sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Feliz Brasil, outra vez!

Ufa! Eis que terminou o que parecia sem fim. Que se vá (e nunca volte) o Bicho-Doido, o Sem-Fronteiras, o Arrenegado, o Belzebu, o Jurupari, o Príncipe das Trevas, o Tendeiro, o Maligno, o Lúcifer, o Satã, o Cão, o Desavergonhado, o Possuído, o Cramulhão, o Indivíduo, o Desalmado, o Perverso, o Galhardo, o Sujo, o Pé-de-Pato, o Homem, o Tisnado, o Chifrudo, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos... Que se vá, e nunca mais volte, o Monstro.

Viramos a página. Fica para trás um rastro de destruição e miséria, mas o Brasil respira e sua recuperação há de acontecer antes do que se imagina. Foi assim, será sempre assim: depois das trevas, a claridade; depois da tempestade vem a bonança. A democracia venceu, e, daqui a poucas horas, o país estará de novo em boas mãos, mãos que já cuidaram dele com carinho e o farão de novo, tenho certeza disso.

2022 foi um ano impiedoso. Perdemos alguns de nossos valores mais admirados. Demos adeus a Elza Soares, Gal Costa e Erasmo Carlos. A literatura brasileira não conta mais com Nélida Piñon. Deixou-nos Isabel, nossa rainha do vôlei. A tevê e os palcos não terão mais Jô Soares. Morreu Edson Arantes do Nascimento, o Rei, o mais reverenciado brasileiro de todos os tempos, aqui e além.

Mas viramos a página, mesmo que ainda continue sem resposta a pergunta que não se pode calar: como fomos capazes de colocar no mais alto posto da política nacional um fascista indisfarçável? Pior que isso, como este país adoecido quase o reelege, em que pesem os mais de 200 mil mortos que poderiam estar vivos, aos quais negou a vacina salvadora, e dos quais ridicularizou a morte por falta de ar nos pulmões.

Ainda assim, viramos a página. Em que pesem os alucinados à frente dos quartéis, viramos a página e um novo tempo começará daqui a poucas horas. Em que pesem os Paulos Sérgios, os Augustos Helenos e outros generais, viramos a página. A democracia venceu. Os humilhados, os que passam fome, os ofendidos do Nordeste deram o bom recado, e viramos a página.

Perdemos a Copa, mas ganhamos de volta, desfraldada nos braços da multidão, a bandeira nacional  --- e a posse intransferível de nossos símbolos mais representativos. Nenhuma outra passagem de ano foi tão aguardada. Nós viramos a página, e a democracia venceu.

O ano termina com atos de vandalismo que julgávamos afastados do nosso horizonte político. Mas a democracia venceu. O plano criminoso de disseminar o medo e promover o caos a fim de desencadear o golpe, fracassou, e a voz altiva das instituições brasileiras se fez ouvir outra vez, para conter os inimigos da liberdade e o oportunismo dos endinheirados... A desfaçatez delirante. Viramos a página, e a democracia venceu.

Depois de anos de ameaças de golpe, da apologia aos tiranos e aos torturadores; da manipulação da fé; depois do vandalismo nas cidades e nas rodovias, do rugido encatarroado dos Helenos (é preciso repetir seu nome!) e outros apaniguados do mito, eis que viramos a página.

Daqui a poucas horas, o Brasil terá um novo presidente. Que Bozo e bolsominions paguem pelo que fizeram de ruim a este país; pelas mortes que causaram, pelo que destruíram na saúde, na educação, na cultura e no meio ambiente. Que os militares se recolham às casernas de onde nunca deveriam ter saído. Que volte de uma vez por todas a Paz e morra para sempre a intolerância. Que o sol, amanhã, brilhe intensamente, dissipando a escuridão --- e que a sua luz traga o doce calor da Aurora. Viramos a página. A democracia venceu.

Feliz Brasil! Outra vez! 

 

 

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

O fogo passageiro da paixão

Em Cinema Paradiso há uma cena memorável. O projecionista Alfredo, cego e alquebrado, narra para Totó uma singela história de amor: um soldado se apaixonara pela filha de um rei, declarara-lhe o seu amor impossível. Mas a princesa, em dúvida, pede um tempo para decidir se o aceitaria ou não.

Cem dias, é o prazo que estabelece. Em caso afirmativo, no momento certo, apareceria no balcão do palácio. Se não o fizesse, é que lhe teria o 'não' como resposta. E o soldado fica ali, exposto às mais severas intempéries, tempestade ou calor escaldante, o frio que lhe atravessa o corpo, a fome e a sede, sustentando-se na esperança de vê-la aparecer. Heroicamente, conta os dias que faltam. Chegado o nonagésimo nono dia sem que a jovem aparecesse no alto do balcão, o vulto apenas esboçado através da veneziana, eis que o soldado abandona o posto e parte.

"Não me pergunte por quê!", diz Alfredo ao jovem amigo.

Arrisco minha interpretação. É que o soldado prefere levar consigo a esperança de que a mulher amada lhe aparecesse no centésimo dia. Para ele, como para todo ou toda amante, antes a dúvida que a desilusão. Que bela alegoria sobre a utopia da paixão.

Poesia à parte, na vida real é assim. Ele espera o telefonema que não acontece. Ela abre vezes sem conta sua caixa de e-mail, mas o recado não está lá. Ele olha a cada minuto o display do celular, mas não há qualquer mensagem. Ela marcou o encontro no barzinho, mas ele não veio. E os dias se vão passando sem a novidade tão aguardada. Como na história do soldado do belo filme de Giuseppe Tornattore, chega o nonagésimo nono dia na vida dos amantes, e ele ou ela vive o desespero da difícil decisão. Esperar o centésimo dia e enfrentar a realidade e a dor do amor não correspondido ou bater em retirada? Carregar a dúvida do improvável, ou começar a sufocante travessia para o esquecimento ---  e apagar da mente o que insiste em ficar no coração?

Para Nietzsche, o filósofo prussiano do século 19, a esperança é o pior dos sentimentos, pois só prolonga o tempo da dor. Em parte, fecho com ele, em parte não. No amor, passado o martírio de uma desilusão, a esperança pode ter uma outra face, mais otimista e mais certeira. E, invariavelmente, cedo ou tarde, tem! A felicidade vem, silenciosa e sorrateira, mas vem.

Fugaz.

Um dia, como disse numa outra crônica, O Ciclo Vicioso da Paixão, em livro publicado há anos, você, leitor ou leitora, depara com a boa nova. A atração se dá como em milagre: o pisar charmoso com que a viu atravessar a rua, quando o sinal fechou; a elegância com que ele se veste; a forma como ela atende ao telefone, como recompõe o cabelo ou renova o batom; a gentileza com que ele lhe segurou a porta do elevador; a textura da pele dela, a penugem dourada do bumbum, quando, displicente, na areia da praia, espalha o protetor; os olhos que você nunca viu iguais, quando, a pedido, abaixou os óculos de sol; a voz rouca com que se dirigiu ao garçom; a sensibilidade dele, a maneira como ela movimenta as mãos, enquanto conta uma história à amiga, tudo tudo pode acionar o gatilho...

E, sem avisar nem pedir licença, o coração vai batucar, os olhos ganhar novamente o inconfundível brilho.

O fogo passageiro da paixão.

Feliz Natal!  

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Luiz Gonzaga, 110 anos

Nesta semana, mais precisamente no dia 13, Luiz Gonzaga faria 110 anos. Hoje uma unanimidade, mesmo aos olhos da crítica mais exigente, o velho Lua não teve seu nome reconhecido por todos da noite para o dia. Antes pelo contrário, excetuando-se o público nordestino e uns poucos gatos pingados do Sul maravilha, quase sempre voltados mais para o exotismo de sua figura, Gonzagão comeu o pão que o diabo amassou para se fazer notar pela excelência de sua música, do seu acordeom e de sua voz inconfundível. Muito do sucesso conquistado, é justo frisar, devendo-se ao talento de alguns de seus parceiros, com destaque para o pernambucano Zé Dantas e o cearense de Iguatu Humberto Teixeira.

Dessas parcerias, pois, é que surgiu no conjunto de sua vasta produção o que existe de mais relevante em diferentes ritmos e estilos, do baião ao xaxado, do chamego à toada, do xote ao aboio (e improvisações diversas), todos eles, muito embora populares e nascidos do pé de serra, elevados ao fim e ao cabo ao mais alto nível em termos rigorosamente estéticos.  Não é muito afirmar-se, assim, que Luiz Gonzaga antecipou-se a outras manifestações e movimentos pretensamente renovadores, a exemplo da bossa nova, da Jovem Guarda e do Tropicalismo, desconsiderando-se aqui, claro, descompassos de natureza estética, mercadológica ou político-ideológica entre um e outro.

O fato é que, como destacou o renomado crítico e historiador Tárik de Souza, "com seu acauã, assum preto, asa branca, o siri jogando bola, o jumento nosso irmão, Gonzaga povoou o imaginário concreto das cidades sem campos e espaços até que o reinado do baião fosse abalroado pelos semitons dos refinados desafinados".

O crítico, numa avaliação que excede em rigor analítico, como deixa ver a referência depreciativa aos joões da bossa nova, não esquece de ressaltar, contudo, no mesmo ensaio, que esse "abalroamento" não significa o fim do prestígio de Luiz Gonzaga. Muito embora estilizada, em acordes dissonantes e procedimentos experimentais muitas vezes ousados, a música de Luiz Gonzaga ecoa na paridade do rock binário e na retomada identitária brasileira dos baianos, nomeadamente liderados por Caetano Veloso, Capinam, Tom Zé e, sobretudo, Gilberto Gil, talvez o nome da melhor MPB mais influenciado pelo artista pernambucano. E nas apresentações do próprio Gonzagão, evidencie-se, gozando a essa altura de prestígio inconteste em sua voz e roupagem mais autênticas, não raro brilhando em duetos que entrariam para o que de melhor se pôde ver no show business nacional.

No ano em que faria 110 anos, Luiz Gonzaga vem sendo homenageado em diferentes linguagens, shows, programas de tevê, exibição de filme (disponível em DVD e na GloboPlay o belíssimo Gonzagão, de Breno Silveira, cineasta falecido há pouco) e livros. Entre estes, ombreando-se ao clássico Vida do Viajante: A Saga de Luiz Gonzaga, de Dominique Dreyfus, já disponível na Internet o notável Luiz Gonzaga 110 Anos, trabalho sofisticadíssimo do cearense Paulo Vanderley.

Pouco antes de sua morte, em 1989, este colunista realizou longa entrevista com o rei do baião, cujo conteúdo, oportunamente, será explorado neste espaço. Viva Luiz Gonzaga.

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Espetáculo kafkiano

Como discorreu Otto Maria Carpeaux, em ensaio notável, certos nomes têm a força de um enigma, e dizem sobre aquilo a que se referem muito mais do que sonha a nossa vã etimologia.

