sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Sempre Paris

No campo da literatura e de outras artes, há algum tempo, premiações e honrarias deixaram de representar, necessariamente, a qualidade de obras e autores. Muito pelo contrário, carregadas de subjetivações e interesses estranhos à matéria de que tratam, essas distinções mais refletem relações de compadrio e motivações escusas, que critério e rigor sobre a coisa avaliada.
Faço essa introdução, um tanto amarga, dirão, e como a incorrer em contradição, para exaltar dois livros vencedores da 66ª edição do Prêmio Jabuti, 2023, cujo resultado foi divulgado nesta semana: "Sempre Paris, crônica de uma cidade, seus escritores e artistas" (Companhia Das Letras, 2023), de Rosa Freire d'Aguiar, e "Salvar o fogo" (Todavia, 2023), de Itamar Vieira Junior.
Li-os mal saídos da fornada, lá pelo início do ano, e considero merecedores da premiação e do prestígio de seus autores. De Itamar, já se tornou clássico o romance "Torto Arado", agora adaptado para o teatro com o musical a fazer sucesso em São Paulo.
"Salvar o fogo", preservando a mesma pegada do romance de estreia de Itamar Vieira Junior, a denúncia das relações de dominação vigentes no Nordeste brasileiro, ganha formato novo e densidade dramática ao tratar da luta de uma mulher (Luzia do Paraguaçu) contra injustiças impensáveis, estigmatizada entre a população por supostos poderes sobrenaturais. Lavadeira do mosteiro na região, Luzia adota como filho o órfão Moisés, a quem educa sob os rigores de uma religiosidade que extrapola os limites da razão, bem ao gosto dos fundamentalismos de hoje, mas com sabor e poesia. Livro denso, profundo, que transita do épico ao lírico com a leveza e a habilidade de um contador de histórias que já conquistou, por merecimento, posição de destaque entre os ficcionistas da atualidade.
Mas é sobre o livro de Rosa Freire d'Aguiar que gostaria de tecer na coluna de hoje algumas considerações. Misto de jornalismo e crônica de memória, "Sempre Paris" é um relato sensível e atento, para não falar de suas imensas qualidades de linguagem, sobre a temporada da autora na capital francesa dos anos 70 até 1990.
É disso, por exemplo, que trata a parte introdutória do volume, intitulada "Antes que me esqueça", uma narrativa marcada por uma capacidade de observação notável, a que se soma o estilo elegante da escrita de Rosa Freire.
Aos que conhecem Paris, ou se assumem apaixonados pela cultura francesa, o texto (re)conduz com maestria pelas ruas e avenidas, praças, bares, bistrôs e livrarias de uma cidade de fato encantadora, com seus mistérios e seduções, mas acima de tudo com os sortilégios que fazem de Paris a mais desejada das cidades. Que o digam, escritores, pintores, músicos, cantores, atores e intelectuais, políticos, filósofos ou simples "sonhadores" de campos os mais diversos.
De fato, "Paris é uma festa", como aliás a descreveu em livro memorável o escritor Ernest Hemingway (1899-1961). Vai além, volta-se, ressignificando-os, para acontecimentos históricos da conjuntura internacional: o processo de redemocratização na Espanha; os ataques de Israel aos campos de refugiados palestinos, numa prova consistente de que se trata de tentativas de genocídio recorrentes, a exemplo do que se vê nos dias atuais.
Como a dar voz à própria cidade, a partir de seus habitantes ilustres, franceses ou não, a segunda parte do livro de Rosa Freire d'Aguiar alteia-se em conteúdo intelectual. São entrevistas importantes, originais, surpreendentes, densas, com escritores, filósofos etc., gente de envergadura intelectual e artística: Alberto Cavalcante, Conrad Detrez, Cortázar, Ernesto Sabato, Simenon, Françoise Giroud, Simone Veil, Roland Barthes e Raymond Aron (sua última entrevista), entre outros.
Livro para ler e ter ao alcance da mão. Recomendo.  

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

O amor não é necessário

Li, durante a semana, o recém-lançado (e recomendabilíssimo!) "Clarice Lispector, entrevistas", publicado pela Rocco com organização de Claire Williams, da Universidade de Oxford. Sobre o livro escreverei em coluna das próximas semanas, mas o farei transversalmente em alusão a uma pergunta recorrente no conjunto de entrevistas realizadas em diferentes jornais e tevê pela autora de "Perto do coração selvagem": "O que é o amor?".
A pergunta me fez retornar a uma crônica publicada no livro "Do amor e outras crônicas", de minha autoria, que tomo a liberdade de publicar neste espaço do eclético Segunda Opinião. Vamos ao texto.
Durante happy hour, amigos conversamos sobre cinema e um deles levanta a seguinte questão: "Que cena lhe é mais marcante sobre o amor?". Cinéfilo inquieto cito uma cena de "Cinema Paradiso" me emociona muitíssimo todas as vezes que revejo o belo filme de Tornatore. Alguém cita a soberba cena do aeroporto no filme "Casablanca": "... nós sempre teremos Paris". Um outro nos desconcerta ao lembrar o encontro de Dean Stanton e Nastássja Kinski em "Paris Texas". Uma amiga volta à comovente passagem do xaroposo "Love Story", em que Ali McGraw diz para Ryan O`Neal: "Amar é ter jamais de pedir perdão!". Discute-se o perdão, o que é o amor, na esteira do filme dirigido por Arthur Hiller.
Um tanto polemista, considero a fala de Ali McGraw uma ingênua e idealizada compreensão desse sentimento ao mesmo tempo tão simples e tão complexo. Acho que o amor vai mudando no ritmo das mudanças que os tempos nos impõem. O amor que não recebe e não dá o perdão, não é amor. É paixão, fogo de palha, emoção esférica, demasiada febril para ser considerada amor. É algo dionisíaco, é irmã da loucura, como quis Drummond. Mas, afinal, o que é o amor?
O amor é sentimento plano, apolíneo, coisa serena, com pés no chão e olhar para o infinito.
Por isso, na contramão do que está no clássico adolescente dos anos 70, amar é saber dar e pedir perdão. Se não há perdão e a necessidade de que ele exista, amor não é. É paixão, é desejo efêmero, é fogo que arde, ferida de que se cura na brisa mansa da antemanhã.
A Filosofia, desde que se a compreenda como uma interpretação racional da realidade, oferece-nos diferentes conceitos do amor e da paixão. Para Platão, por exemplo, o amor/paixão é uma enfermidade do coração. É o amor Eros, que é desejo, o que leva o amante a cometer desmandos, a querer a maravilha da quase posse do objeto amado: "Quero tê-lo perto, quero protegê-la, quero cuidá-la, pois que é coisa minha!". Daí surge o ciúme delirante, que impede o amor de acontecer, esse "monstro dos olhos verdes" de que nos falou Shakespeare.
Volto ao que conversávamos à mesa do bar, e o debate enche-se de entusiasmo, acalora-se, afloram os exemplos, impõem-se as convicções mais enraizadas da subjetividade de cada um. Deslizamos para o campo da filosofia barata, e nos damos ao gratuito exercício das definições. O que é o perdão? "Perdoar é esquecer", diz alguém, a que outro contesta. Agarra-se a Hannah Arendt: "O perdão não é sinônimo de esquecimento. O perdão é a lembrança". Aplaudo, pois que não precisa do perdão aquilo de que somos capazes de esquecer. O perdão é algo indispensável para aquilo que, permanecendo vivo na memória, cicatriza pela força do amor, pelo saber compreender, pelo desejo da reconciliação. Do contrário, terá sido "beicinho", jogo passional, um tipo de charme ardiloso e vulgar.
E vamos em frente, esses contendores do bom combate, a dar espaço às amenidades, ao anedotário da semana, muito mais propícios para a boa hora, quando os telefonemas das esposas já formalizam a irrecusável convocação.
Não sem antes, já sobre a mesa a "saideira", recordar "Cenas de um casamento" e a antológica fala de Liv Ullmann: "... ninguém nunca me disse o que é o amor. E não tenho certeza se precisamos saber. Mas, se quiser uma descrição detalhada, vá à Bíblia. Lá, Paulo descreve o amor. Se Paulo estiver certo sobre o que é o amor, acho que ninguém o vivencia. Mas em discursos de casamento e outras situações sociais, funciona muito bem. Acho que basta ser gentil àqueles com quem vivemos. Afeto também é bom. Humor, amizade, tolerância. Ter expectativas sensatas. Tendo isso, o amor não é necessário."
Antes de nos despedirmos, pode-se concluir, cito eu a cena inesquecível. Está em Ingmar Bergman.
  

