Na sequência de textos dedicados a Fiódor Dostoiévski (1821-1881), por ocasião dos 200 anos do nascimento do escritor russo, atendo a curiosidade de um leitor quanto às diferentes fases em que se pode dividir sua obra.
Comumente rotulada como imatura, e mais adequadamente como produção da juventude, a primeira fase da obra de Dostoiévski estende-se do livro de estreia, Gente Pobre (1846), até Humilhados e ofendidos (1861), em que figuram, entre outros, O Duplo (1846) e Noites Brancas (1848). É a fase dita romântica do autor, em que sobressaem as descrições do caráter humano numa perspectiva sentimental e vocacionada a exaltar a ternura e a abnegação das personagens como atributos capazes de salvar o mundo. Aqui é facilmente reconhecível o elemento autobiográfico, com destaque para a infância e adolescência do escritor, quase sempre vistas com idealismo, em que pesem a timidez e o incontido complexo de Édipo por que orienta, numa e noutra fases, parte significativa de sua obra. Veem-se, ainda, o elogio da humildade, da capacidade de perdoar e da compaixão para com o sofrimento humano em qualquer dimensão, mesmo quando a abordagem envereda para o social, na linha do que faz, como sugere o próprio título, já no livro de estreia. Nada que venha a obscurecer, diga-se a tempo, o senso de análise, a tentativa de apontar caminhos e a forte tendência religiosa que será uma marca recorrente no conjunto da obra. A narração é em primeira pessoa, predominantemente, e não são raras as reflexões de cunho estético, a obra de arte como tentativa de superação do conflito existencial --- e a sondagem psicológica que constituirá o esteio temático das fases seguintes.
Também conhecida como pós-siberiana, posto que produzida depois dos anos de condenação por seu envolvimento como o ideário revolucionário de Pietrachévski, que pretendia depor o czar Nicolau I, a segunda fase tem início com o romance Humilhados e ofendidos (1861) e caracteriza-se pela exploração dos dramas humanos acompanhados de perto durante os anos de trabalhos forçados na Sibéria. Esta a razão por que um dos principais livros dessa fase recebe o título de Recordações da casa dos mortos (1860), como é mais conhecido, ou Escritos da casa morta, em tradução recente de Paulo Bezerra (editora34, 2020). É dessa experiência de presidiário, da convivência com os tipos humanos mais marginalizados (assassinos, ladrões, miseráveis, homens destruídos pelo jogo e pelos mais diversos distúrbios psiquiátricos) que Dostoiévski extrai a matéria conteudística com que tece os romances dessa fase. O caso de Memórias do subterrâneo (1864), sob este aspecto, é merecedor de redobrada atenção, uma vez que nesta narrativa singular deparamos com um escritor absolutamente inclassificável, cuja obra constitui, para muitos, uma prefiguração da teoria do inconsciente de Sigmund Freud e do existencialismo sartreano.
Por último, o conjunto de sete romances que constituem a chamada obra da maturidade: Crime e castigo (1866), Um jogador (1866), O idiota (1868), O eterno marido (1870), Os demônios (1870), O adolescente (1875), Os irmãos Karamázov (1880).
O sentimento de culpa, a inquietação diante do silêncio de Deus, o forte referencial cristão que perpassa a totalidade dos romances dessa fase, a que se soma uma atitude de investigação do sentido da existência, além de outros temas que aparecem com maior ou menor intensidade num e noutro livro, são a matéria-prima deste artista prodigioso, um dos maiores (senão o maior) da literatura mundial.
Com raríssimas exceções, ocorre-me pensar no romance Os demônios, pode-se dizer, ainda, que Dostoiévski, para além dos rótulos e das ideologias, dos julgamentos à direita ou à esquerda do espectro político, de que foi alvo através dos tempos, foi um escritor fundamentalmente engajado, uma voz jamais silenciada em favor dos pobres e dos humilhados do século 18, o século em que desponta na Rússia os primeiros sinais do que se convencionou chamar de capitalismo moderno. Mas essa, por complexa, é uma outra questão.
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