É o estudioso austríaco quem nos lembra, por exemplo, que o verbo boicotar vem do capitão inglês Boycott, um fazendeiro cujas práticas eram de tal modo assustadoras que seus empregados resolveram largá-lo na mais absoluta solidão, ou seja, boicotaram-no; do Marquês de Sade, afeito a torturar suas companheiras de sexo, veio o que se conhece hoje por "sadismo", assim como, na contramão, "masoquismo" se originou do frágil e tímido escritor Masoch, acostumado aos maus-tratos que lhe eram impostos.

E por aí vai. Do famoso hoteleiro Ritz, nasceram mundo afora, assim chamados, grandes hotéis, como se a palavra servisse para designar o 'estabelecimento onde se alugam quartos, com ou sem refeições', como aparece no Aurélio, que, por extensão, passou a definir livros volumosos.

Ontem, por coincidência, vi à distância, na rua em que moro, um incêndio de proporções "dantescas" num edifício residencial. E me veio Dante, o poeta italiano, adjetivar o que, aos meus olhos assustados, parecia gigantesco, grandioso, muito maior do que realmente foi. Felizmente.

Num país em que se bate continência para um pneu, se pede intervenção militar em nome da democracia, vendem-se e compram-se armas contra a violência, na falta de uma palavra que traduza com exatidão o que existe de esdrúxulo em tais delírios, ocorre-me o adjetivo "kafkiano", cujo significado não se pode explicar sem conhecer o que nos dizem, de Franz Kafka, contos e romances, espécies de alegorias ou parábolas com que o escritor tcheco narrou o que não se pode examinar à luz da plena saúde mental, o que foge aos limites da natureza humana, da realidade histórica, da lógica essencial das coisas.

Estamos todos vivendo um pesadelo "kafkiano", desses só comparáveis aos que vivem personagens das obras memoráveis de Kafka.

No conto A Metamorfose, seu texto mais conhecido, Gregor Samsa acorda certa manhã, depois de sonhos intranquilos, e vê-se transformado num inseto monstruoso; no romance O Processo, no dia em que completa 39 anos, Joseph K. é preso, levado ao Tribunal e condenado à morte sem saber que crime teria cometido; em O Castelo, o agrimensor K. chega a uma cidade à procura de trabalho, mas é impedido pelos moradores de exercer sua profissão, que o tratam com hostilidade e o condenam aos burocratas do castelo, submetido como o homem comum na luta pelo direito a um trabalho, a uma casa para morar, a um nome com que possa desfrutar de uma identidade. E assim, marcados pelo absurdo, acontece em cada um dos livros do "pai da literatura moderna", segundo assertiva de Jean-Paul Sartre.

Franz Kafka nasceu em Praga a 9 de julho de 1883. Seu pai, um judeu alemão, rico e austero, exerceu sobre a personalidade do futuro escritor uma influência quase maligna, levando-o a desenvolver uma personalidade doentia, cujo conflito projeta nas suas narrativas com uma força e um sentido inclassificável.

Há alguns anos, não muitos, percorri as ruas da Praga antiga, cenário de muitos de seus livros e de suas histórias a um só tempo inquietantes e belas, na tentativa de encontrar vestígios de sua vida atormentada. O castelo que dá nome ao romance existe, o cenário de O Processo existe, os bares que frequentou, estão lá, os lugares inomináveis, marcados do musgo verde, úmido e gelado de que estão cobertas as pedras do chão, estão lá. 

Em que pese a beleza estonteante da cidade, das mais encantadoras a que pude chegar, aos olhos do visitante, dá-se a ver a presença do homem solitário e triste, do ser humano que foi capaz de entender e comunicar, pelo milagre de sua arte dialeticamente real e fantástica, o incomunicável, o inexplicável, o absurdo, o estranho, o burocraticamente tortuoso e apavorante de um mundo sem lógica e sem racionalidade.

No Brasil, pois, à frente dos quartéis, assiste-se a um espetáculo kafkiano.

 

 

 

 

 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Pasolini, 100 anos

Do amigo-irmão Francisco Marto Araújo (Frank), cinéfilo e profundo conhecedor da melhor música brasileira e internacional (é especialista em Beatles, Dylan e outros), vem uma relação dos dez maiores filmes de todos os tempos. Constam da lista verdadeiras unanimidades, a exemplo de Bergman, Kurosawa e Fellini, com realizações memoráveis: Morangos Silvestres (1957), Os Sete Samurais (1954) e Noites de Cabíria (1957). Mas aparecem na seleção, a confirmar o rigor estético do amigo, claro, Rossellini, com Roma, Cidade Aberta (1954), Vittorio De Sica, Ladrões de Bicicleta (1948) e Orson Welles, Cidadão Kane (1941). Quase todos, como se vê, forjados em bases estéticas modernas.

Eis que me chama a atenção a ausência de Pasolini, cujo centenário de nascimento se comemora este ano.

Poeta, ensaísta, pintor, romancista e cineasta, Pier Paolo Pasolini foi também um dos maiores intelectuais italianos do século 20, tendo se notabilizado pela vastidão e densidade de uma obra marcada por um forte compromisso social. Marxista, mas assumidamente identificado com as ideias professadas pelo compatriota Antônio Gramsci, que professava a necessidade de engajamento de artistas na luta pelos direitos do homem, fez do ideário esquerdista arma contra o fascismo e a ascética burguesia italiana.

No campo artístico, Pasolini transitou, com naturalidade, do sagrado ao profano; bebeu nas fontes do classicismo sem jamais abrir mão de uma clara vocação transgressora no uso de diferentes linguagens. Como cineasta, para retomar o foco desta singela homenagem, foi ao limite máximo do experimentalismo, nunca, no entanto, optando por aventuras criativas destituídas de rigor formal. Antes pelo contrário, sua cinematografia está pontuada por obras de fino trato estilístico, nas quais sobressai o uso de recursos composicionais tomados de empréstimo das artes plásticas (a pintura, sobretudo). Alguns planos, enquanto unidades mínimas da narrativa cinematográfica, lembram pintores de renome, a exemplo de Giotto, Piero della Francesca e Mantegna.

Começa no cinema, todavia, pela habilidade de escritor, assinando roteiros e, indiretamente, atuando como codiretor. Mas ganharia visibilidade a partir de 1961, quando faz sua estreia com o filme Accattone, uma realização em que já se podem ver suas imensas qualidades criativas.

Ambientado na periferia de Roma, em meio a comunidades extremamente pobres, Accattone (é o nome do protagonista da película), é um filme denso, poético, fatalista, mas, acima de tudo, uma obra de cunho autoral, em que pesem as inegáveis influências do neorrealismo italiano, nomeadamente Rossellini e Lucchino Visconti.

Do ponto de vista da crítica mais tradicional, no entanto, Accattone não é inatacável esteticamente falando. Seus inúmeros defeitos, enquadramentos tecnicamente transgressores (primeiros planos frontais recorrentes), ritmo em descompasso com a densidade dramática da narrativa, panorâmicas demasiado lentas, travellings desnecessários etc., são hoje revisitados com olhos mais sensíveis às escolhas estéticas do cineasta. Não é muito dizer, pois, que fazem parte de uma concepção fílmica menos convencional e mais inovadora, constituindo por si mesmo elemento de uma estratégia narrativa original e inventiva. A prova disso, ressalte-se, é que o estilo aparentemente descuidado, não raro lembrando a precariedade de procedimentos amadores, seria retomado em filmes hoje considerados verdadeiras obras-primas do cinema moderno. É que Pasolini, incorrendo em algumas características formais típicas do neorrealismo, que repudiava quaisquer requintes de linguagem ou estetizações supérfluas, explorou essas características em outra chave estilística, emprestando-lhes uma força dramática muito próxima do épico, do grandioso, do mítico cinematográfico.

A cena do filme em que Accattone enfrenta o seu cunhado, numa briga que remete ao duro cotidiano de uma comunidade marginalizada de qualquer grande centro, é algo notável em termos cinematográficos. À agonia da personagem, golpeada de morte por alguém que lhe é tão próximo em termos sociais e familiares, se sobrepõem o coro final de Paixão segundo São Matheus, de Bach, como a misturar o humano ao divino, e reeditar, na morte de um homem do povo, o martírio de Jesus Cristo.

Mas a grande obra de Pier Paolo Pasolini viria a partir de 1962, com Mamma Roma. De sua vastíssima cinematografia, deve-se destacar, ainda, Teorema, O Evangelho segundo São Matheus, Decameron, Salò, Medéia, Os Contos de Canterbury e Édipo Rei.

No centenário de nascimento de Pier Paolo Pasolini, ver seus filmes e ler sua significativa obra literária é uma oportunidade de compreender as diferentes formas de lutar contra o fascismo e suas ameaças recorrentes.

Mas este é um outro aspecto de sua arte a que voltaremos depois.

P.S. Pasolini foi assassinado em 2 de novembro de 1975. As circunstâncias de seu assassinato ainda são desconhecidas.

 

 

 

 

sábado, 26 de novembro de 2022

Um filme, uma foto

Uma foto ao final do jogo de estreia do Brasil, recebida de um amigo, remete-me a um filme que, por coincidência, revi em DVD há poucos dias. Refiro-me a Amadeus (1984), de Milos Forman. Considero-o um dos melhores do cinema nos últimos cinquenta anos, menos pelo que narra da vida de um gênio da música clássica (no que já é quase perfeito enquanto arte), e mais pelo que traz nas entrelinhas como crítica a um dos mais graves defeitos do homem, a inveja. É dela que se originam alguns dos maiores males da sociedade em todos os tempos. Ao longo da narrativa, Forman é preciso e sutil ao explorar o tema --- realça com delicadeza detalhes, movimentos, expressões, quase nunca indo à materialidade do texto para deixar à vista o que pretende. Coisa de craque, de quem lida com habilidade com uma arte tão densa e tão complexa como o cinema.

Nesse sentido é que destaco aqui uma sequência fílmica extremamente bem realizada do ponto de vista narrativo: é o momento que antecede a morte de Mozart, quando Salieri copia o Réquiem a partir do que, já moribundo, dita-lhe o compositor. Comenta-se, a propósito, que se trata de pura ficção, uma vez que Salieri jamais estivera presente nos momentos de agonia de Mozart. Não importa. Esta, a razão por que o filme me parece maior que a verdade histórica que supostamente deveria narrar. Ali, vê-se o homem dominado por esse sentimento nefasto, devastado pela vontade frustrada de ser o outro, de possuir o seu talento, suas habilidades artísticas e ocupar o posto de um gênio da arte.

Sabe-se que Antonio Salieri, interpretado à perfeição por Murray Abraham, não era um artista desprezível, e que gozava de considerável prestígio à época, maior que o do próprio Mozart, cuja genialidade apenas ele, Salieri, reconhecia com exatidão. Compôs grandes peças, entre as quais sobressaem cantatas, árias, obras orquestrais e de câmara. Foi professor de ninguém menos que o próprio Mozart, Beethoven, Schubert e Liszt. Então, o que justificaria que se deixasse invadir por esse sentimento tão negativo?

É que o invejoso "esquece" o seu status, o seu prestígio, o seu talento, as suas conquistas, as suas bênçãos pessoais e não se conforma com o fato de não poder ser o outro, quando contrariado em sua soberba, sua vaidade doentia, como era o caso.