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

A beleza salvará o mundo

A frase é de Dostoiévski e aparece em pelo menos dois romances do escritor russo. Mas o seu simbolismo ganha peso no delicado momento em que o ideário neofascista ganha corpo ao redor do mundo com a vitória da ultradireita nos Estados Unidos.
A trazer alento ao que poetiza o autor de "Os irmãos Karamazov" (1879), estreia nesta quinta-feira 7, nos cinemas do País, "Ainda estou aqui", o aclamado filme de Walter Salles sobre os horrores da ditadura militar no Brasil a partir da destruição de uma família durante os anos de chumbo.
Não bastasse o que traz de belo artisticamente falando, o filme lança luz sobre o que está por trás do festejado avanço da extrema direita após a vitória de Donald Trump e seus assanhados reflexos no Brasil sob o manto do que existe de mais arcaico e perverso em matéria política: falência dos direitos fundamentais do homem, negacionismo ideológico, retrocesso geopolítico, exaltação da tortura e dos torturadores, desprezo pelas mulheres, pela comunidade LGBTQIA+, tentativa de extermínio das comunidades indígenas, liberação de armas e corrupção desenfreada.
Sem esquecer que o filme de Walter Salles reúne condições reais de arrebatar pelo menos um Oscar numa das seguintes categorias: melhor filme internacional (melhor filme em língua estrangeira), melhor diretor (Walter Salles), melhor atriz (Fernanda Torres), ator coadjuvante (Selton Mello), roteiro adaptado (Murilo Hauser e Heitor Lorega) e montagem (Affonso Gonçalves).
"Ainda estou aqui", sabe-se, foi laureado com o prêmio de melhor roteiro em Veneza, além de alardeado pela imprensa italiana como verdadeira obra-prima.
Com roteiro adaptado do livro homônimo de Marcelo Paiva, o filme narra o drama da família do ex-deputado federal Rubens Paiva, assassinado pelo regime militar nos anos 1970. Mas o assassinato de Paiva, pai do escritor Marcelo Paiva, como que serve de pano de fundo para a trágica trajetória de sua família, tendo à frente a viúva Eunice, interpretada por Fernanda Torres.
Numa atitude que lembra grandes heroínas da literatura e do cinema (e tantas mulheres simples do País durante a ditadura militar), Eunice teve de encontrar forças quase inumanas para enfrentar as dificuldades financeiras e emocionais de sua família, e, sobretudo, conseguir o reconhecimento legal de que Rubens Paiva fora brutalmente assassinado pelo governo militar.
Por essas e outras razões, que extrapolam os limites da arte, "Ainda estou aqui" deve ser recebido com entusiasmo também no Brasil. Conforme declarou Walter Salles em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, "O filme é um exercício de reconstrução da história pessoal [de Rubens Paiva] mas também coletiva".
Em boa hora, pois, "Ainda estou aqui" presta-se a mostrar como os regimes autoritários de extrema direita geram sofrimento e dor, quase sempre disfarçados de nacionalistas e de combate ao que, imprecisamente, definem como "comunismo", bem na perspectiva do que se tem visto no Brasil desde 2018.
Como a ratificar a poética afirmação de Fiódor M. Dostoiévski, o filme de Walter Salles constitui oportuno exemplo de que a beleza haverá de salvar o mundo.     
  

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

A morte como exercício poético

"Você me abre seus braços/ e a gente faz um país." Desde ontem, obsessivamente, tão logo soube da morte do poeta Antonio Cicero, ocorrem-me os versos desconcertantes de "Fullgás", poema que seria musicado por sua irmã Marina Lima, para entrar para a história da MPB como um hit incontornável. Não que se trate de versos talhados com os rigores da poesia tradicional, a dita grande poesia, mas pelo que encerram de profundo e simples ao mesmo tempo, numa construção frásica que toca no que existe de fundamental na poesia completa, aquela que salta do hedonismo mais íntimo ("Viva o prazer,/ o som/ o estrondo de uma onda na rebentação.") para alcançar a universalidade em suas nuances de crítica e crença na possibilidade de um mundo melhor.
Antonio Cicero, tanto quanto um Chico Buarque de Hollanda (sem intenções comparativas, por favor!), soube à perfeição unir campos de conhecimento distintos, indo além das classificações preconceituosas e dos reducionismos recorrentes nos meios literários. É que, tanto quanto a poesia e a filosofia, tradicionalmente tratadas como atividades distintas do ponto de vista teórico, o clássico e o popular têm sido vistos como inconciliáveis, quando menos por uma ensaística dominante até bem pouco tempo. Cicero dá demonstrações em contrário.
Poeta de larga formação humanística, quase sempre amparada em bases que remontam à Grécia Antiga, na linha do que professa a "paideia", Antonio Cicero transitou por diferentes esferas do conhecimento intelectual e artístico.
Escreveu sobre filosofia e filosofou, assim como publicou livros de poesia da mais alta qualidade, sem esquecer suas vitoriosas incursões pelo território da crítica literária, do ensaísmo acadêmico (entre eles, o conhecido "O Mundo Desde o Fim", há 15 anos) e de bem-sucedidas investidas no resgate do que fizeram os aedos na Antiguidade: a ligação intrínseca da poesia com a música. Foi além, e revelou-se um declamador de fina sensibilidade.
Participou ativamente da poesia dita marginal, fez parcerias com poetas de extração rigorosamente moderna, a exemplo de Waly Salomão, com quem realizou trabalhos que se tornariam referência para poetas, letristas e compositores das novas gerações. Mas, acima de tudo, escreveu poesia para além dos rótulos e das receitas, obra felizmente levada ao grande público na voz afinada e certeira da irmã Marina Lima.
Nessa perspectiva, pois, é que Antonio Cicero, por toda uma vida e agora quando nos deixou, merece todas as honras, como artista dotado de inclassificável talento, ao lado do que, mais ainda, segundo amigos e admiradores mais íntimos, deve-se registrar como uma marca de caráter: a nobreza das atitudes (de que o desfecho de sua vida é prova inconteste!), a elegância no trato com as pessoas e a correção moral que o distingue entre os grandes nomes da arte brasileira.
Ao tomar a decisão de partir com o que lhe restava de lucidez, impiedosamente comprometida pelos avanços da doença terrível*, Antonio Cicero entra para o rol dos artistas estoicos que preferem o silêncio ao desumano burburinho da demência e da velhice sem dignidade.
A exemplo do gênio da sétima arte, Jean-Luc Godard, que escolheu a mesma Suiça para cenário de sua última cena, Antonio Cicero revela-se ainda maior que a sua reconhecida imensidão.
Como um São Francisco desprovido de fé, pois se disse sempre agnóstico, mas com a beleza e dimensão de um santo ou de um pássaro digno de se guardar, como exaltou em poema célebre, morre para viver a eternidade em sua poesia imortal.  
 *Acometido de Alzheimer, Antonio Cicero, a exemplo de Godard, decidiu pela morte assistida na Suiça, onde o procedimento é reconhecido por lei. Tinha ao seu lado o marido Marcelo, e deixou uma carta em que, serenamente, assinala: "Como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade". Assim o fez.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

