Em seu belíssimo Paris e seus poetas visionários, recém-lançado, o poeta e compositor Márcio Catunda diz sobre suas andanças pela capital francesa o seguinte: "Deambular em Paris tem sido para mim uma forma de estudar literatura. Seguindo na cidade as indicações que há, por toda parte, dos locais onde viveram seus grandes poetas, passei em frente aos endereços de meus ídolos".
Essa experiência, diga-se em tempo, acho que, em diferentes medidas, faz parte da vida de cada amante da literatura, do cinema e mesmo das artes plásticas. A arte, com sua força e sua magia, desperta nos que a apreciam, comprometidamente, um certo fascínio, um tipo de sortilégio que, cedo ou tarde, extrapola as fronteiras do livro, do quadro pictórico, da tela do cinema, para se tornar paixão, de que resultam manias as mais diversas.
Vadiar pelas cidades, como fez Catunda à cata de vestígios do que foi a Paris de outrora, emblematicamente registrada pelos olhos de seus poetas preferidos, é uma dessas gostosas manias, para alguns inconfessáveis, porque pueris, insanas, desprovidas de razões justificáveis, num mundo, como disse Nietzsche, saturado de realidade.
A essas andanças despropositadas por avenidas, ruas, parques, logradouros das cidades, tomando por base o poeta Baudelaire, Walter Benjamin deu o nome de flânerie, segundo diz, citando Dickens, "passatempo predileto dos povos com imaginação". A ele se deve o fato de que a figura do flâneur, o ser errante, o vagueante conhecedor das ruas, tenha se tornado objeto de estudo em termos acadêmicos no século XX, verdadeiro arquétipo da modernidade.
De minha parte, vivi essa experiência em São Petersburgo, cidade-cenário dos grandes romances de Fiódor Dostoiévski.
Construída para ser uma "janela para o Ocidente", em 1703, por Pedro, o Grande, e carinhosamente chamada de Piter pelos russos, Petersburgo é detentora de uma beleza e de um estilo citadino que não encontram par entre as grandes e mais importantes cidades do mundo. Situada no entroncamento do rio Neva com o golfo da Finlândia, em meio as águas do mar Báltico, é conhecida nos manuais turísticos como a Veneza do Norte. Isso porque a cidade está cortada por imensos canais, pontes e braços do rio que compõem a imagem mais representativa de São Petersburgo --- e desconcertam o visitante já ao primeiro bater de olhos. Foi assim comigo.
No verão, por ser de todas as cidades do mundo a mais localizada ao norte, ocorrem em São Petersburgo as famigeradas Noites Brancas, poeticamente exploradas em livros e filmes inesquecíveis. Com este título, exatamente, Dostoiévski escreveu e publicou em 1848, na contracorrente do Realismo já vigente na literatura russa, um dos seus mais belos romances: durante uma das românticas 'noites brancas' de São Petersburgo, numa ponte sobre o rio Neva, dois jovens se encontram para viver uma das histórias de amor mais belas da literatura russa e do cinema, não por acaso adaptado que foi por Lucchino Visconti e Robert Bresson.
De Crime e castigo, é São Petersburgo cenário das mais memoráveis passagens, aquelas em que, tomado de angústia e de espanto, Raskólnikov percorre as ruas da cidade, cruzando o Neva sob o peso do sentimento de culpa que é mesmo um dos fios condutores da obra mais conhecida de Dostoiévski.
A uma dada altura, como que por encanto, paro às margens do Neva e alforrio o olhar para o bem longe: como em panorâmica, posso contemplar a ilha de Vassílevski, a fortaleza de Pedro e Paulo (que serviu de prisão para Dostoiévski), a Ponte de Trindade e o Hermitage, antigo Palácio de Inverno, imagem que trago guardada nas retinas para o sem fim dos tempos. Aqui esteve Raskólnikov, esta a paisagem que seus olhos atormentados descortinaram um dia, ocorre-me pensar.
Vendo-me absorto, como se entregue a sonhos irreveláveis, T., minha mulher à época, indaga: "O que foi? Tudo bem?", ao que respondo: "Nada, nada. Está tudo bem!", e volto para a realidade a fim de retomar o caminho...
Quanto a São Petersburgo, ainda voltarei a falar depois.
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