Atribui-se a Gore Vidal uma frase incontornável sobre o tema: "O sucesso não me basta. Preciso que os outros fracassem". Se procede ou não a autoria da frase, parece-me coisa secundária. A frase vale pelo que diz da monstruosidade humana, pelo espírito da inveja que a substancializa. Voltemos ao filme.

É ele extraordinário, ao lado de tantas qualidades estéticas, não pelo que tem de verdadeiro sobre Wolfgang Amadeus Mozart, pois, como já disse, há um descompasso entre a realidade e a ficção.  Vale como arte, e pelo que investiga de um dos desvios de personalidade mais cruéis. Isso, diga-se, tomando por base uma sociedade muito menos competitiva que a nossa, uma vez que o filme se passa no século 18. Que dirá nos dias de hoje, em que o homem anda cego, ávido de riqueza e poder...

A inveja está, como se sabe, entre os sete pecados capitais, relação de ensinamentos com que a Igreja tenta proteger o homem das tentações que o infernizam. É valor de ideia, ressentindo-se, portanto, de significado sagrado. Aparece ao lado da Arrogância, da Ira, da Preguiça, da Avareza, da Gula e da Luxúria. Ideologia à parte, com uma ou outra restrição, esses pecados são mesmo imperdoáveis e vêm tornando a vida humana insuportável. Mas a inveja é o pior de todos.

A foto, a que me referi na cabeça da página, registra o abraço, não correspondido, de Richarlison em Neymar. Veem-se, pressionados contra o corpo do amigo contundido, os braços solidários do autor de um gol que já entrou para a história das Copas. Os de Neymar, caídos, e frios, e insensíveis (empafiosos!), numa indiferença que beira o desumano.

Mais que corpos de dois companheiros, o que se fotografou ali foi a Inveja. O Destino lhe negara, naquele instante, a capacidade de ser o outro.

 

 

 

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

O exemplo de Frida Khalo

Eu pinto-me porque muitas vezes estou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor.

(Frida Khalo, 1907-1954)

Revejo em DVD o filme sobre Frida Khalo, com direção de Julie Taymor. Confesso que minha admiração pela artista mexicana mais se deve ao exemplo de coragem que nos legou, que à qualidade de sua obra, que não é pequena, fique isto claro. Um tipo de surrealismo, com perfume naïve que mais inquieta que surpreende, esteticamente falando. O que me impressiona, reafirmo, é a determinação por que Khalo orientou sua vida, marcada por tantos e tão grandes desafios, o que só reportando-me a sua biografia pode dar ao leitor a dimensão do que estou falando.

Teve poliomielite aos 6 anos, tinha uma perna menor que a outra. Entre 17 e 18 anos, sofreu um espantoso acidente de carro (em rigor, um ônibus) de que saiu dilacerada: uma barra de ferro do veículo entrou-lhe pelo pescoço e saiu pela vagina; teve a espinha destroçada, os ossos dos pés esmagados, a pélvis, algumas costelas quebradas, o ombro afundado, inúmeras outras fraturas por todo o corpo. Sobreviveu a tudo.

Submeteu-se a trinta cirurgias, teve uma perna amputada e, por um longo tempo, ficou dependurada por fios de aço, tolhida por coletes e praticamente vegetando. Abria os olhos, apenas, e, com mais dificuldade, a boca, por onde, através de uma sonda, davam-lhe de comer, para que não morresse de inanição. Apesar do sofrimento desumano, venceu todas as barreiras, acreditou na vida, casou, descasou, voltou a casar com o prestigiado pintor Diego Rivera. Levou uma vida sexual ativa, teve muitos amantes --- Trótski, o revolucionário russo, um deles ---, participou da atividade política, liderou movimentos feministas, proferiu palestras, rompedu preconceito de toda ordem e, num exercício de catarse que a tornou sublime, dedicou-se à pintura, de cuja paleta sairiam obras importantes e admiradas mundo afora.

Era uma mulher vaidosa, apesar de tudo, independente (no sentido mais profundo da palavra), vestia-se de forma alegre, gostava de cores vibrantes, contagiava a todos com suas excentricidades, amou homens e mulheres, fez e desfez, pintou e bordou. Seus quadros, porém, expressam o que pode existir de mais dramático na alma humana: abortos, sangue, fetos, pregos, nuvens, figuras com que sublima a dor mais lancinante.

Mais que sofrimento físico, no entanto, provou o gosto amargo das grandes decepções. No campo passional, suportou com dignidade e discreta elegância os desvios de personalidade de Rivera, um sedutor incurável, de quem queria tão-somente a lealdade que nunca teve. Rivera, entre incontáveis outros, teria um caso com Cristina Khalo, irmã de Frida, circunstância que a pintora mexicana jamais pôde esquecer.

Morreria aos 47 anos, não sem que pudesse dar ao conjunto de sua vasta obra um caráter conclusivo, verdadeiro registro artístico de uma trajetória comovente. Em se tratando de uma mulher incomum, como Frida Khalo, no entanto, para além das marcas deixadas por um destino brutalmente adverso, ficou o exemplo de alguém que conseguiu distinguir o essencial do aparente, o amor em vez do desespero, a vida em vez da morte.

Por isso, para citar o escritor peruano Vargas Llosa, que a exalta no livro Linguagem e Paixão, "em cada um dos seus quadros escutamos seu pulso, suas secreções, seus uivos e o tumulto sem freio de seu coração".

 

 

 

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Os velhinhos de Piracicaba

Com efeito, escrever sobre o Amor é tarefa não fácil de realizar. Explico. É tema já tão mastigado, que procurar uma ótica original de fazê-lo chega a parecer impossível. Mas, como neste instante em que deparo com a 'página' em branco, às vezes nos sentimos tão provocados a retomar o tema eterno, que impossível mesmo é nos furtarmos ao desafio. Vamos a ele.

De início, contudo, devo ter a honestidade de revelar uma coisa, que, sendo de foro íntimo, talvez não coubesse numa página de jornal, assim, tão sem pruridos e gratuitamente (risos). Estou em estado de paixão! Sim, com exclamação.

E, assim estando, o homem vê poesia em tudo, e sobre tudo o que pode ser o Amor, sente-se motivado a falar, ainda que se trate de duas folhas que serenamente caem de uma árvore ao sabor dos ventos, um fato qualquer, sem maior significado ou relevância. Tudo, como em milagre, transforma-se em poesia no coração de um apaixonado.

De novo, explico-me: andando pelas ruas de Piracicaba, de onde escrevo esta crônica, como que à procura do tema para a coluna de hoje, na página de um jornal distante, deparo com um casal de velhinhos que me chamam a atenção e deixam-me, como que, sob incontido lirismo, como numa extensão daquilo que, posso perceber, inunda seus corações neste instante.

Têm algo em torno dos 75, 80 anos, pouco mais ou menos, e, todavia, de tão "apaixonados", é o que me dizem a ternura de suas mãos entrelaçadas e a cumplicidade de seus olhares cansados, mais parecem dois jovens no mais pleno vigor de suas vidas enamoradas. A uma dada altura do tempo em que os observo, e que não deve extrapolar o espaço de um instante, ela quer arriscar-se a fazer a travessia de uma rua movimentada. Chove uma chuvinha fina e constante. Segurando-lhe a mão, ele resiste. De repente, parece esse desencontro de intenções desencadear uma discussão dos dois. A uma pequena distância, não contenho a curiosidade e fico a observá-los naquela "pugna" imensa. Chego a ficar apreensivo, posto que os dois velhinhos estão entre o meio-fio e a faixa que indica a área de pista por onde passam carros em velocidade.

O que parecia ser uma discussão entre rabugentos, coisa de resto compreensível na vida de um casal de idosos, torna-se, de repente, uma pública demonstração de carinho e proteção recíproca. Os dois velhinhos entreolham-se, e, como num comercial da tevê, entregam-se num beijo fremente, desses como só se veem beijar os jovens amantes.

Eu tenho amado tanto e ainda não conheço o amor, ocorre-me o verso de Bilac. Discretamente, levo o indicador à face, a lágrima a correr límpida e quente, e continuo minha caminhada pelas ruas da cidade.

Que beijo tão doce e tão terno.

Já se tem falado tanto sobre o Amor, dizia eu, há pouco. E, no entanto, como me disseram novidades sobre o tema esses velhinhos de Piracicaba.   

                                                 (Texto extraído do livro "Do Amor e outras crônicas", de Alder Teixeira)

 

 

 

 

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

A Intuição da Ilha

Assim, quase que de uma sentada, é que li aquele que me parece o mais belo dos livros publicados este ano. Veio em boa hora, como a espalhar poesia, embora escrito em prosa, sobre a data que, efetivamente, precisa ser festejada, pelo que representou e continuará representando para os países de língua portuguesa (e para o mundo) o homenageado. Ele, ninguém mais ninguém menos que José Saramago --- que contaria, no próximo dia 18, cem anos ---, primeiro e único escritor do vernáculo a receber o Nobel de Literatura, em 1998. O livro, intitulado "A Intuição da Ilha", um arrebatador registro dos dias de José Saramago nas ilhas Canárias, assinado por Pilar Del Río, companheira do escritor até o falecimento dele, ocorrido em 2010.

Embora nascido em Portugal e a Portugal tendo dedicado o que fez de mais expressivo numa vida já por si extremamente rica, pois que de Azinhaga, sua terra, extraiu muito da matéria-prima de que faria uma das mais belas literaturas de todos os tempos, a importância do arquipélago canário era tanta para o escritor que ele próprio se dizia "português de Lanzarote", como por vezes se pode ver nos seus diários, não sem razão conhecidos como "Cadernos de Lanzarote". Foram 18 anos, desde que lá se estabeleceu em protesto à censura imposta a um de seus romances clássicos, "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", pelo governo de Cavaco Silva, em 24 de abril de 1992.

Escrito em capítulos curtos, que, sem prejuízo, podem ser lidos aleatoriamente, "A Intuição da Ilha" é um testemunho vertiginoso e tocante de uma mulher que foi, segundo o próprio escritor, um dos dois acontecimentos mais importantes de sua vida. Mas, na contramão do que é comum em relatos do gênero, em que a vida doméstica é o substrato dominante da narrativa, o livro de Pilar Del Río constitui uma novidade por si só merecedora de destaque: a narrativa passa ao largo de qualquer sentimentalismo vulgar, tão ao gosto de um certo memorialismo piegas e lamuriento não raro presente nas prateleiras do gênero, e encanta pela isenção do olhar, muito embora delicado e intencionalmente respeitoso, como atestam aqui e ali as referências textuais em terceira pessoa.

Ler "Intuição da Ilha", por isso, é como que, se por um golpe da sorte, pudéssemos participar diretamente de um passado que parece pertencer, exclusivamente, a José Saramago, posto que, já o disse, Del Río se mantém à distância, conduzindo com sutileza e refinado estilo os passos do leitor Casa adentro (é este o topos dominante da narrativa), não obstante seja a própria convivência dos dois e dos numerosos amigos, entre risos e iguarias, a interface do que existe de mais significativo, pulsante, vivo e eterno nesse livro quase inclassificável.