De onde nasce a crônica

Mal adentro o elevador e deparo com velho conhecido. Antes mesmo do aperto de mão, entre sorrisos largos, desfere-me a curiosa indagação: "Tenho lido suas crônicas. De onde você tira tanta ideia para escrevê-las?" (sic). Como descesse no andar abaixo, digo-lhe atender a sua curiosidade em texto eventual. E aqui estou.
A crônica nasce do inusitado, do transitório, do que, sendo efêmero, merece o registro do escritor. Não raro as escrevo ao volante, a caminho qualquer, na esteira da academia, na sala de espera do dentista ou enquanto me assumo flâneur pelas ruas da cidade. Esclareço, pois quando digo "as escrevo" refiro-me ao ato de traçá-las na mente, dando-lhe corpo inacabado que resultará concluso na forma escrita, quase sempre sentado diante do computador.
Comumente publicada em jornais ou revistas, e não raro reunida em livro, a crônica nasce de um acontecimento cotidiano, do surpreendente que assume relevância aos olhos do cronista, para ganhar outra dimensão, corporificando-se em linguagem literária híbrida, transitando do puro jornalismo de ocasião para a arte da palavra propriamente dita. Por isso, independentemente do formato e das intenções, assumindo a forma da alegoria, do diálogo, do artigo, da resenha, da confissão, do monólogo ou da conversa entre personagens, a crônica é sempre fiel à sua etimologia: do grego "krónos", tempo, mais annu(m), do latim, ano ou anais.
Não é brasileira, como professam aos quatro cantos, mas, provavelmente, francesa, ainda que tenha ganhado entre nós o condimento que a tornou mais saborosa e mais envolvente. Modernamente, pode-se afirmar, terá surgido no famigerado Journal des Débats, em Paris, por volta de 1800, através da pena de Jean Louis Geoffray.
No Brasil, Machado de Assis, em fins do século 19 e início do século 20, talhou-a com esmero, emprestando-lhe a densidade de que se ressentia e a beleza de um estilo que não mais se confunde com o mero jornalismo, pois que ganha o status de grande literatura e propaga-se através dos tempos.
E viriam Bilac, Lima Barreto, João do Rio, Humberto de Campos, Sérgio Porto, Antonio Maria, Raquel de Queirós, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Ferreira Gullar, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes e tantos e tantos outros, elevando a crônica brasileira a patamares inimagináveis.
Marcada pela subjetividade, quase sempre se reveste de poesia, mistura-se ao conto, ao poema em prosa, adornada pela adjetivação inventiva, alinhando-se à metáfora e à metonímia, sujeita aos caprichos da sensibilidade do escritor e à conveniência da imaginação.
Embora suscetível ao inesperado, à fugacidade da coisa inspiradora, a crônica pode alargar a noção de tempo e de espaço, ir para além do imediato que desencadeou no escritor a ideia do texto, suscitando novas possibilidades de expressão e novos desenhos da forma e do conteúdo, assumindo foros estéticos rigorosamente literários.
Tanto quanto na poesia, no conto, no romance, no roteiro de cinema ou na peça de teatro, a crônica rompe o delicado fio que separa a ficção da realidade, o referencial do conotativo, para deitar-se vitoriosa nas malhas do tecido artístico iventado.
Eis o que é a crônica, de onde ela nasce. Às vezes de um fato qualquer do cotidiano, da emoção estética advinda da cena presenciada, nasce do espanto e da alegria, do quadro na parede, da notícia no rádio, do casal de idosos que se desentende antes de atravessar a rua, do beijo doce dos namorados, da recordação que vem por força do perfume ou da música, da semelhança do nariz e da boca entre a desconhecida e a mulher amada, da saudade que insiste em voltar. Da curiosidade do conhecido com que deparamos ao adentrar o elevador.
  
 
 

terça-feira, 8 de outubro de 2024

A lição de Roberto e outras lições

Dono de um currículo pessoal que o diferencia, como advogado, executivo, empresário do ramo da agricultura e da pecuária, aos 42 anos Roberto Costa Filho vence a eleição para prefeito de Iguatu e faz história pelo exemplo de elegância, coragem e irrestrita correção com que se conduziu (e a seus liderados) durante uma campanha em que tentaram a todo custo desconstruir o inafastável referencial ético por que tomou a decisão de adentrar o mundo político e inaugurar um novo tempo na arte de governar a partir de sua cidade.
Como no verso antológico de Caetano Veloso, é que Narciso acha feio o que não é espelho, e seus adversários não suportaram deparar com um jeito de fazer política que não abre mão da verdade, da retidão e da coragem de perseguir objetivos sem tergiversar caminhos.
Reedita a lição do pai, Carlos Roberto Costa, e no calor da grande conquista, administra emoções, aplaca sentimentos ruins, aponta alternativas de ação contra velhos problemas, conclama adversários a trabalhar pelo desenvolvimento de sua cidade, no árduo intento de reconstruir o que está em ruínas.
Em pouco tempo, é evidente que não será uma unanimidade, mas, como ocorreu ao pai, morto no segundo ano de uma administração aclamada até mesmo por adversários, haverá de ocupar o posto de maior líder político de uma cidade golpeada pelo autoritarismo, pela violência e pelo desrespeito para com os homens de bem.
Nasce, no terreno da vida pública, já enorme, e, do alto de sua dignidade humana, porta com mãos firmes o estandarte da esperança e da confiança no porvir de uma cidade desfigurada pelo descaso, pela omissão e pela inversão de valores no trato da coisa pública.
Poucas vezes, é ponto pacífico, o destino administrativo da terceira e mais importante cidade do estado terá sido confiado a um homem tão exemplarmente preparado para o cargo.
Roberto Filho é profissional de altíssima qualificação técnica, um visionário no bom sentido da palavra, aquele que define o idealista, o ser capaz de nutrir o sonho de tempos melhores para todos, sobremaneira para os menos favorecidos de uma sociedade marcada por inaceitáveis contradições.
Alvo de leviandades inomináveis, objeto do ódio e da sanha, atacado pela covardia da desinformação, soube separar o joio do trigo sem vacilos e titubeios, invariavelmente pautando as estratégias de campanha pelo discernimento, pelo equilíbrio, pela sensatez,  como a dar o exemplo definitivo de que nem tudo está perdido em se tratando da atividade política.
Sua vitória, nos limites estreitos da cidade, é a vitória de uma utopia que se torna realidade, "o não lugar" com que sonhamos num mundo de homens partidos e incapazes de viver em paz.
Como Fênix, o ser mitológico representado por uma ave semelhante a uma águia, de penas avermelhadas e douradas, Iguatu, politicamente, haverá de renascer das cinzas, e, de uma vez por todas, reconquistar o prestígio e a representatividade perdidos ao longo desses muitos anos.
Nesse domingo 6 de outubro de 2024, venceu a lição de Roberto Costa, o pai, e sua administração incontrastável será surpreendentemente concluída.
Iguatu está de volta.
 
 
 
 

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Eis a [velha] questão

A semana que termina marca também o final da mais abjeta campanha política de que se tem notícia. Em São Paulo, mais importante cidade do país, durante debate em que se devia apresentar propostas de governo, discutir problemas da população e apontar alternativas de ação para o novo quadriênio, o que se viu foi um festival de baixarias que culminaram com cadeiradas e rostos ensanguentados.
Em Alagoas, mais precisamente no município de Taguarana, um juiz eleitoral teve de suspender a campanha sob a alegação de que a "agressividade exagerada" tomava rumos trágicos, num cenário em que "o uso de armas de fogo" ocupava o lugar dos cartazes e santinhos das campanhas tradicionais.
O baixo nível das campanhas espalhou-se pelo país inteiro, confundindo os eleitores e mostrando a face deformada do que, em sua verdadeira razão de ser, é a política, a arte ou ciência de governar, de liderar, de apontar caminhos.
Nunca, em tempo algum, se pôde assistir à vulgarização, à leviandade, à deselegância, à desfaçatez em níveis tão elevados, numa inversão de valores que reflete a realidade hodierna de um país submetido à sanha e à insensatez, ambiente propício para o surgimento de aventureiros e salvadores da pátria movidos a ódio e a hipocrisia.
Em Fortaleza, cidade tradicionalmente progressista, corre-se o risco de ter-se um segundo turno com candidatos de extrema direita, afeitos à disseminação de ideias medievais, pautadas num fascismo redivivo que submete uma parte significativa do país ao que existe de mais retrógrado e mais perverso do ponto de vista humano.
Não isentos de responsabilidade em face do que se vê, partidos de esquerda ignoram suas cartilhas e seu ideário com olhos nas vantagens, muitas vezes inconfessáveis, advindas do poder.
Maior e mais importante desses partidos, o PT vira as costas para o povo e entra desavergonhadamente no jogo de conchavos e práticas até ontem condenadas. Pretere quadros históricos em favor de nomes sob qualquer aspecto identificados com seu projeto de governo, antevendo negócios e negociatas, conluios e falcatruas, num descaso assumido para com a história do partido e do seu mais ilustre representante, o atual presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.
Em Iguatu, para mirar um exemplo, tenta-se a custo vender-se gato por lebre, e o antigo veste-se de novo para tentar voltar ao poder sob o manto vermelho em que cuspia até bem pouco tempo, conspurcando a estrela branca que acalentou sonhos, utopias e ideais.
Em um dos sete solilóquios de Hamlet, na peça de mesmo nome, o leitor depara-se com uma das mais profundas reflexões em torno de como agir ou reagir diante do infortúnio: "To be, or not to be, that is the question".
Às vésperas do mais sublime exercício democrático, aquele em que escolhe seus legítimos representantes, como um Hamlet destes tempos sombrios, o eleitor brasileiro se perde em meio ao mar de lama que se descortina à sua frente: "O que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes?".
Ser ou não ser, eis a [velha] questão.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

