração dos dramas humanos acompanhados de perto durante os anos de trabalhos forçados na Sibéria. Esta a razão por que um dos principais livros dessa fase recebe o título de Recordações da casa dos mortos (1860), como é mais conhecido, ou Escritos da casa morta, em tradução recente de Paulo Bezerra (editora34, 2020). É dessa experiência de presidiário, da convivência com os tipos humanos mais marginalizados (assassinos, ladrões, miseráveis, homens destruídos pelo jogo e pelos mais diversos distúrbios psiquiátricos) que Dostoiévski extrai a matéria conteudística com que tece os romances dessa fase. O caso de Memórias do subterrâneo (1864), sob este aspecto, é merecedor de redobrada atenção, uma vez que nesta narrativa singular deparamos com um escritor absolutamente inclassificável, cuja obra constitui, para muitos, uma prefiguração da teoria do inconsciente de Sigmund Freud e do existencialismo sartreano.

Por último, o conjunto de sete romances que constituem a chamada obra da maturidade: Crime e castigo (1866), Um jogador (1866), O idiota (1868), O eterno marido (1870), Os demônios (1870), O adolescente (1875), Os irmãos Karamázov (1880).

O sentimento de culpa, a inquietação diante do silêncio de Deus, o forte referencial cristão que perpassa a totalidade dos romances dessa fase, a que se soma uma atitude de investigação do sentido da existência, além de outros temas que aparecem com maior ou menor intensidade num e noutro livro, são a matéria-prima deste artista prodigioso, um dos maiores (senão o maior) da literatura mundial.

Com raríssimas exceções, ocorre-me pensar no romance Os demônios, pode-se dizer, ainda, que Dostoiévski, para além dos rótulos e das ideologias, dos julgamentos à direita ou à esquerda do espectro político, de que foi alvo através dos tempos, foi um escritor fundamentalmente engajado, uma voz jamais silenciada em favor dos pobres e dos humilhados do século 18, o século em que desponta na Rússia os primeiros sinais do que se convencionou chamar de capitalismo moderno. Mas essa, por complexa, é uma outra questão.

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Crime e Castigo, de Lev Kulidzhanov

Leitor propôs, dia desses, que escrevesse livro a partir das muitas adaptações de livros de Fiódor Dostoiévski para o cinema. O tema, numa perspectiva mais ampla, é sedutor, uma vez que é significativo o que existe em termos cinematográficos a partir de obras canônicas por cineastas de prestígio, como Stanley Kubrick, Kurosawa, Welles, Claude Chabrol e tantos outros grandes nomes da sétima arte. Ocorre-me lembrar de filmes excelentes cujos roteiros foram extraídos de clássicos da literatura universal que vão de Dom Quixote, de Cervantes, a Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Dostoiévski, então, aparece com destaque entre os grandes escritores que tiveram seus romances versados para a telona. Tomo um deles, Crime e Castigo, como exemplo do que se pode fazer de irrepreensível no cinema.

Filme autoral, em que se pode perceber a mão de um diretor rigoroso em todo o processo de produção da película, que vai da preocupação com a direção de arte à de elenco, Crime e Castigo (1970), de Lev Kulidzhanov, é exemplar digno de nota por suas inegáveis qualidades estéticas, indo muito além do que era uma prática recorrente no caso da Rússia: prestar-se a difundir junto ao grande público o que existe de mais relevante na literatura do país, preservando valores e fomentando a identidade nacional a partir de sua língua-padrão.

O filme, no entanto, notabiliza-se, antes de tudo, por sua beleza enquanto obra de arte, mesmo quando se faz perceber o empenho do diretor em assegurar fidelidade ao texto original, o que não raro restringe o que, sendo próprio da linguagem cinematográfica, enseja ao diretor atirar-se em experimentos estéticos capazes de realçar o seu talento criativo.

O roteiro é quase impecável sob este aspecto: a densidade dramática do romance, o ritmo da narrativa, a própria técnica composicional do livro são elementos observados pelo diretor, o que, em algumas passagens do filme, enseja que a imagem acrescente ao que já se conhece do livro.

O perfil psicológico de Raskólnikov, por exemplo, é de uma felicidade notável: George Taratorkin, intérprete de Rodion Romanovich Raskólnikov (é este o nome completo do protagonista), soube elaborar sua personagem de forma a transmitir os estratos mais profundos da alma humana, algo sem o que nenhuma adaptação de Fiódor Dostoiévski pode ser considerada de real qualidade.

Mas outros elementos merecem destaque no filme, a começar pela opção pelo preto e branco (estonteante) com que Lev Kulidzhanov trabalhou a semiótica fílmica, acentuando as zonas escuras da alma e os distúrbios psiquiátricos de Raskólnikov. A angústia que decorre do sentimento de culpa, essência dostoievskiana do enredo, é destacada pelo uso da luz, outro elemento estético digno de nota.

O diretor russo vai além: o formato CineScope, ao ampliar a medida do quadro, enseja um efeito contrário e serve para intensificar a solidão da personagem: no livro, ressalte-se, embora morador de um minúsculo aposento, são recorrentes as cenas em que Raskólnikov vaga como um sonâmbulo pelas ruas de São Petersburgo.

Não fosse, já, impressionante o resultado dessas escolhas do ponto de vista da estética fílmica, é elogiável a sensibilidade visual de Kulidzhanov em termos de adaptação. Aqui, diga-se por oportuno, o que, a ouvidos menos atentos, pode parecer um defeito, é recurso cinematográfico bem sucedido: a distorção sonora é explorada no sentido de ressaltar a desorientação da personagem.

Fotografia, desempenho do elenco, direção de arte, roteiro, utilização da câmera, luz, ambientação, guarda-roupa, tudo no filme é muito bom.

Por essas e muitas outras razões, ouso dizer que esta é a melhor adaptação de Dostoiévski para o cinema. Um belíssimo filme realizado por um diretor desconhecido do grande público. Kulidzhanov fez sua estreia em 1956, com Tudo Começou Assim, longa-metragem realizado a partir de uma peça de Federico Garcia Lorca (1898-1936).

Escreveu e dirigiu outros trabalhos importantes: O Caderno Azul (1964), sobre Lênin, em que discorre sobre métodos e ações políticas do líder revolucionário, merece destaque.

Em 1991, reencontra Georgi Taratorkin, de Crime e Castigo, com quem dá a ouvir seu canto de cisne: Sem Medo de Morrer.

Morreria em 2002.