Como foi dito, o escritor português contaria cem anos neste mês. Nasceu em 1922, filho de uma família pobre do Ribatejo. Antes de tornar-se conhecido nos quatro cantos do mundo, por sua obra densa, profunda, esteticamente inovadora, José Saramago exerceu diversas profissões: foi serralheiro, desenhista, servidor público, editor e jornalista. Todas, naturalmente, atividades dignas, às quais se referiu sempre com um respeito algo cerimonioso, o que, mais ainda, se reflete nas ideias políticas que defendeu por toda a vida com um entusiasmo e uma convicção inarredáveis. Suas entrevistas, tanto supostamente quanto suas obras, são ouvidas, vistas e revistas mundo afora. Em todas elas, a palavra elegante, o ritmo cadenciado, a expressão entre serena e professoral --- instrumentos retóricos com que semeava a defesa intransigente dos valores fundamentais da existência humana.

Hoje, confesso, sentei-me à frente do computador para a escrever sobre a obra de José Saramago, dizer palavras sobre seu estilo, sua narrativa entrecortada de vozes, num exercício de polifonia que, no mais das vezes, causa ao leitor desatento certo estranhamento, e, não raro, leva-o a não seguir adiante. Meu jeito incorrigível de dividir com o outro a experiência de um milagre, o sortilégio de viver por inteiro a beleza que lateja, viva, incontornável, salvadora do mundo, na literatura de José Saramago.

Mas o espaço é curto. Voltarei aos seus livros depois.

 

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

A face tupiniquim do nazismo

Aos que se deixaram impressionar pela mobilização golpista de agora, a que se soma um bloqueio de estradas que já deveria ter levado à cadeia seus idealizadores, não é muito lembrar o que a História nos conta.

Hitler, a exemplo de seu duplo tupiniquim, era carismático, mítico, tinha convicções e conhecia a natureza do comportamento coletivo. Não havendo as redes sociais, lançou mão de mecanismos de propaganda que inspiraram o que se define hoje como publicidade moderna.

Com reparos estéticos e formais, um certo embelezamento do discurso narrativo, muito do que se vê na atualidade tem suas raízes no que fez seu publicitário Goebbels, homem dotado de inteligência e profundo conhecedor da natureza individual.

Juntos, foram a seu tempo seguidos incondicionalmente, e mobilizaram multidões, submetidas às cegas ao ideário nazista: intolerância racial, aversão às mulheres, nacionalismo exaltado, perseguição aos judeus e mórbida rejeição às diferenças sexuais.

Tudo isso numa sequência perversa, até que fosse oportuno o extermínio dos pobres, bem na linha do que pretendem os nazistas de hoje em relação aos indígenas, aos negros e aos menos favorecidos do Nordeste.

A propaganda nazista era de tal modo poderosa que, na contramão do que se pensava possível --- vencidos os nazistas, com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, nada restaria de sua ideologia criminosa ---, o nazismo vence o tempo e ainda são numerosos, por exemplo, os que vão às ruas e à entrada dos quartéis clamar por intervenção militar e a volta do regime ditatorial. Se são diferentes na forma, assemelham-se no conteúdo, e é a mesma a apropriação dos símbolos visuais e sonoros: bandeira, hino, cores e outros signos desencadeadores da emoção e do fanatismo.

Não faltaram, pasmem, os que, à época, negavam as evidências, ignoravam a ciência, compravam gatos por lebres. Sob este aspecto, dou voz ao próprio Goebbels, para quem "Com uma repetição suficiente, e a compreensão psicológica das personalidades envolvidas, não seria impossível provar, de resto, que um quadrado é um círculo."

Bem na linha do que se vê, quando, hoje, nega-se a esfericidade da Terra, posto que é plana, à maneira de Olavo de Carvalho, o já falecido guru bolsonarista.

Convencido de que "o êxito de um anúncio, seja comercial ou político, se deve à assiduidade e à persistência com que se emprega", Hitler repetia à exaustão o bordão nacionalista. Algo bem próximo do "Deus, Pátria, Família e Liberdade", tão ao gosto do que professa, enfadonhamente, mais de setenta anos depois, o mito adorado.

Agarro-me a Torquato, o poeta do Piauí: "Não é bastante que se derrube o príncipe se ficarem de pé seus princípios."

Para concluir, volto a Goebbels e outra vez lhe dou a palavra: "Toda falsidade é mais crível quanto maior seja".

Bem atual, não? 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

O sol e as trevas

Amanhã será um lindo dia/Da mais louca alegria/Que se possa imaginar//Amanhã, redobrada a força/Pra cima que não cessa/Há de vingar//Amanhã, mais nenhum mistério/Acima do ilusório/O astro rei vai brilhar//Amanhã, a luminosidade/Alheia a qualquer vontade/Há de imperar//Amanhã será toda a esperança/Por menor que pareça//O que existe é para festejar//Amanhã, apesar de hoje/Ser a estrada que surge/Pra se trilhar//Amanhã, mesmo que uns não queiram/Será de outros que esperam/Ver o dia raiar//Amanhã, ódios aplacados/Temores abrandados/Será pleno, será pleno.

Hoje, acordei com essa música do Guilherme Arantes a repercutir, insistentemente, em meus ouvidos. O inconsciente, de que nos falou Freud a inaugurar uma das mais belas ciências humanas? Não sei, mas o fato é que fui à vidraça do quarto olhar o dia a explodir esperança pelos longínquos do horizonte.

Amanhã, o Brasil tem a sua frente mais que uma eleição para presidente. Amanhã, cabe-nos decidir entre dois projetos de país, duas realidades para nós, para as pessoas que amamos e para o nosso povo.

De que lado estaremos? Do Brasil do ódio, do rancor sem cura, da desesperança, da hostilidade às diferenças, do desprezo pela liberdade, pelos povos indígenas, dos maus-tratos aos negros e às mulheres, da indiferença e do desdém para aqueles a quem falta ar nos pulmões na hora da agonia, do negacionismo e da omissão em face das milhares de pessoas às quais se negou a vacina que salva, a ciência que trabalha em favor da vida? De que lado estaremos?

Estaremos do lado dos que respeitam a vida e a dignificam pelo trabalho, pelo salário justo, pelo respeito aos diferentes, pelo altruísmo, que veem o amor maior que o gênero, dos que sabem a dor de perder o ente amado, dos que defendem o meio-ambiente, que sonham com um país menos desigual e mais livre, mais humano, com mais escolas, mais livros, mais universidades? De que lado estaremos?

Estaremos com Paulo Freire, que elevou o prestígio da educação brasileira a níveis impensáveis mundo afora, ou de Olavo de Carvalho, com seus métodos rasteiros e odientos de conduzir os ingênuos e os desavisados? Dos que constroem hospitais, ou dos que os invadem e os apedrejam? Dos que adoram armas, munições, ou dos que exaltam a importância dos livros e da educação? De que lado estaremos?

Dos que se engasgam de revolta ao deparar com pobres no aeroporto, no cinema, nos restaurantes? Ou dos que se emocionam com a formatura da filha do porteiro, da servidora doméstica, dos afrodescendentes, dos que sonham ser reconhecidos pelo que são como gente, não pelo que possuem, pelo tamanho da conta bancária, dos carrões, das mansões compradas a dinheiro vivo? De que lado estaremos?

Dos que se encantam e aprendem com as fábulas literárias, ou dos que se curvam às mentiras de acusações levianas, fúteis, inconfessáveis, a exemplo da ameaça comunista, do "kit gay" e da existência de um "enviado" que mente, bate, professa o ódio e a violência como forma de garantir seus privilégios e suas conveniências sórdidas? De que lado estaremos?

De Chico Buarque, Caetano Veloso, Sebastião Salgado, Fernanda Montenegro, Marieta Severo, do técnico Tite, do meia Paulinho, Padre Júlio Lancellotti e do Papa Francisco, ou do goleiro Bruno, de Guilherme de Pádua, de Robinho, do sonegador Neymar e do seu conservadorismo interesseiro e vil? De que lado estaremos?

Dos que lutam por seus direitos, dos que compreendem o significado de um país livre e justo, mais igualitário, mais humano, mais sensível às coisas da poesia e da arte como um todo, ou dos que maldizem a democracia e a desvirtuam de forma criminosa, ao som de tiros e explosões de granadas? Dos que caluniam e ofendem, ou dos que pregam a paz, a tolerância, o amor? Dos que dividem, ou dos que só multiplicam? De que lado estaremos?

Como na canção de Guilherme Arantes, amanhã será outro dia e um novo sol vai brilhar.

Ou decidiremos em favor das trevas?

 

 

 

 

 

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Uma nação, um povo, um líder

Zoofilia

"Naquele tempo não tinha mulher como tem hoje".

Canibalismo

"Comeria um índio sem problema nenhum'.

Pedofilia

"... menininhas de 14 anos, bonitas, arrumadinhas. Pintou um clima".

Sonegação

"Sonego o que for possível".

Auxílio moradia

"Uso para comer gente".

Pobreza

"Pobre não sabe fazer nada, o pobre só tem uma utilidade nesse país: votar com diploma de burro no bolso".

Afrodescendentes

"O afrodescendente mais leve pesava sete arrobas. Não fazem nada".

Nordestinos

"Só tá faltando crescer um pouquinho a cabeça".

Trabalho feminino

"Mulher deve ganhar salário menor porque engravida".

Estupro

"Só não te estupro porque não merece".

Brasil

"Quem quiser vir fazer sexo com mulher, fique à vontade".

Homossexualidade

"... começa a ficar meio gayzinho, dá coro que ele melhora". "Seria incapaz de amar um filho homossexual. Prefiro morto".

Minorias

"... minorias se adequam ou desaparecem".

Direitos

"Devem ser rasgados e jogados na latrina".

Indígenas

A cavalaria brasileira foi incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios".

Asfixia por covid

"... urr urr urr, tô com covid"(risos).

Mortos por covid

"Minha especialidade é matar". "Não sou coveiro".

Desobediência civil

"A culpa não é minha".

Nazismo

(Ein Volk, ein Reich, ein Führer) "Uma nação, um povo, um líder".

 

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Sobre política e perversão

Há artigos que valem por livros inteiros e são capazes de esclarecer com objetividade e concisão o que parece ser um problema complexo demais para ser examinado à luz de poucas palavras. A edição da Folha de S. Paulo desta sexta-feira traz um exemplo disso. Refiro-me ao incontornável artigo do advogado e professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, Silvio Almeida, intitulado Bolsonarismo, política e perversão. O tema, como o próprio título deixa ver, é o da ascensão global do fascismo e sua versão brasileira cujo substantivo deriva do atual presidente e candidato à reeleição.

Embasando-se em trabalhos de maior fôlego, o que é mesmo natural em artigos exemplarmente consistentes como o dele, Silvio Almeida traça um perfil do eleitor bolsonarista sem incorrer em categorizações repetitivas do que se pode definir como fascista, na linha do que mesmo livros clássicos sobre a matéria fizeram, a exemplo do aclamado O fascismo eterno, de Umberto Eco, no qual o autor de O Nome da Rosa e O pêndulo de Foucault estabelece 14 lições para identificar o neofascismo e o que define como fascismo eterno.