A política e a politicagem

Fiz oito anos na antevéspera do golpe de Estado de 64. Àquela época, os jornais não circulavam nas cidades do interior, não havia tevê e as notícias chegavam até nós através do rádio. Como morássemos ao lado de Aluísio Filgueiras, velho comunista, num tempo em que ser comunista nada tinha a ver com os rótulos de agora, entusiasta do governo deposto e homem de muita leitura, naturalmente aglutinavam-se nas proximidades de sua casa pequenos agrupamentos de pessoas com comentários sobre os acontecimentos em Brasília e no Rio de Janeiro. O meu hábito de ler, diga-se de passagem, começaria na biblioteca de Aluísio Filgueiras.
Ter oito anos em 1964, mesmo para os mais precoces, como eu, era ignorar qualquer assunto mais sério, como os fatos a que me reporto, en passant, à altura dessas minhas memórias.
Contando com o ingênuo e ostensivo apoio da sociedade brasileira, apreensiva com os rumos que diziam ir tomando o governo esquerdizante de João Goulart, e mediante a promessa de realizar eleições diretas no ano seguinte, os militares tomam o poder em 31 de março. Começava o mais cruel período de nossa História e o silêncio sentencioso da minha geração pelos próximos 21 anos.
Dez dias depois, frustradas as tentativas de resistência liderada no Rio Grande do Sul por Leonel Brizola, o Brasil assistia impotente à publicação do Ato Institucional Número Um e à perversa anulação dos direitos políticos de 102 brasileiros, entre os quais estava Luis Carlos Prestes.
Sobre Prestes, ainda menino, portanto, ouvi de Aluísio Filgueiras Filho, influenciado pela ideias do pai, as referências as mais exaltadas. Falava-nos do 'Cavaleiro da Esperança' com um entusiasmo e uma convicção contagiantes. Confesso que ali, na convivência com esta inteligência notável que era Aluísio Filho, nascia a minha primeira identificação com o ideário socialista, a minha utópica crença na possibilidade de um mundo de iguais, sem exploradores e explorados, numa realidade mais justa e mais humana.
Algum tempo depois, leria embevecido o panfletário O Cavaleiro da Esperança, de Jorge Amado e, já adulto, passaria a ler exaustivamente sobre o socialismo, sobre Guevara, Fidel Castro, Trótski, Lênin e o lendário venezuelano Simón Bolívar, de quem me impactavam as ideias de nações livres, independentes e, com a força poética do seu discurso, a união dos povos da América Latina.
Mas os russos, particularmente, eram os que mais me impressionavam. Na superficialidade própria da idade, tentava a custo vender o pensamento do marxismo entre os companheiros de minha geração, não raro assumindo o lado fantasioso da propaganda ideológica, usando barba longa, como Che, ou a barbicha de Trótski.
A propósito, ocorre-me lembrar uma passagem interessante, que ainda hoje é motivo de galhofa entre os amigos: era Carnaval e, na ingênua pretensão de dar a ver as minhas ideias 'revolucionárias', mesmo em folguedos de carnaval, simplesmente me fantasiei dele, Trótski, deixando a barba bem ao seu estilo. À entrada do clube, carregado de sonhos e cuba libre, deparo com a simpática acolhida do porteiro, Luiz, figura folclórica da cidade, que me achou a cara do Lindomar Castilho, um cantor brega da época. No dia seguinte, claro, ressabiado com a semelhança física indesejada, raspei a barba e decidi ir ao baile fantasiado de mim mesmo.
Já cursando o terceiro, quarto ano de faculdade, fui com amigos assistir a uma palestra de Luis Carlos Prestes, no pátio da faculdade de sociologia da Universidade Federal do Ceará. O Cavaleiro acabara de voltar ao Brasil contemplado com a anistia aos condenados políticos, em ato publicado em 1982. Ao final do evento, concorridíssimo, tive o privilégio de trocar algumas palavras com Prestes, boquiaberto, trêmulo e exultante diante do mito. Ouço ainda suas palavras, carregadas de poesia, de confiança no porvir e de inesperado afeto para com o jovem desconhecido que o abordava no inesperado do inesquecível instante.
Começava ali a militar nos meios estudantis. Simpatizava com o 'Partidão', como era chamado o PCB, e a figura de Prestes, a quem acabara de abraçar como se abraça um ídolo, Hércules-Quasímodo dentro do seu paletó amarfanhado e deselegante.
Mas foi ao PT, fundado três anos antes em São Paulo, que me filiaria pela primeira vez a uma agremiação partidária. Terminada a faculdade e as primeiras especializações, estabelecer-me-ia em Iguatu, seria eleito presidente do PT local e seu primeiro candidato a vereador a ganhar assento.
Viriam os primeiros contratempos, o cair da ficha de que o senso de justiça e correção, a coerência entre o pensar e o fazer, a percepção do que é essencial em face do aparente, essas e outras coisas mais, estão muitas vezes para além dos partidos, das fronteiras meramente ideológicas. Elas fazem parte do recheio interior dos homens, estão acima das cores e das cartilhas, são mais uma questão de sensibilidade e respeito aos valores fundamentais da existência. De noite, todos os gatos são pardos, diz a sabedoria popular.
Hoje, da altura dos meus 68 anos, continuo pensando politicamente mais à esquerda, ainda nutrindo o sonho de um mundo mais justo, mais livre, menos desigual. Da convivência com quadros partidários ditos progressistas, guardo algumas lembranças positivas e muitas desilusões.
De Iguatu, chegam-me as notícias de uma campanha em que antigos companheiros de luta descem à sujeira dos esgotos e das privadas. Antigo companheiro de militância, para ficar num exemplo, vejo o candidato Sá Vilarouca medir os outros com o metro pequeno do seu caráter, e armar ardis inescrupulosos no objetivo inconfessável de alçar voos para os quais se revela despreparado.
Triste fim de um Policarpo Quaresma ao avesso, desprovido de boas intenções e de utopias, cuspindo à direita e à esquerda a sua baba nojenta, como um lagarto peçonhento, matador de si mesmo na maldisfarçada pretensão de ser o que não é. 

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

De poesia e subjetivações

Do poeta e compositor Cicero Braz, num gesto de gentileza que perpassa a grande amizade, vem-me o vídeo curioso: Erasmo Carlos conta um telefonema de Belchior rogando-lhe adiar a gravação da música "Paralelas", para a qual diz ter escrito outro final, já gravado, por aqueles dias, pela cantora Vanusa. Como o disco já estivesse sendo prensado, Erasmo lamenta ser irreversível sua difusão com o texto original.
Curioso e invariavelmente atento às sutilezas de estilo e feeling poético, Braz pede-me uma opinião sobre qual das versões é poeticamente melhor.
Eis a questão.
A primeira versão, gravada por Erasmo Carlos, mais bem trabalhada do ponto de vista poético, no meu entender, é esta: "E as borboletas do que fui/pousam demais/por entre as flores do asfalto/em que tu vais".
A segunda versão, gravada por Vanusa, e que faria maior sucesso, é mais simples, mais direta em seu lirismo ligeiramente derramado: "Como é perversa a juventude/do meu coração/que só entende o que cruel/o que é paixão".
Minha, é mera subjetivação a escolha, pois que em matéria artística nem sempre o rigor acadêmico deve ser tomado como parâmetro ou prova de acerto. A poesia traz em si seus segredos, suas idiossincrasias, também eles sujeitos ao entendimento íntimo, à cumplicidade subjetiva a que se sujeita a emoção estética ou mesmo as limitações do crítico.
As doutrinas em torno do fazer poético constituem um campo de estudo extremamente vasto, e são historicamente associadas à filosofia grega, de que Platão e Aristóteles são as bases incontornáveis. Da mimese ou imitação, como de início se supôs ser o seu caráter, a poesia alcançou outras dimensões em termos axiológicos ou valorativos, passando do dogmático aristotélico para a abstração ética de Horácio, que em sua "Arte Poética" exalta o papel do poeta: deleitar e comover na medida exata e na mesma proporção.
Donald A. Stauffer, em livro clássico sobre a natureza da poesia (The Nature of Poetry, 1962), adverte que "a natureza da poesia é fluida, de forma que as suas leis, à semelhança das leis da Natureza, podem ser deduzidas como princípios genéricos no interior dos quais os poetas se movem facilmente, de acordo com a sua própria índole, e sem nenhum empecilho ou coerção".
Sem entrar no mérito das razões por que Belchior terá decidido mudar os versos finais de uma de suas obras-primas, igualmente bem interpretada por Erasmo Carlos e Vanusa, e desculpando-me por incorrer em inevitável olhar para o campo teórico, vasto e complexo como a própria poesia, evidencio que também ao leitor é dado o direito de escolher de conformidade com sua íntima motivação, seu estado de espírito, suas circunstâncias existenciais, seu repertório, sua sensibilidade estética.
De minha parte, como encontro-me no instante em que escrevo esta crônica semanal, sinto-me mais tocado, mais envolvido e mais cúmplice da poesia em sua primeira versão, cuja força sensorial, estando a meio caminho entre a razão e a emoção, como a transitar de Kant a Hegel, faz escolher a bela imagem das "borboletas do que fui pousam demais por entre as flores do asfalto em que tu vais".
Não é demais lembrar que a relatividade é atributo inerente à poesia, mesmo quando sobre ela nos debruçamos armados com os instrumentos da ciência, na linha do que professa o respeitado teórico Johannes Pfeiffer, de quem tomo, à guisa de conclusão, a irrecusável afirmação: "A poesia não é distração, mas concentração, não substituto da vida, mas iluminação do ser, não claridade do entendimento, mas verdade do sentimento".
Que falta Belchior nos faz.        
 