Intertextualizando o livro Crítica do Fascismo (Ed. Boitempo, 2022), Silvio Almeida  trabalha o conceito do fascismo à brasileira, numa perspectiva crítica, pelo viés da psicanálise e da economia política, e o resultado do artigo surpreende pela nitidez que dá a um fenômeno político que vem constituindo um desafio para diferentes campos da ciência política: como entender que uma liderança que sustenta sua ação no desprezo pelos pobres, manipulação da crença religiosa, mentiras, desapreço pela mulher, homofobia, racismo, ojeriza aos fundamentos da democracia, incentivo ao ódio e à violência, pode aliciar de forma impressionante quase metade dos eleitores brasileiros?

A explicação, que demanda obviamente outras vertentes de análise, concentra-se no fato de que o 'mito' "é a realização do desejo do homem médio, espremido pela miséria material e espiritual do capitalismo em crise". "O mito, diz ele, é o gozo sangrento, é o prazer espetacular com a morte". Nessa linha de interpretação, pois, é que Silvio Almeida nos faz entender por que o discurso bolsonarista centraliza-se num conceito de "liberdade ilimitada", que, em essência, é a própria negação da liberdade democrática, aquela que deita raízes no respeito à Constituição e aos valores de um Estado democrático de Direito: "ele é presidente e não trabalha, ofende as pessoas e as deixa morrer, anda de moto sem capacete durante o expediente, faz turismo em funerais, mente descaradamente, deixa os filhos fazerem o que quiserem e nada, absolutamente nada acontece com ele". Ele não é punido, sequer objeto de julgamentos por parte das instituições às quais caberia lhe impor limites, uma evidência na omissão desavergonhada do Procurador Geral da República e no silêncio servil de órgãos da grande imprensa.

O artigo de Silvio Almeida, a essa altura, vai ao cerne do que se tem, quase sempre em vão, procurado compreender sobre o fascismo brasileiro: "O bolsonarismo é o gozo perverso", pois prescinde do que é indispensável ao candidato adversário, a necessidade de mostrar-se melhor para presidir o país, pautando-se pelas regras do Estado democrático de Direito, a atenção cuidadosa com os que passam fome, os que precisam de emprego para sustentar suas famílias, os que são diferentes e fazem de suas vidas um bem precioso a ser respeitado, as mulheres, os indígenas, os negros e os desassistidos de toda ordem.

Na lógica dessa liberdade ilimitada, é que se sustenta quase metade dos brasileiros aptos a votar em 30 de outubro. Para esses, que se lixem as instituições, pois que Jair Messias Bolsonaro é o mito que representa "o triunfo do que de pior habita em cada um de nós. É o fracasso orgulhoso, o fracasso triunfante da dor".

Não à toa, pois, é que seus seguidores invertem o sentido do prazer, alimentam-se do ódio, fazem a apologia do sofrimento alheio como forma de alcançar seus objetivos malignos, projetando-se nas falas e ações de seu guia.

A duas semanas da mais importante eleição para presidente, é como desfecha seu artigo Silvio Almeida, resta aos brasileiros um único caminho: "... desarmar o fascismo e suas expressões passa por reorientar politicamente o desejo para formas de viver não alimentadas pela morte".

Sem medo de ser feliz.

 

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

As urnas dirão o que somos

Se, no primeiro turno, o otimismo bolsonarista não tinha fundamento; no segundo, a preocupação dos lulistas é pertinente. O dia seguinte para o atual presidente não poderia ser melhor: se já contava com o governador do Rio de Janeiro, seu companheiro de partido, passou a contar com o apoio escancarado de Romeu Zema, de Minas Gerais, e de Rodrigo Garcia, de São Paulo.

O primeiro, poderosamente instalado no Palácio da Liberdade, é sério candidato a presidente em 2026, e, pelo perfil liberal que encarna à perfeição, sabe que suas chances seriam pequenas na hipótese de uma vitória de Lula. Ademais, é filhote do capital e legítimo representante do que existe mais à direita em termos ideológicos. O segundo, antevendo o ocaso do PSDB, prepara voo para o que deverá surgir da fusão do PSL com o DEM, berço de sua aparição no cenário político de São Paulo. Sem contar que se move ao sabor de ressentimentos contra Haddad, que provocara, como prefeito de São Paulo, investigação de malfeitos de seu irmão Marco Aurélio Garcia, envolvido em escândalo na máfia dos fiscais.

O certo é que a situação fragiliza a percepção de que Lula chegara ao segundo turno em vantagem. Agora, queira-se ou não, é uma outra eleição, na qual o movimento das peças passa a obedecer a uma lógica diferente, e é sob essa perspectiva que a "turma do Gerson" (aquela que quer sempre levar vantagem) lança-se no mercado com seu apetite insaciável. Sem contar que estamos falando de um país com nítida identificação com o conservadorismo mais tacanho, mais equivocado e mais hipócrita, com práticas igrejeiras que negam o objeto que dizem venerar.

O caso de São Paulo, a rigor, não deveria surpreender. O estado foi, é e continuará sendo o retrato de um Brasil elitista, conservador e não raro delinquente em sua tradição política. É o estado de Ademar de Barros, de Maluf, entre tantos outros, ao que se soma, nesta eleição, um erro tático do PT ao considerar o candidato de Jair Bolsonaro um adversário mais frágil na hipótese de um segundo turno, confirmado no domingo.

Ao empenhar-se na desconstrução do candidato do PSDB, para quem direcionou suas baterias em debates, Haddad acabou por contribuir para o fortalecimento do seu, agora favorito nas pesquisas de intenção de voto, oponente, o que mais ainda traz para Lula o risco de que Bolsonaro alargue sua vantagem em São Paulo, o que será muito ruim para o candidato do PT.

Com o apoio do PDT, já esboçado desde o primeiro turno, de Simone Tebet, que fez nessa quarta-feira um pronunciamento histórico no plano da forma e do conteúdo, e dos tucanos de plumagem clássica (FHC, Tasso Jereissati e José Serra, entre outros), mais a suposta adesão de empresários, ancorados em nomes que lhes garantam a inexistência de um plano econômico mais à esquerda, a exemplo de Henrique Meirelles, Pérsio Arida e Armínio Fraga, Lula passa a depender dos humores do eleitorado de Minas Gerais e da esperança de que Zema não consiga desfazer os resultados obtidos por ele no Norte do estado.

Sem isso, mesmo que amplie sua vantagem no Nordeste, a situação do ex-presidente torna-se muito difícil, muito embora estejamos falando da maior, mais surpreendente e mais brilhante liderança política popular do país. Os últimos movimentos, no entanto, indicam uma retomada da dianteira petista, o que os números da pesquisa do Ipec (a primeira do segundo turno) confirmam: Lula aparece com 55% do votos válidos (descontados os votos brancos e nulos), contra 45% de Bolsonaro.

Os tempos são outros, mas o antipetismo é uma realidade que ainda impera em todas as regiões do país, exceto o Nordeste, onde o projeto de governo do PT deita suas raízes de forma incontrastável. E não adianta tentar ignorar o que os governos do PT fizeram em benefício de um povo pobre, mas digno e exemplarmente consciente do que é de fato melhor para ele.

Aí, se capaz de manter algo próximo do que conquistou a dois de outubro, mesmo sob o peso de uma correlação de forças profundamente desigual a partir de agora, quedam as melhores esperanças do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva conquistar um terceiro mandato, resgatar o que restou de nossa combalida democracia e abrir novos horizontes em meio à tragédia em que se transformou o país.

Do contrário, como tão bem discorreu sobre o Brasil a jornalista Mariliz Pereira Jorge, em coluna de quarta-feira na Folha, corre-se o risco de ver-se confirmar o que supostamente somos: "Um povo que faz arminha com a mão, odeia o próximo e vai à igreja aos domingos."

A votação do dia 30 deste mês é, por certo, a mais importante desde a redemocratização do país. Mais que nunca, o povo brasileiro decidirá entre a continuidade da barbárie e o restabelecimento da normalidade democrática. Simples assim.

 

 

 

 

 

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

O triste ocaso de Ciro Gomes

Assistindo às declarações de Ciro Gomes desde o início do horário eleitoral gratuito, a que se soma o que pude perceber na inconstante trajetória do candidato a presidente pelo PDT (e por ele sempre alardeada como prova de sucesso), dois livros me têm vindo à mente com significativa frequência. Vamos ao primeiro deles.

Aristóteles diz, em Ética a Nicômaco: "Qualquer um pode zangar-se --- isso é fácil! Mas zangar-se com a pessoa certa, pelo motivo certo e da maneira certa --- não é fácil!"

No livro, como seu próprio título sugere, o filósofo grego analisa o agir humano e constata que todo conhecimento e todas as ações do homem têm por objetivo algum bem. Nisso reside o que se costuma chamar de 'felicidade' e que diferencia o homem de todos os outros animais. Desse modo, ser feliz é estar em sintonia com aquilo que promove o bem-estar, seu e dos outros, o que entende por 'virtude'.

Essa qualidade consiste em evitar extremos, evitar excessos. Por isso a razão nos impõe equilíbrio, senso de medida, e disso nasce a compreensão de tudo o que é bom e justo. E a justiça é, para ele, a maior de todas as virtudes. Passemos ao segundo.

Publicado em fins dos anos 1990, Inteligência Emocional --- a teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente, do psicólogo, PhD pela Universidade de Harvard, Daniel Goleman, pôs em xeque o que era considerado 'inteligência' nas visões tradicionais daquilo que leva o homem a ter sucesso em diversos campos: no mundo empresarial, nas diferentes profissões, nas relações afetivas, na vida pública etc.

Sem perder de vista o rigor científico, Goleman examina com clareza as grandes descobertas neurológicas e as associa à sua vasta experiência como psicólogo para traçar um perfil consistente do que se deve compreender por 'inteligência emocional' --- aquela a que, conclusivamente, deve-se atribuir a verdadeira razão do sucesso pessoal do homem. Voltemos a Ciro Gomes.

Em que pese detentor de um currículo político notável, tendo ocupado posições importantes na sua trajetória de homem público (foi deputado estadual, federal, prefeito, governador, ministro), o candidato a presidente pelo PDT reúne o que a tradição acadêmica e o senso comum consideram atributos necessários para galgar, nos limites do país, o posto mais alto da vida pública: o de presidente da República. O que explica, então, o fato de que talvez nunca obtenha o sucesso que persegue há pelo menos vinte anos?

Aqui, pois, é que, separados por séculos, Aristóteles e Goleman se encontram, dão-se as mãos e, professorais e convincentes, esclarecem a questão: a incapacidade de lidar com as próprias emoções (e a natureza do caráter, acrescento eu) pode destruir vidas, acabar com carreiras promissoras, levar a tristes ocasos enormes talentos e reconhecidas vocações.

Na reta de chegada para o primeiro turno das eleições (a dois de outubro), o desajuste emocional, a zanga insana, a valentia que dá a ver o covarde, o ressentimento indomável, o ciúme doentio, a inveja shakespeariana, o ego desmedido, a ciclotimia mórbida (boderline?) ou outro qualquer distúrbio de personalidade, levam para o abismo a figura política de Ciro Ferreira Gomes, assemelhando-o, da forma mais vil e mais humilhante, a ninguém menos que o inqualificável Jair Bolsonaro.

Infeliz e desvirtuoso, como em Aristóteles, desprovido de inteligência emocional, como em Daniel Goleman, o candidato do PDT cava a sua própria sepultura, espezinha o que restava de sua imagem, e vê, como um Iago amargurado, cristalizar-se a vitória de Lula, a quem agride despudoradamente. Cospe à direita e à esquerda, como um bicho peçonhento, desmerecendo o que foi sucesso em sua trajetória.

Triste ocaso o de Ciro Ferreira Gomes.

 

 

 

 

 

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Godard nunca morrerá

Até hoje não tenho claras as razões pelas quais um cineasta reconhecidamente rebuscado, por vezes rotulado de chato e incompreensível, quanto Jean-Luc Godard, teria sido exibido numa cidade do interior do Ceará em plena década de setenta. Já nem lembro se isso me ocorreu no Cine Alvorada ou no modernoso, para a época, Cine Coliseu, cujos projetores de ponta e sistema de som ensurdecedor, deixavam o menino que fui entre assustado e tomado de encanto. O fato é que recordo com clareza o estranhamento que me dominou ao deparar com aqueles cortes bruscos e desconexos que passavam para os espectadores como se fossem defeitos de montagem.

O impressionante, para o cinéfilo iniciante e sem leitura de textos especializados, no entanto, é que o filme me desconcertara de um jeito positivo, despertando-me a curiosidade sobre o seu diretor, que só a custo passaria a conhecer através de referências no jornal "O Povo", em artigos assinados por Luís Geraldo de Miranda Leão, de quem, quis o destino, para o meu gáudio, muitos anos depois, tornar-me-ia (arre!) amigo de encontros recorrentes para discutir cinema, e a quem, de público, afirmo dever muito do que aprendi sobre a sétima arte.

O filme, por óbvio a essa altura da crônica, era "Acossado" (1960), estreia do gênio cuja morte, como a revelar ainda mais de sua irreverência e de sua profunda originalidade, ocorreu essa semana, na Suíça, no que se define legalmente por lá como suicídio assistido. Não estava doente, mas se sentia cansado, a ponto de a vida não ter para ele qualquer sentido, disseram seus familiares.

Pelo sim, pelo não, falemos de sua arte, não menos controversa, em verdade, que a sua própria vida, pontuada por excentricidades e contradições que só encontram paralelos, supostamente, na vida de outros artistas geniais, a exemplo de um João Gilberto, um Ludwig Beethoven, um Ingmar Bergman, um Leonardo Da Vinci, um Fiódor Dostoiévski, um Oscar Wilde, para citar alguns.

Na tela, num preto e branco de luz não raro estourada, pois Godard quase sempre descumpria regras da gramática cinematográfica, a de não usar o branco em planos abertos, para evitar distorções na imagem, por exemplo; falsos 'raccords' ou 'match cuts' (cortes na edição que fazem a transição entre dois planos) e saltos impactantes ("jump-cuts") para os olhos ingênuos do quase menino deslumbrado, Michel Poiccard, um gângster soberbamente interpretado por Jean-Paul Belmondo, roubava um carro e, numa sequência de perseguição que me tirava o fôlego, matava um policial. Em Paris, (as locações de preferência de Godard estão na capital francesa) reencontra Patrice Franchini, a antiga namorada, corporificada na película pela bela Jean Seberg, mas é traído por ela, que o denuncia. É finalmente assassinado com um tiro nas costas e cai no asfalto teatralmente. Na agonia, o close a mostrar, inexplicável, a fumaça que lhe sai da boca, detalhe a dar realce às experiências inusitadas do diretor do filme. Tessitura banal, portanto.

O que faz de Godard um artista invulgar, então? Por certo, não o roteiro, não raro atribuído incorretamente a François Truffaut (a verdade é que este apenas o inspirou), baseado em histórias recorrentes em filmes policiais de tipo B. Mas a forma, a concepção narrativa cujas estratégias nasciam da inquietação criativa de um cineasta rebelde, na maneira como articulava o desenrolar da intriga, na sensibilidade com que soube dar sentido ao acidental e, sobretudo, no fato de que o diretor, invariavelmente, convoca o espectador a preencher vazios e rupturas do que define o chamado estilo clássico hollywoodiano.

Não sem razão, pode-se ver, Godard, mais que Truffaut, que Éric Rohmer, que Chabrol, que Rivette, que Agnès Varda, foi responsável pela estética do que se convencionou chamar de Nouvelle-Vague francesa: a valorização do real, do cotidiano; a opção por filmar em locações; a direção "autoral"; a quebra da linearidade narrativa (Uma história deve ter começo, meio e fim, mas não necessariamente nessa ordem, dizia Godard); a maneira de usar a câmera, de enquadrar a cena, o gosto pelo "travelling" (a câmera se desloca por inteiro durante a filmagem da cena), que ele considerava "Uma questão de moral", num aforismo que entraria para o folclore do cinema.

Fez filmes e filmes, se não amados pelo grande público, obrigatórios para quem se dedicar a compreender melhor o que está por trás da realização de uma obra tão complexa e tão carregada de sutilezas, de desafios, de potencialidades, a que chamamos Cinema: "O Pequeno Soldado" (1960), "Uma Mulher É uma Mulher" (1961); "Viver a Vida" (1962), "Tempo de Guerra" (1963); "O Desprezo" (1963), "Alphaville" (1965), "A Chinesa" (1967), "O Vento do Leste" (1970), "Paixão" (1982); "Je Vous Salue Marie" (1985), "Para Sempre Mozart", para citar aqueles de que mais gosto, e que tenho a pretensão, talvez deselegante, de recomendar.

Pena não haver espaço para discorrer sobre Jean-Luc, pois que Godard, como disse com exatidão o cineasta Kleber Mendonça Filho, "este nunca morrerá".

 

 

 

 

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Sobre grafia e despudor

Apropriando-se indecorosamente das celebrações do bicentenário da Independência, transformando-as no mais desfigurado, vil e desavergonhado espetáculo oficial do país, sob o olhar cúmplice de representantes das Forças Armadas, assumidamente usados como figurantes de quinta no palco da encenação burlesca, o presidente Bolsonaro abusou da baixaria e ensejou --- com seu discurso entremeado de ameaças à democracia, afirmações de masculinidade e alusão descabida aos dotes físicos da primeira-dama ---, uma discussão de natureza gramatical no mínimo curiosa: "imbrochável", com CH, ou "imbroxável", com X?

Muito embora adotado por redatores dos principais jornais do país, a exemplo do que se pode observar na edição de hoje da Folha de S. Paulo, onde aparece em chamadas da capa e artigos vários, a primeira grafia me parece desaconselhável. Tomo por base o que registra o "Novo Dicionário da Língua Portuguesa", de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira: "broxar. v.t.d. 1. Pincelar, pintar com broxa. Int. 2. Bras. Chulo. Perder, ocasional ou definitivamente, a potência sexual: tornar-se broxa. (2). [Pres. subj. Broxe etc. Cf. broche, sub. masc., e o verbo brochar".

No "Grande Dicionário Sacconi da Língua Portuguesa", comentado, crítico e enciclopédico trabalho encabeçado pelo professor Luiz Antonio Sacconi, depara-se com o seguinte verbete sobre o verbo 'broxar': "broxar v.t.d. 1. Pintar ou pincelar com broxa: broxar a parede. 2. Chulo. Fazer perder a potência sexual: um pensamento ruim, de repente, broxou-o. // v.i. 3. Chulo. Perder a potência sexual, não conseguindo manter o coito: de repente, broxou e não houve mais jeito. 4. Pop. Desanimar; perder o interesse: desta vez ele broxou de vez: não quer saber de mais nada.

O notável "Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa", assinado pelo filólogo de estirpe Antônio Geraldo da Cunha, a exemplo de inúmeros outros dicionários de estudiosos de extração clássica, não registra o verbo em qualquer das grafias. Muitos o fazem, como é o caso de Geraldo da Cunha, em relação ao substantivo de que, provavelmente, deriva o adjetivo utilizado à farta nas principais publicações de hoje: "brocha. sf. 'ant. fecho de metal' XIV; 'prego curto de cabeça larga e chata., etc. Para ele, "brochar" significa, como aparece no verbete, pregar com brocha, pequeno prego, ou, ainda, pintar com brocha, tipo de pincel, sem nenhuma referência ao termo chulo de que se originaria o adjetivo alardeado pelo presidente em plena festa cívica levianamente transformada em comício de campanha.

Já entre dicionários mais 'modernos' (não vai aqui qualquer juízo de valoração), a grafia com CH é defendida. É como aparece, por exemplo, no "Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa", renomada publicação do Instituto Antônio Houaiss. Nele, entre os muitos significados, depara-se no verbete "brochar" com a seguinte definição: [...] 14. int. B tab. perder temporária ou definitivamente a capacidade de ter uma ereção".

Dentre esses, no entanto, como no caso do "Michaelis – Moderno Dicionário da Língua Portuguesa", na bem cuidada edição da editora Melhoramentos, depara-se com o verbete "broxar": v.t.d. broxar. 1. Pintar ou untar com broxa. v.t.d. 2. Pincelar. vint. 3. ch. Mostrar-se incapaz de realizar o ato sexual.

Para o bem ou para o mal (é inacreditável, mesmo vindo de quem vem), a chula, despropositada e machista fala do presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro, autoelogiando-se como "imbroxável", em plena solenidade cujo objetivo era festejar o bicentenário da Independência, o neologismo constitui uma derivação regressiva do verbo "broxar", e sua grafia não sugere qualquer relação com "brochar", com CH.

Nada relevante, contudo, o uso de uma ou outra grafia em face do que entrou para a História do Brasil como um vergonhoso ato de desrespeito à Constituição e de provocação aos filhos do bem desta Pátria Amada a que se destina, imprecisa e vacilante, a afirmação de 200 anos de Independência. Oportuno lembras, por último, as palavras implacáveis de Simone de Beauvoir sobre o assunto: "Ninguém é mais arrogante, violento, agressivo e desdenhoso contra as mulheres, que um homem inseguro de sua própria virilidade".

Viremos a página. Eis que se aproxima o dia da verdadeira libertação.

 

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

O Sequestro da Independência

A poucos dias do 7 de setembro que assinala o Bicentenário da Independência, e mais uma vez descoberto em práticas em nada republicanas (transações imobiliárias que envolvem a compra de 107 imóveis, 51 dos quais pagos em dinheiro vivo) o presidente Jair Bolsonaro dá andamento a uma programação festiva cujo maior objetivo é mesmo vincular a sua imagem a de um líder heroico e destemido que defenderá o país da ameaça comunista que somente a sua mente estreita e vazia é capaz de enxergar. E, claro, o contingente de fanáticos, a exemplo de certos empresários, que sonham com a possibilidade de um golpe e a volta dos militares ao poder.