 

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

A bossa nova e outras bossas

A Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro aprovou na semana que termina um projeto de lei que "torna" a bossa nova patrimônio cultural da cidade. Mera formalização do que já era uma realidade.
Nascida no Rio, onde residiram seus mais legítimos representantes, a bossa nova ganharia o mundo como um estilo musical essencialmente brasileiro, ainda que suas raízes estéticas estejam reconhecidamente ligadas ao jazz americano.
"Bossa" era como se definia um tipo de virtuosismo recorrente entre os sambistas do Rio de Janeiro nos anos 30, mas a expressão bossa nova viria muitos anos depois, mais precisamente em 1958, quando um grupo de rapazes do Rio de Janeiro se apresentou no Grupo Universitário Hebraico Brasileiro tocando e cantando sambas ditos "modernos".
A fim de despertar a curiosidade do público, o estudante Moisés Fuks, organizador do evento, escreveu a giz, na entrada do auditório: "Sylvia Telles e um grupo bossa nova apresentando sambas modernos".
Estava lançada a sorte de um movimento que logo ganharia a simpatia da classe média alta do Rio de Janeiro, segmento social a que pertenciam os grandes nomes do novo jeito de tocar e cantar denominado a partir de então "bossa nova".
Se as bases rítmicas do estilo remontavam ao fim dos anos 40 e inícios dos anos 50, com músicos, cantores e compositores da estatura de Mario Reis e Carmen Miranda, é notório o fato de que o tom mais sincopado e suave de Cyro Monteiro e Geraldo Pereira, a que se somavam as harmonias delicadas de Custódio Mesquita e José Maria de Abreu, apontavam para buscas de inovação condizentes com o que viria ocorrer na virada dos anos 50, com Dick Farney, Lúcio Alves, Luiz Bonfá e, com maior destaque em termos de enquadramento estético, Tom Jobim, Carlos Lyra, João Donato, Johnny Alf, Billy Blanco, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, João Gilberto e Nara Leão, entre outros.
Mas é arriscado dizer a quem se deve atribuir, pois, papel de maior realce autoral do "movimento", muito embora seja recorrente a afirmação de que foi Johnny Alf o primeiro intérprete do que é próprio da bossa nova: um jeito minimalista, confidente, suave, delicado, de tocar e cantar samba.
Não se pode negar, contudo, que foi João Gilberto o mais legítimo, autêntico e típico "bossanovista", a quem se deve a batida inconfundível do violão, o tom intimista da interpretação, o fraseado doce, a afinação rigorosamente trabalhada que fariam dele o mais prestigiado artista brasileiro na Europa e nos Estados Unidos.
De perfil psicológico complicado e profundamente contraditório, beirando um exotismo doentio e arrogante, capaz de excentricidades inacreditáveis, João Gilberto é mesmo "a cara" da bossa nova. Não é muito dizer, portanto, que ele, Tom Jobim e Vinicius de Moraes compõem a santa trindade do que, agora por força de lei, tornou-se patrimônio artístico e cultural da cidade do Rio de Janeiro.
Por último, em observação aos limites de espaço da coluna, urge ressaltar que bossa nova é uma expressão de amplo alcance estético, dentro de cuja classificação é possível se fazerem presentes outras tendências, umas mais, outras menos, identificadas com a genealogia de um estilo invariavelmente marcado pelo fraseado natural e sem afetação ou teatralidade à maneira de Bing Crosby. 





quinta-feira, 29 de agosto de 2024

À mesa de um restaurante

São de Chico Buarque os versos sublimes: "Oh pedaço de mim/Oh metade arrancada de mim/Leva o teu olhar/Que a saudade é o pior tormento/É pior que o esquecimento/É pior do que se entrevar//Oh pedaço de mim/Oh metade exilada de mim/Leva os teus sinais/Que a saudade dói como um barco/Que aos poucos descreve um arco/E evita atracar no cais".

Dia desses, num restaurante, estando próximo à mesa em que conversava um casal, ouço a frase impiedosa: "Ela gosta de sofrer, se não já tinha esquecido esse homem." Entre invasivo e inoportuno, falei com meus botões: "Aí está alguém que nunca sofreu por amor. É isso. Há dores que precisam ser curtidas, do contrário jamais desaparecerão.

A dor de um amor que termina é um desses casos. É como a dor das grandes perdas, como a dor pela morte do amigo querido, do parente próximo, é como o aperto no peito quando a cadeira de balanço --- vazia --- lembra o pai que se foi.

Rosa Monteiro, citando o escritor Alejandro Gándara, diz, em "A louca da casa": "Amar apaixonadamente uma pessoa sem ser correspondido é que nem estar num barco e enjoar: você pensa que vai morrer, mas nos outros só provoca risadas."

E, no entanto, a dor que se sente é insuportável.

Todo fim de relacionamento, sobretudo daqueles que tiveram vida longa, é desconcertante. E não adianta insistir dizendo que "foi melhor assim", que "isso passa e logo vai aparecer alguém", que "o importante é amizade que ficou" etc., palavras e expressões que nada dizem para quem desaba abismo abaixo naquele instante.

Não há separação tão equilibrada que atenda à vontade dos dois. Um lado vai sair machucado, invariavelmente. E só quem já passou por uma situação assim é capaz de entender a extensão e a profundidade dessa dor.

A propósito, sobre a dor da perda, li certa vez uma crônica de Nelson Rodrigues que é mesmo uma pérola. Está em "O óbvio ululante", que tomo agora nas mãos. Nelson recebe o convite de um amigo para um almoço. Entre risadas, marcam o encontro para o dia seguinte. Ao meio-dia, estavam num restaurante. É aí que Nelson percebe que o amigo marcara o almoço como um pretexto para que o visse chorar, dilacerado de saudade do pai, que havia morrido. "Éramos amigos e fundamos naquela mesa a nossa solidão (a perfeita solidão há de ter pelo menos a presença numerosa de um amigo real!)".

O amigo lhe abria o coração: "A morte de meu pai... Nunca me recuperei." Nelson confessa ter sentido vontade de pedir-lhe: "Nem se recupere, nunca, nunca. Eis a nossa degradação, sofrer menos, menos, até esquecer".

As palavras não valem quando se afoga na dor das grandes perdas. A companhia silenciosa, a mão sobre o ombro, o afago sincero, valem muito. As palavras, não. Ainda que nascidas das melhores intenções, não valem. Toda grande perda vem acompanhada da pior das sentenças: "Nunca mais!" E é em nome dessa sentença que é preciso curtir a dor, que só o tempo será capaz de curar.

Também de Nelson Rodrigues é a sábia afirmação: "Os psiquiatras e os psicanalistas deviam-se incumbir dos que esquecem fácil." E lembra que estamos tão esquecidos de sofrer, que a dor nos parece, e cada vez mais, uma doença, quase uma loucura.

"Tão curto o amor e tão longo o esquecimento", ecoa o verso de Neruda.

Vindas da mesa ao lado, no cair daquela tarde, as palavras que me chegam aos ouvidos me fazem recordar o poeta chileno.

E como ignoram o que é perder alguém que se ama...

 