O mais preocupante, no entanto, é que o país assiste impotente ao sequestro dos símbolos nacionais e à propagação de um discurso ufanista e patriótico que se contrapõe aos verdadeiros anseios populares. Na lógica fascistóide do presidente e de setores das Forças Armadas, com destaque para o golpismo irrequieto do ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, busca-se a todo custo à consolidação do projeto imaginário em que a semiótica das cores, do brasão, da bandeira e do hino, no oportunismo da data festiva, parece criar uma irrealidade na qual um contingente significativo de pessoas acredita como algo palpável   --- e, a concluir pelo que se vê e ouve nas redes sociais, pela qual está disposta a matar ou morrer, como numa reverberação inconsciente do grito que a história oficial registra como marco da Independência do Brasil.

Feitos esses comentários, dedico-me ao objetivo desta coluna.

Chega às livrarias da cidade (não sem significativo atraso), o oportuno e valiosíssimo "O Sequestro da Independência - Uma história da construção do mito do Sete de Setembro", assinado por Carlos Lima Jr., Lilia M. Schwarcz e Lúcia K. Stumpf, em edição extremamente bem cuidada da Companhia Das Letras. Li-o em poucas sentadas, pois que se trata de uma leitura prazerosa, levíssima, em que pese a natureza do tema abordado. É que o livro se propõe, exitosamente, sem incorrer nos procedimentos tradicionais da narrativa historiográfica, enfocar os meios sub-reptícios com os quais se ergueu entre nós a ilusória imagem de um país guiado por homens viris e idealistas, fortemente movidos por um sentimento de amor à pátria e leais aos interesses do povo. Explico.

Transitando levemente pelo território da semiologia, numa perspectiva menos teórica e mais voltada para o grande público, sem jamais descer a uma abordagem elementar do ponto de vista acadêmico, o livro traz um farto material visual que não lhe serve apenas de ilustração, a exemplo do que é comum em publicações do gênero. Aqui as imagens, em sua maioria obras de arte destinadas a compor o acervo iconográfico que serve de amparo às narrativas históricas (ou exploradas com essa intenção), são examinadas enquanto textos produtores de sentidos ideológicos previamente pensados (ou não) e que contribuem para uma interpretação positiva de acontecimentos reais ou forjados com a intenção de construir o imaginário popular em termos de pertencimento, nacionalidade e sentimento pátrio.

Nessa perspectiva teórica, pois, é que os autores do livro elegem como ponto de partida e objeto central das análises, a famigerada tela de Pedro Américo sobre "O Grito do Ipiranga", a partir da qual conduzem a reflexão crítica que serve de esteio a seu belíssimo trabalho. Não é precipitado dizer, assim, que o livro dialoga com o que se define como 'tradução intersemiótica', na linha do que é possível examinar a partir das contribuições de estudiosos importantes, como Walter Benjamin, Ezra Pound, Roman Jakobson, Umberto Eco e Haroldo de Campos.

No caso, a direção escolhida é outra, isto é, a interpretação do texto se dá do signo visual para o verbal, da linguagem estética para a linguagem referencial. Há nisso, em alguma medida, um pouco de Charles Sanders Peirce, de Roland Barthes e, mesmo, de George Didi-Huberman, Emmanuel Alloa e Jacques Rancière. Para o leitor, no entanto, desconhecer essa fundamentação teórica em nada reduz a perfeita compreensão do que é essencial ao livro: a interpretação da imagem a partir do interdito, do que, fugindo ao olhar desatento, constitui a força de sentido, a mensagem muitas vezes desvelada e carregada de motivações de cunho político-ideológico.

Benjamin já nos advertia de que a obra de arte deve ser compreendida em três momentos de sua evolução: a elaboração técnica, a elaboração das formas de tradição e a elaboração das formas de recepção. Mas é Marx, no 18 de Brumário de Luís Bonaparte, quem melhor se presta ao que quero dizer aqui: "Os homens fazem a própria história, mas não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado".

Por último, desculpando-me pela extensão do fragmento destacado, dou voz aos autores deste impagável "O Sequestro da Independência" a fim de ressaltar sua importância a poucos dias do Bicentenário: "... o que Bolsonaro faz de melhor é usar efemérides para travar guerras ideológicas. Isso porque até meados de 2022, além de não anunciar nada de efetivo --- apenas surfou na onda de edifícios já iniciados e fez muito discurso na base do ódio e da polarização da população. Como o tom da celebração é dado apenas pela exaltação do patriotismo vazio, também tem se buscado repetir a celebração de 1972, quando, em tempos de ditadura militar, entrou no Brasil o corpo de Pedro I. Passados cinquenta anos, pretende-se agora "emprestar" o coração do primeiro imperador do Brasil, o qual, em testamento, demandou que esse órgão de seu corpo ficasse depositado na cidade do Porto".    

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

A luz e a escuridão

Desde pelo menos a segunda metade do século XVIII, mais precisamente nos anos que se seguiram a 1780, quando se pode testemunhar o ápice do Iluminismo e do ativismo do que os alemães chamavam de Aufklärung, isto é, a defesa da ciência e racionalidade crítica, contra a religiosidade ingênua, a superstição e os dogmas impostas pelo ideário de diferentes igrejas, pensava-se na política como caminho para a conquista das liberdades individuais e os direitos do cidadão contra o autoritarismo e o abuso do poder.

É espantoso o que se vê no Brasil hoje, pelo menos a concluir pelo protagonismo que a grande imprensa confere ao que se define, de forma vaga e generalizada, como "evangélicos", nas eleições que se avizinham. Na contramão de qualquer lógica, mesmo a de natureza numérica, pois que os evangélicos representam algo em torno dos 31% dos brasileiros ante os 50% dos católicos, é como se o segmento (embora importante e digno da melhor atenção), fosse determinante numa campanha em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva lidera com folga todas as pesquisas de opinião nos últimos sete ou oito meses.

Não se leia no que vai escrito, claro, que o candidato do PT possa, sob qualquer aspecto, descuidar do discurso em relação aos evangélicos, aos quais, é sabido, dedicou, em dois mandatos, o respeito e a atenção de que são merecedores, assim como o são os católicos e os identificados com religiões de matriz africana, os espíritas, os agnósticos e ateus. Não se trata, pois, de traçar um projeto que observe a fé religiosa como algo a ser colocado acima ou abaixo do conjunto de deveres do Estado para com o cidadão.

O que se quer, ou se deveria querer, é que a questão religiosa ocupe na cena da política nacional a dimensão que lhe é devida. Afinal, a sociedade moderna e a teoria crítica no pensamento contemporâneo são herdeiros do Século das Luzes nesse sentido: a razão é o caminho pelo qual o homem busca a sua plenitude, e essa é uma conquista que cabe ao Estado lhe assegurar através de governantes escolhidos pelo povo em eleições livres, transparentes e seguras, a exemplo do que, para o nosso orgulho, tornou-se realidade no Brasil com o voto secreto em urnas eletrônicas.

Quanto à filosofia iluminista em si, no que diz respeito à questão ora explorada no presente texto, com a rapidez e a superficialidade do que é possível nos limites de uma coluna de jornal, valho-me das palavras premonitórias de Voltaire no verbete sobre Deus do seu Dicionário filosófico: "Ano a ano o fanatismo que se espalhou pela Terra recua em suas explorações detestáveis (...) Se a religião já não faz nascer guerras civis, é apenas à filosofia que o devemos; as disputas teológicas começaram a ser vistas da mesma forma que as brigas de João e Maria na feira. Uma usurpação odiosa e ofensiva, fundada por um lado na fraude e por outra na estupidez, está sendo, a cada instante, minada pela razão, que está criando o seu reinado".

Diante do que tem norteado os noticiários brasileiros, ainda quando se tratando dos maiores, a exemplo do jornal Folha de S. Paulo e da rede Globo de televisão (os comentaristas da Globonews, à exceção de Fernando Gabeira, são panfletários nesse sentido), Voltaire haveria de enrubescer seu avantajado nariz.

Em outros países em que são numericamente dominantes os cristãos*, como os Estados Unidos, de Thomas Jefferson a Joe Biden, a determinação iluminista de separar Igreja e Estado é uma premissa inarredável. Imposições igrejeiras, de qualquer matriz, são garantia de tiranos. E tirania, para a Alfklärung ou qualquer vertente do "esclarecimento", é um anátema a ser condenado e combatido.

Acenda-se a luz ou morreremos "de" escuridão.

*Pesquisas recentes apontam equivalência quantitativa entre evangélicos, católicos e ateus nos EUA.

 

 

 

 

 

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Farinha do mesmo saco

Ao sentar-me diante do computador para escrever a coluna desta quinta-feira 18, ocorreu-me lembrar da frase atribuída ao escritor americano Mark Twain: "A História não se repete, mas rima por vezes". É o que concluo ao acompanhar através da imprensa o movimento das Forças Armadas com relação ao 7 de setembro que se avizinha.

No ano em que se comemoram os 200 anos de nossa Independência, mais que nunca era de se esperar um desfile cívico marcado por ações de cunho solene e celebratório, mesmo que o país se encontre na situação difícil em que se encontra, com índices sociais que beiram o inacreditável. Nunca é muito lembrar que existem hoje no Brasil 33 milhões de famintos.

Na contramão dessa expectativa, no entanto, leio nos jornais o que seria impensável num país minimamente respeitoso para com a sua História, tenha sido ela bem ou mal contada na perspectiva do discurso oficial. Seja como for, a data assinala o simbolismo de nossa libertação, pelo menos no que diz respeito aos primeiros vínculos de dependência a outra Nação; no caso, Portugal, a partir do que se convencionou chamar romanticamente de Grito do Ipiranga: "Exército cancela desfile e estará apenas em ato bolsonarista no 7 de setembro no Rio".

Segundo o jornal Folha de S. Paulo, por exemplo, "O anúncio atende aos desejos de Bolsonaro, que enfrentava (frise-se) resistência do Alto Comando do Exército. Além da força terrestre, o presidente já havia determinado a participação da Marinha e da FAB (Força Aérea Brasileira), no ato na orla carioca".

Num trocadilho de quinta, pode-se dizer: 'Uns querem. Outros, não. Mas, no fundo, todos querem.'. Não importam os meios...

Aqui entra a frase atribuída a Twain. Nos manuais de literatura, entende-se por "rima" a repetição de sons iguais ou similares, quer vogais ou consoantes, quer a combinação delas em uma ou mais sílabas, usualmente acentuadas e ocorrendo em intervalos determinados e reconhecíveis", para citar a famosa definição de Babette Deutsch. A metáfora do escritor americano equivale a afirmar, portanto, que a História se não se repete com rigor, ecoa aqui e além, como as sonoridades de um poema, fatos que marcaram o seu desenrolar.

A exemplo do que se vê hoje na perspectiva de um golpe improvável, por força da mobilização da sociedade civil organizada, também em 1964, e nos anos que se seguiram, a oficialidade mostrava-se dividida. É ler os bons autores sobre o período, a exemplo de Elio Gaspari e Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira, para constatar a "rima".

Moniz Bandeira, em livro notável sobre o período, afirma com clareza: "Os militares vinculados ideologicamente à antiga 'Cruzada Democrática' foram os que então se apossaram do poder e, sagrando o putsch como 'Revolução Democrática' ou 'Revolução Redentora', recorreram aos métodos de guerra civil para destruir a oposição e esmagar toda e qualquer forma de resistência".

Na outra ponta, ainda citando Moniz Bandeira, "... os generais Olympio Mourão Filho, Augusto Cézar de Castro Moniz de Aragão e Justino Alves Bastos, entre outros, julgavam que Castelo Branco não enfrentava com a necessária energia os problemas políticos e, como parte do oficialato, também se opunham ao programa econômico e financeiro, de caráter liberal, implementado pelo embaixador Roberto Campos, ministro do Planejamento, e por Octávio Gouveia de Bulhões, ministro da Fazenda, de conformidade com as diretrizes e os interesses de Washington e do FMI".

A juntá-los, como farinha de um mesmo saco --- para além da preguiça histórica e do apego à boquinha, que, também agora, colocam do mesmo lado fundamentalistas do bolsonarismo-raiz e "resistentes" aos arroubos do atual presidente ---, o poder. Entenda-se, com isso, a reeleição de Jair Bolsonaro.

Assim, nos 200 anos da Independência, o 7 de setembro será comemorado com um comício gigantesco em Copacabana, ainda que contra a democracia e o Estado democrático de Direito.

Na literatura, costuma-se dividir a rima quanto à natureza, quanto ao acento, quando à qualidade e quanto à disposição. Na política, não é muito diferente.

Mark Twain tinha razão.  

 

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Um cidadão brasileiro (II)

Como ocorreria a outros tantos intelectuais e artistas, entre 1964 e 1985, período em que durou a ditadura militar, Caetano Veloso não raro seria considerado de esquerda pelos conservadores, e de direita pelos militantes da esquerda. Incompreendido, jamais abriria mão de pensar livremente o país. Como uma personagem saída de um romance de Dostoiévski, acreditou sempre que a beleza haverá de salvar o mundo.

Já no álbum de estreia, de 1967, derramava-se em lirismo na belíssima canção Avarandado, mesmo o país estando no ápice da repressão: "Cada palmeira da estrada/tem uma moça recostada/uma é minha namorada/e essa estrada vai dar no mar//Cada palma enluarada/tem que estar quieta parada/qualquer canção quase nada/vai fazer o sol levantar/vai fazer o sol nascer//Namorando a madrugada/eu e minha namorada/vamos andando na estrada/que vai dar no avarandado do amanhecer/no avarandado do amanhecer".

A beleza, como disse, a salvar o mundo.

A voz doce, irrepreensivelmente afinada, no ritmo de acordes ao mesmo tempo sofisticados e simples, observando o desenho limpo da música, o jeito de cantar de Caetano, doce e calmo, como que anunciava o encontro consagrador com outro baiano que exercera sobre ele reconhecida influência: João Gilberto.

O encontro, aliás, dar-se-ia em agosto de 1971, sob as bênçãos de Fernando Faro, respeitado produtor de rádio e televisão a quem coube programar o momento histórico. Em seu último livro, dedicado a João, Amoroso: Uma biografia de João Gilberto, lançado pouco depois de sua morte, em 4 de outubro de 2020, Zuza Homem de Mello assim descreve o encontro: "Às seis da tarde de um sábado de agosto de 1971, estavam todos reunidos no estúdio das Emissoras Associadas no Sumaré, esperando João para o que seria uma espécie de ensaio para a gravação de domingo, quando Caetano chegaria. Passou-se meia hora, uma hora, uma hora e meia, duas horas, e nada de João. Alguns não aguentaram e desistiram, exceto Augusto de Campos e Pica Pau, que não queriam perder a oportunidade de rever João".

Com atraso, como não seria incomum em se tratando do criador (?) da bossa nova, João, Caetano e Gal acertaram detalhes da gravação, passaram a música e, no domingo, entraram no estúdio para realizar a gravação. Estava selada uma amizade que daria novo brilho à MPB.

Incontornável, é de 1967 a música Tropicália, verdadeiro manifesto do movimento que marcaria o início de profundas transformações na arte brasileira, e cujas raízes, nomeadamente presas ao movimento modernista de 1922, reeditam a antropofagia de Oswald de Andrade.

O nome, inspirado em importante exposição do artista plástico Hélio Oiticica, por si só remete ao que a letra professa, a multiplicidade cultural do Brasil, suas contradições doces ou amargas, sua cordialidade mal compreendida, sua identidade cercada de diferentes vozes, gestos, cores e ritos: "Sobre a cabeça os aviões/sob os meus pés os caminhões/aponta contra os chapadões/meu nariz". A dizer das oscilações de humor do brasileiro, da complexidade de seu caráter indefinível, os versos remetem ao dia a dia do brasileiro ao sabor das injunções de momento: "Domingo é o fino da bossa/segunda-feira está na fossa/terça-feira vai à roça/porém".

À altura de seus 80 anos, Caetano Veloso vem a público com um disco notável, irreverentemente intitulado "Meu Coco", décimo terceiro álbum de uma carreira irretocável do ponto de vista estético. E foi o próprio artista a reconhecer a retomada do tema mítico da miscigenação, afirmando em uma entrevista que "Meu Coco é uma música que rediz algumas coisas que venho dizendo ao longo de décadas". Mas 'redizer', em se tratando de Caetano Veloso, não é repetir. Há no disco uma forma nova de cantar, a exemplo das modulações de voz e falsetes estilizados, pontuando a expressividade rítmica e melódica da música, e da poesia que explode em versos dissonantes cada vez mais trabalhados. Se o tema da mestiçagem constitui o eixo de discussão, ainda um tanto quanto exaltado, a veia crítica pulsa com uma intensidade revigorada: "Somos mulatos híbridos e mamelucos/E muito mais cafuzos do que tudo mais/O português é o negro dentre as eurolínguas/Superamos cãibras, furúnculos, ínguas/Com Naras, Bethânias e Elis/faremos o mundo feliz/Únicos, vários, iguais".

Assumindo-se mais à esquerda, politicamente falando, Caetano Veloso abre a voz com a força de antes, mas o esteio de sua narrativa é muito menos do poeta de Avarandado e mais do de Podres Poderes e de Gente, composição dos anos 1970 que retoma em atos de protesto com renovado entusiasmo: "Gente é pra brilhar/não pra morrer de fome".

Mas falar, no exíguo espaço de uma coluna de jornal sobre a obra de Caetano Veloso, é misto de fascínio e insensatez (pelo que me desculpo), leve-se em consideração tratar-se de um dos mais prolíficos e versáteis artistas do Brasil e do mundo, com uma produção tão vasta e tão diversificada que nem mesmo o espaço da academia, as dissertações de mestrado, as teses de doutorado, os artigos de fôlego, os livros e as conferências de feitio intelectual foram capazes de esgotar. Há muito a dizer e explorar da sua obra e da sua presença inclassificáveis na extensão desses muitos e muitos anos de arte e inteligência de que os brasileiros 'devemos' nos orgulhar.

 

 

 

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Um cidadão brasileiro (I)

Era início da década de 1980. Eu integrava o elenco da peça A Noite Seca, de Geraldo Markan, com direção de Guaracy Rodrigues. Interpretava o Pe. Hipólito, Fernando Piancó o outro. No hall de entrada do Theatro José de Alencar, protestávamos com uma vigília contra a interdição da peça, exatamente no dia de sua estreia.

Enquanto isso, a significativa distância dali, no velho Centro de Convenções, um artista consagrado interrompia o script de seu show importante para ler nossos nomes a um auditório lotado, em plena Ditadura Militar. "Minha solidariedade aos artistas da peça A Noite Seca, impedidos de mostrar sua arte por uma Censura ridícula, burra, uma Censura sacana! Sa-ca-na!"

Seu nome: Caetano Veloso.

Pouco mais de uma década antes, mais precisamente em 1969, este mesmo artista, cujo gesto de respeito e solidariedade para com artistas anônimos dava bem a dimensão do seu caráter e do seu compromisso com a liberdade, após uma apresentação de despedida no Teatro Castro Alves, em Salvador, era obrigado a deixar seu país e partir para o exílio.

Da reclusão, dias antes, retirara inspiração para compor uma de suas obras-primas: "Quando eu me encontrava preso/na cela de uma cadeia/foi que eu vi pela primeira vez/as tais fotografias/em que apareces inteira/Porém não estavas nua/e sim coberta de nuvens".

Jogando com a polissemia do léxico, diria pouco depois: "Eu agora também vou bem, obrigado. Obrigado a ver outras paisagens, senão melhores, pelo menos mais clássicas, e, de qualquer forma, outras".

E, mais adiante, (...) Pela primeira vez eu me sinto num país exterior. (...) Eu atravesso as ruas sem medo, porque eu sei que eles são educados e deixam o caminho livre para eu passar. Mas eu estou aqui, e não tenho nada com isso".

"I'm wandering round and round/Nowhere to go/I'm lonely in London..."

Eu vagueio pela cidade sem destino. Estou sozinho em Londres, diria em letra de música antológica, London, London, na qual expõe sua angústia diante da solidão londrina, ainda que em companhia da mulher Dedé Gadelha e do amigo, também perseguido pelo Regime, Gilberto Gil: "I know no one here to say hello", Eu sei não existir ninguém a quem dizer Alô!

Menino dos olhos da Ditadura perversa, num sublime momento poético de compreensão da dor alheia, Roberto Carlos cantaria em homenagem ao compatriota ausente: "As luzes e o colorido/que você vê agora/ nas ruas por onde anda/na casa onde mora/você olha tudo e nada/lhe faz ficar contente/Você só deseja agora/voltar pra sua gente/Um dia a areia branca/seus pés irão pisar/E vai molhar seus cabelos/a água azul do mar".

O dia chegaria em 1971, quando pôde voltar de vez para o Brasil. No ano seguinte, no mesmo teatro em que se despedira de seu país com um show entre revoltado e tristonho, daria, ao lado de Chico Buarque de Holanda, show memorável para festejar seu reencontro com o povo brasileiro. Agora, contudo, acostumara-se a ser um cidadão do mundo, "Você tem que saber que eu quero é correr mundo/correr perigo/Você não acredita/Eu quero é ir embora/Eu quero dar o fora/E quero que você venha comigo".

Na irreverência do canto, não desmerecia seu povo, sua gente, sua Pátria. Em metáfora, atacava de frente a mesmice, o país acomodado ao estabelecido, de que emerge o conflito poético com a domesticidade imposta pelo regime: "Quando eu chego em casa/nada me consola/Você está sempre aflita/Lágrimas nos olhos de cortar cebola/Você é tão bonita/Você não está entendo nada do que eu digo/Eu quero é tocar fogo neste apartamento/Você não acredita/Traz meu café com suíta/eu tomo/bota a sobremesa/eu como eu como eu como/você".

Poeta imenso, músico habilidoso, cantor e intérprete fora da curva, escritor de livros importantes, cineasta transgressor, animador do pensamento e das ideias, Caetano Emanuel Viana Telles Veloso faz 80 anos. Seu show de aniversário, ao lado dos filhos Moreno, Zeca, Tom, e da irmã Maria Bethânia, mal termina e já entre para a história dos grandes espetáculos da Música Popular Brasileira.

Num tempo de incertezas e escuridão, que alento é sabê-lo um cidadão brasileiro.