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Quase noite em Copacabana

A nossa verdadeira nacionalidade é a humanidade, são palavras de H. G. Wells, em "Uma breve história do mundo", se não me trai a memória. Trago-as comigo ao sentar diante do computador para escrever a coluna do jornal.
Era janeiro de 1996, quase noite em Copacabana. Tomávamos um chope, meu irmão Deusdedith, Sulene, minha esposa à época, e eu, num bar da Av. Atlântica, no Rio de Janeiro. De repente, em meio à agitação, visualizo, a coisa de cinco ou seis metros, em pé, na esquina, o antropólogo Darcy Ribeiro, uma das figuras humanas que mais admirei entre os grandes brasileiros.
Levanto-me e, meio que não querendo nada, aproximo-me desse homem de sobrancelhas espessas tal qual as cerdas bravas de um javali, como diria Nelson Rodrigues. Darcy alforriava o olhar pela imensidão do mar de Copacabana, deslumbrado como um turista que visitasse o Rio pela primeira vez.
Ao perceber a minha aproximação, com a elegância de um doge veneziano, Darcy Ribeiro cumprimenta-me, distinta, gentil e simpaticamente. Breve aperto de mão e dirige-me a palavra como a um velho conhecido. Pergunta-me de onde sou, se já estivera na cidade, se estou gostando…
Darcy Ribeiro era apaixonado pelo Rio, pude concluir da verdadeira declaração de amor que fez à Cidade Maravilhosa, tingindo de poesia a noite anunciada, mal trocamos as primeiras palavras.
Sabendo-me cearense, alude à beleza de nossas praias e cita, de cor, um longo trecho de Iracema, aquele em que o romancista exalta os "Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba. Verdes mares que brilhais como líquidas esmeraldas aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros. Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas." 
Pelos em festa, abraçamo-nos como dois amigos. E jamais nos havíamos visto antes.
O entusiasmo com que Darcy "recita" esses trechos do romance de José de Alencar impressiona-me, a expressão medida, a voz e os gestos em rigorosa harmonia. Só horas depois me ocorre lembrar que, tratando-se de um romance indianista e considerado o exemplar mais bem escrito da prosa de ficção romântica brasileira, e sendo o antropólogo um amante da causa indígena, a vibração do meu interlocutor era coisa natural, nascida da mais elevada consciência da verdadeira nacionalidade.
Darcy amava o Rio, dizia eu, há pouco, embora tenha nascido em Minas Gerais. Aliás, o autor do romance "Maíra" não era mineiro ou carioca. Era uma coisa e outra, mais que isso, Darcy Ribeiro era paulista, alagoano, cearense… Darcy Ribeiro era um País, um Continente.
Não me ocorre lembrar de outro brasileiro que tenha amado mais o Brasil, a que dedicou a força prodigiosa de sua inteligência e do seu trabalho. Vou mais longe: o autor de "O dilema brasileiro" e "Os índios e a civilização" carregava dentro de si uma nação pungente e vibrante. Um território sem fronteiras.
O nacionalismo de Darcy Ribeiro encerrava continentalidade. A América Latina era a sua Pátria e a sua paixão, a sua razão de viver.
Ao cabo de uns quinze, vinte minutos, Darcy estende-me a mão num gesto de despedida, não sem antes reafirmar seu carinho pelo Ceará. Há brilho nos seus olhos e firmeza na sua voz ligeiramente rouca, como se a entoar uma canção, de tão doce e terna. Havia em Darcy Ribeiro um tipo de encanto, de luminosidade.
Em Porto Alegre, algum tempo depois, vejo numa livraria o último livro que escreveu, "O povo brasileiro", bela interpretação de nossas origens, de nossa fundação e do cruzamento de raças que fez de nós um povo diferente. No hotel, li-o quase por inteiro numa noite, maravilhado.
Era assim Darcy Ribeiro. Seus textos traziam o traço forte e inconfundível dos escritores notáveis, a grandeza de um gigante, de um homem limpo, de um ser absolutamente iluminado.


quarta-feira, 14 de agosto de 2024

De fatos e memórias

Vez e outra, da pena hábil de Paulo Elpídio, leio os belos textos de memórias, vazados no estilo elegante e delicadamente poético com que ressignifica momentos de sua trajetória mundo afora. Diferentemente do autobiográfico, o texto memorialístico resulta da confluência do registro realista com o voo da subjetivação, não raro permitindo ao escritor, por isso mesmo, dar asas à imaginação.

É que recordar é trazer de volta ao coração, e os fatos trazidos cobrem-se do matiz saudosista que dá gosto e perfume à coisa vivida. Assopra-se a lembrança, afastando-se da cena guardada a poeira com que se deixou cobrir pelo passar do tempo. Esta é a razão por que, no mais das vezes, o texto autobiográfico ressente-se da literariedade, enquanto as memórias ganham a beleza da arte, porque predomina-lhe a função poética da linguagem em detrimento da referencial. Ocorre-me reviver, assim, no instante em que escrevo, na linha do que faz exemplarmente o amigo, algumas dessas recordações. E volta-me o tempo perdido, como a um Proust provinciano, vesgo e melancólico.

Montmartre é um dos bairros mais interessantes de Paris. Vejo-o de perto, ainda que da distância desses muitos anos.

No alto da colina, agiganta-se a belíssima Igreja Sacré-Coeur, à qual se chega enfrentando-se centenas de degraus ou tomando-se o lúdico bondinho que leva dos jardins ao adro da basílica.

Construída desde 1876, a igreja é uma homenagem dos franceses ao Sagrado Coração de Jesus, e consta que foi erigida em gratidão pelo fim da Guerra Franco-Prussiana, deflagrada oito anos antes. O certo é que esta, que é uma das mais visitadas atrações turísticas de Paris, é realmente bela, e adentrar seu interior é uma experiência mágica, incomunicável, sobretudo à noite, horário em que C., a socióloga Zaira Bueno, nossa anfitriã, seu filho e artista plástico Batista e eu, chegamos ao local.

Decorrido um par de horas, pouco mais ou menos, ainda fizemos fotos da plataforma da colina, de cujo alto vislumbra-se uma poética paisagem da noite parisiense. Perto dali, está o famoso Moulin Rouge e, nos arredores, um sem-número de casas noturnas dedicadas ao turismo sexual e imortalizadas por Toulouse-Lautrec e Edgar Degas.

Ao escrever estas memórias, chego a lembrar com uma saudade imensa dos pequenos detalhes, como a expressão facial de C. (mulher sempre além do seu tempo e pouco afeita a escandalizar-se com o que quer que fosse), a mão à boca, um sorriso entre tímido e assustado diante de uma vitrine em que se veem os mais inimagináveis instrumentos eróticos. E caímos todos numa sonora gargalhada, que, estou convicto, por um instante chama muito mais a atenção dos muitos turistas que ali se encontravam que o arsenal de chicotes, mulheres infláveis, pênis e vaginas espalhados por trás da vitrine.

Antes de visitarmos o Moulin Rouge, contudo, percorremos as ruas de Montmartre, eu emocionadíssimo por lembrar que ali estiveram um dia Théodore Géricault, Camile Corot e, mais tarde, alguns dos meus pintores preferidos, como Amedeo Modigliane, embora morasse ele em Montparnasse, um bairro também marcado pela presença de grandes artistas em seu tempo, que eu só visitaria alguns anos depois, noutra viagem à França.

Ali estive nos pequenos museus existentes, nos espaços culturais e, com particular entusiasmo, no Espace Montmartre Salvador Dalí, onde se veem algo em torno de duas centenas de trabalhos do pintor espanhol. Já à época a pintura me despertava interesse quase tanto quanto a literatura.

Fim de noite, exaustos das muitas caminhadas, voltamos para o apartamento de Zaira e ficamos por um longo tempo conversando sobre a viagem, até que, vencidos pelo sono, C. e eu nos entregássemos aos sonhos da memorável madrugada. Era fevereiro de 1978.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Greta Garbo, de Edmilson Caminha

De Brasília, por correio, chega-me às mãos o recém-lançado "Greta Garbo, quem diria, não morreu em Araxá", de Edmilson Caminha. O título é aproveitado de uma crônica do livro em que o autor, com apuro de linguagem e irretocável domínio da carpintaria textual, discorre sobre crônica de Carlos Drummond de Andrade, escrita por volta de 1954, na qual o escritor mineiro narra uma improvável visita da atriz Greta Garbo a Minas Gerais.

A crônica, à época, causou o maior frisson entre admiradores de Garbo, cuja beleza, para além dos padrões clássicos, Drummond descreve de forma hilariante: "Tem um corpo de tábua de passar roupa, depositado sobre dois pés enormes. [...] Um corpo que não recomenda nem pelo brilho dos olhos nem pela correção do nariz nem pela exiguidade da boca. Criatura seca, pobre de curvas, rica de ângulos, e seguramente sem nenhum desses predicados que caracterizam e dão preço às nossas belezas dos trópicos. Beleza, talvez, para os esquimós, se o belo para o esquimó não fosse uma autêntica esquimó, e não uma cavalheira comprida e trágica, mórbida, antipática e artificial [...]".

A atriz sueca, sabe-se, era objeto de desejo de nove entre dez cinéfilos, com atuações que a imortalizaram em pelo menos três ou quatro filmes inesquecíveis, a exemplo de Mata Hari, Grande Hotel, Ninotchka e, sobretudo, o soberbo Rainha Cristina, de cuja narrativa destaquei em crônica uma cena que considero das mais belas do cinema.

Desejada e belíssima, em que pese a ironia de Drummond, Greta encerraria sua carreira nos píncaros da glória, aos 36 anos, entregando-se a uma solidão esquizoide até morrer, em Nova York, em 1990. Nunca esteve no Brasil, e a crônica de Drummond, claro, não passava de uma irreverência do itabirano, afeito a estripulias pouco condizentes com o seu perfil psicológico tradicionalmente traçado pelos historiadores da literatura brasileira. Imprevisível, surpreendente como escritor e como homem, Carlos Drummond de Andrade esclareceria o ardil uma semana depois: "Eu menti". Apenas pregara uma peça nos leitores, como a elevar a crônica, gênero literário caracteristicamente adequado para as amenidades do cotidiano, ao status de grande literatura, aquela capaz de criar irrealidades como se realidades fossem.

Realizando um tipo de "mise en abyme"*, Edmilson Caminha curva-se sobre a crônica de Drummond para erigir, a partir dela, uma notável experiência de cronista, fazendo-o, como disse, da altura de um escritor absoluto, inventivo, capaz de extrair do hipotexto (o texto orginal) a matéria-prima de que lança mão para fazer metaliteratura de altíssima qualidade.

Profundo conhecedor da obra de Carlos Drummond de Andrade, de cuja reedição completa, pela Record, é o principal responsável, Caminha desfecha sua notável crônica com uma carta, da própria Greta Garbo, para Drummond, reportando-se ao fato.

A descoberta da existência do documento, por si só, vale um livro, já não fosse a escrita atribuída a atriz sueca uma página de valor literário inquestionável. Com a palavra o cronista: "Duas folhas de papel fino, cor-de-rosa, já manchadas pelo tempo, datilografadas sem rasuras, em que o destinatário como de costume anotou com sua letra pequena, acima do cabeçalho: Greta Garbo, s/r (sem resposta?)".

Consciente de como se deve desfechar uma boa crônica, arrematando-a com exatidão, vigor e poesia, Edmilson Caminha faz do elemento periférico, do componente marginal, o eixo artístico central de sua bela crônica, como se a nos dar uma aula sobre uma forma narrativa ao mesmo tempo simples e desafiadora. Promete manter em anonimato o nome da bibliotecária itabirana que lhe confiou a leitura da carta, bem como (pasmem!) tirar-lhe cópia para publicação: "Assim o farei", diz ele, como a tornar pública sua lealdade, "ao menos pelos próximos 25 anos, a exemplo do segredo guardado por Drummond..."

E nos dá a ler a missiva preciosa.

*Narrativa em abismo, termo usado pelo escritor francês André Gide para falar sobre as narrativas que contêm outras narrativas dentro de si. Consiste num processo de reflexividade literária, de duplicação especular.

  

terça-feira, 30 de julho de 2024

Bambino a Roma: As memórias literárias de Chico Buarque de Hollanda

Na capa, sob o título do livro, está anunciado: "Ficção". Nada mais enganoso, uma vez que o recém-lançado "Bambino a Roma" (Companhia Das Letras, 2004), de Chico Buarque de Hollanda, é, antes de qualquer outra coisa, um livro de memórias, e extremamente bem construído do ponto de vista narrativo.
Li-o em poucas horas, totalmente submetido à leveza do estilo e à carpintaria de linguagem irretocável. Mas, por que afirmo tratar-se de um livro de memórias (nunca uma autobiografia), o leitor haverá de querer saber. Tentarei fazê-lo, nos limites de uma coluna de jornal e sem a pretensão de emprestar ao texto ares acadêmicos.
Desde o século XIX,* quando o vocábulo foi utilizado para definir um gênero literário, sabe-se que "memórias" ou "autobiografia" é todo e qualquer texto que tem como figura central o próprio autor. Há, no entanto, uma nítida diferença entre os dois tipos de escrita, ainda que muitas vezes confundidas mesmo em trabalhos de cunho acadêmico ou em verbetes de dicionário.
Enquanto a autobiografia tende a estar presa a fatos mais biográficos, sendo por isso mesmo mais objetiva e isenta de subjetivações, pretensamente completa no registro do que diz respeito à vida do narrador, as memórias representam um tipo de extravasamento do "eu", não raro edulcorado pelo estado poético que toma conta do escritor durante o resgate memorialístico de acontecimentos passados.
Assim, não se pode querer das memórias o mesmo rigor historiográfico, a mesma precisão no relato dos fatos vividos pelo autor, ainda que tal isenção jamais seja obtida por completo, quer por esquecimento, às vezes intencional, quer por inevitável tendência a se aumentar ou minimizar passagens da vida do autor. Parece indiscutível, no entanto, que as memórias se prestam mais adequadamente para as abstrações emotivas, para as incursões conscientes no terreno da poesia e do ornamento de linguagem.
As memórias "conversam" intimamente com a literatura enquanto arte da palavra, a autobiografia nem sempre. As memórias tendem a ser literatura, quase invariavelmente, a autobiografia não, ainda que o texto venha a merecer um tratamento de linguagem que resulte em estilo agradável e sedutor. Isso ainda não será arte literária.
As memórias, pois, a exemplo do que se vê no livro de Chico Buarque de Hollanda, "Bambino a Roma", permitem ao autor experiências narrativas mais ousadas, permeadas de obliteramentos e uso motivado de procedimentos pictóricos na construção do texto, o que, fatalmente, confere às recordações um perfume romanesco.
Esta, quero crer, a razão da palavra "ficção" aparecer na perigrafia da obra recém-lançada, como a advertir o leitor de que, embora plasmados na vida do autor, a narrativa e o estilo apresentam deformações intencionais, acréscimos, omissões, ajustes e edulcorações que visam a tornar o texto, antes de qualquer outra coisa, um objeto estético, destinado ao desfrute dos amantes da literatura.
Há, assim, no belo "Bambino a Roma", passagens e passagens que não se pode dizer factuais, mas factíveis, como no capítulo em que o narrador relata os abusos sexuais a que foi submetido por um professor de nome Welsh: "Só acho uma lástima que, a essa altura, mister Welsh com certeza terá morrido, perdendo a chance de ler seu nome no livro de um autor brasileiro em cuja bunda lisa de menino ele gostava de passar a mão".
Se real ou fictício o fato narrado, em tom descontraído, diga-se em tempo, como a superar pelo efeito catártico o trauma advindo de tal experiência, na perspectiva do leitor isso pouco importará. Ficção ou realidade, o que sobressai é a forma como o escritor constrói a narrativa, como elabora o enunciado a partir do manuseio competente da linguagem, como, no plano da expressão, soube fazer de suas memórias uma obra de arte.
Ficção a partir da memória, como afirma o editor Luiz Schwarcz, ou memórias com requintes de alta literatura? Fico com a segunda alternativa: "Bambino a Roma", de Chico Buarque de Hollanda, é demonstração definitiva de que o maior compositor brasileiro é, também, um dos nossos maiores escritores da atualidade.   
*O gênero, sem o rigor de classificação a que me refiro, terá surgido muito antes, supostamente durante os primeiros anos do Cristianismo. Nessa perspectiva, "Confissões", de Santo Agostinho, escrito no ano 400, será um exemplo clássico de Autobiografia.  
 

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Bambino a Roma: Memórias literárias de Chico Buarque de Hollanda
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quinta-feira, 25 de julho de 2024

A forma doce e terna de dar e receber amor

Pesquisa divulgada recentemente aponta: O brasileiro está se casando mais. Curioso: O outro resultado da pesquisa, infelizmente, desaponta: O brasileiro está se separando mais. O número de separações legais supera hoje todas as estatísticas. Pena. Se o casamento é uma instituição falida, como querem alguns (e as pesquisas parecem indicar essa tendência), por que tantos homens e tantas mulheres ainda buscam na vida a dois o que definem como felicidade? O que ainda leva as pessoas a tentar viver juntas, dividir camas e lençóis, como se o que chamam de felicidade fosse, necessariamente, um tipo de cumplicidade?

Levantamentos indicam que é cada vez maior o contingente de pessoas que moram sós --- e conseguem estar de bem com a vida. Nos supermercados e afins, cresce a oferta de produtos para solteiros, o que facilita o cotidiano daqueles em cuja mesa um só talher é bastante. Mas, a pesquisa quantifica, aumenta o número daqueles que acreditam na utopia do improvável, "até que a morte os separe".

Não é sem razão que o tema do amor frustrado povoa o imaginário das pessoas, notadamente dos artistas. O cancioneiro popular é pródigo em cantar essa dor, quase sempre insuportável. "A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida", dizia Vinicius de Moraes, ele mesmo exemplo clássico de amores desfeitos e buscas incansáveis. Consta que casou nove vezes, poeta das paixões, como se tornaria conhecido.

Há mesmo, entre os grandes compositores, quem parece ter se especializado em cantar o sofrimento de quem perde o objeto amado, e não preciso falar aqui de Lupicínio, que seria um tipo de redundância. É do próprio Vinicius, é de Chico Buarque (perfeição!), de Roberto Carlos, de Dolores Duran, de Evaldo e Jair Amorim, de Cartola, de Herivelto Martins, para citar apenas alguns emblemáticos da canção brasileira, que tomaram nas mãos a missão de eternizar as desilusões e insucessos do relacionamento e a amargura que advém disso.

Na literatura, é inimaginável a quantidade de livros, bons ou ruins, que exploram o tema, não raro grandes clássicos da poesia e da prosa de ficção. No cinema, então, essa dura experiência humana está registrada em cenas inesquecíveis. Quem haverá de esquecer "Casablanca" e a mais bela fala de amor de que se tem notícia: "Nós sempre teremos Paris".

A propósito, na busca de um "mote" para a crônica de hoje, larguei os dados da pesquisa e fui à estante ao encontro de algo que fizesse contraponto, que ilustrasse o eixo discursivo do que pretendia escrever. Caiu-me nas mãos esta pérola de Dalton Trevisam: "Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa da esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano,a imagem de relance no espelho.

Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, e até o canário ficou mudo. Para não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles iam embora e eu ficava só, sem o perdão de sua presença e todas as aflições do dia, como última luz na varanda.

E comecei a sentir falta das pequenas brigas por causa do tempero da salada --- meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcharam. Não tenho botão na camisa, calço meia furada. Que fim levou o saca-rolhas? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor".

Machista, afeito a exaltar o exercício da domesticidade? Talvez sim, talvez não. Ponto de vista. Quem disse que fazer certas coisas atribuídas à Senhora é desmerecê-la, ignorar que está em igualdade de condições? Algum dia, em algum lugar, haverá mulheres a sentir falta do homem para afastar o móvel, repor a cortina, trocar o pneu, desfazer o varal... Quem sabe fazer a farofa com torresmo que só ele faz.

Não são papeis que definem o lugar de fala, nem a vocação para fazer bem o que há de ser feito, tampouco o nível de independência, a igualdade de direitos, o respeito e consideração recíprocos. O que diz da correlação de forças no casamento, no namoro, na convivência a dois, são os pequenos gestos, a forma de tratar e reconhecer direitos e deveres (se existem deveres no amor). O politicamente correto, o que dá a dimensão do verdadeiro encontro, a medida da bela cumplicidade, não são discursos e estandartes, mas a forma doce e terna de dar e receber amor.  

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Sem açucar, sem afeto

A minha coluna da semana passada, a propósito da obra de Chico Buarque de Hollanda, teve boa receptividade. Entre e-mails e mensagens pelo "zap", foram muitos os comentários, mas gostaria de destacar um deles, que me pareceu particularmente relevante: é da psicanalista Maria José, a queridíssima amiga Mazé, cujo texto, vazado numa linguagem elegante e expressiva, discorre sobre o "eu feminino" na poesia de Chico Buarque com rara sensibilidade.

Na contramão do que um certo feminismo tem feito, para ressaltar o equívoco que é tachar de machistas canções importantes no conjunto da obra do autor de "Com açúcar, com afeto", objeto de exame da coluna de mesmo título, a leitora evidencia a beleza poética da canção, o real sentido do seu conteúdo e a importância do que diz sobre as relações amorosas entre homem e mulher no contexto de uma sociedade marcada por severas contradições.

Ao agradecer o privilégio de tê-la como leitora, ocorre-me a motivação de voltar ao assunto para tecer hoje mais algumas considerações. Começo por destacar que existem inúmeros trabalhos de corte acadêmico sobre a presença da mulher na música popular brasileira, dentre os quais, com alguma dose de subjetivação, tomo a liberdade de indicar o belíssimo estudo "O eu feminino na canção brasileira: desenvolvimento cultural entre 1901 e 1985", de André Simões.

Nascido de sua tese de doutorado para a PUC-SP, o texto de Simões é fundamental para evitar equívocos de interpretação, juízos apressados, inconsistências argumentativas, sobre uma obra absolutamente correta nos planos do conteúdo e da forma. Sem pruridos inoportunos ou deslizes de natureza conceitual, o trabalho serve para tornar evidente o que há muito tenho por convicção: embora calcadas o mais das vezes em situações de aparente dependência da mulher em relação ao homem, o cancionista Chico Buarque de Hollanda é sutil aqui, irônico acolá, ardiloso ou intencionalmente ferino no fraseado de suas composições, mas nunca indiferente ao que pode advir de sua visada poética como reflexão em torno do que, na falta de melhor expressão, pode-se delimitar como a questão feminina.

Em certa medida, pois, há nas mulheres de Chico Buarque um não sei quê de machadiano, e muitas delas trazem no corpo o perfume de Capitu, a mesma dissimulação que as faz irresistivelmente sedutoras, capciosas, "dominantes enquanto dominadas", que me permitam o que há de paradoxal na afirmação e de incorreto politicamente falando.

Para se ter uma ideia do que fez Chico Buarque na perspectiva do eu lírico feminino, o quanto o tema o persegue como poeta, romancista e dramaturgo, destaco aqui algo próximo de cinquenta canções, a maior parte delas dramáticas, ou seja, canções compostas para peças de teatro ou cinema: "Noite dos mascarados", "Soneto", "Ana de Amsterdam", "Bárbara", "Cala a boca Bárbara", "Não existe pecado ao sul do Equador", "Tatuagem", "Tira as mãos de mim", "Joana Francesa", "Bem-querer", "Mambordel", "O que será", "Tira as mãos de mim", "À flor da pele", "Folhetim", "O meu amor", "Teresinha", "Ai se eles me pegam agora", "Uma canção desnaturada", "Não sonho mais", "Sob medida", "Qualquer amor", "A história de Lily Braun", "Meu namorado", "Mil perdões", "A violeira", "Las muchachas de Copacabana", "Palavra de mulher", "Sentimental", "Tango de Nancy", "Anos dourados", "Abandono", "Sol e lua", "A mais bonita", "Lábia", "Veneta", "Fora de hora", "Sem fantasia" e as não dramáticas "Com açúcar com afeto", Atrás da porta", "Olhos nos olhos", "Sem açúcar", "O meu guri" e "Se eu soubesse".

Por último, como observa André Simões em seu trabalho (o que reproduz no livro "Chico Buarque em 80 canções", Editora 34, 2024), há casos em que o ponto de vista feminino alterna com o ponto de vista masculino, a exemplo do que se pode ver na incontornável "Sem fantasia", composta para a peça "Roda Viva" (1968), forjada na mesma pegada homérica da mulher que acolhe o homem "maltrapilho e maltratado" de volta ao lar.

Imagine, leitor ou leitora, o que seria da música popular brasileira sem essas verdadeiras pérolas. Ufa!

 

  

 

 

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Com açucar, com afeto

Durante palestra no Cine São Luiz, dentro da programação em homenagem aos oitenta anos de Chico Buarque de Hollanda, evento organizado pela Academia Cearense de Cinema, levanta-se a questão: "Músicas como 'Com açúcar, com afeto' devem ser excluídas do repertório do compositor?"

O debate prende-se ao depoimento do próprio compositor no documentário "O canto livre de Nara Leão" (2022), dirigido por Renato Terra, em que afirma que não cantará mais a aludida música em seus shows por ter assimilado críticas feministas identificando machismo na letra.

Escrita do ponto de vista da mulher, "Com açúcar, com afeto" apresenta uma mulher submissa ao marido farrista, que ao final de um dia de trabalho gasta as horas livres andando de bar em bar, discutindo futebol e "olhando as saias, de quem vive pelas praias coloridas pelo sol".

Na contramão do que professa o movimento feminista, a mulher não apenas se deixa aborrecer pelo marido, numa sutil tentativa de explorá-la sexualmente, como vai esquentar seu prato e abrir-lhe os braços, como a simbolizar o gesto referido o próprio abrir de pernas na relação carnal.

"Com açúcar, com afeto" foi composta em 1966 e, além de constar do disco "Chico Buarque de Hollanda, vol. 2", aparece no álbum "Chico Buarque & Maria Bethânia ao vivo", de 1975. É a primeira experiência poética do compositor na perspectiva do eu lírico feminino, algo que passaria a ser mesmo uma das marcas mais notáveis da obra de Chico Buarque de Hollanda, aquela em que revela à perfeição os sentimentos e emoções da mulher em relação ao homem. É que o conteúdo poético dessas letras, quase invariavelmente, dá a ver a mulher como um ser sentimentalmente dependente, entregue aos caprichos e idiossincrasias masculinos.

Ora, ora. A discussão ignora o fato de que se trata de uma obra de arte como tantas e tantas outras que, se retiradas do repertório poético nacional, subtrairiam parte considerável do que existe de mais valioso esteticamente falando. E não é de agora: Gonçalves Dias, num dos mais bem realizados poemas da poesia romântica brasileira, já o fizera em meados do século 19 com o seu irretocável "Leito de folhas verdes", em que uma indígena se submete às inconstâncias do amado para o qual preparara com esmero o confortável leito em que se amariam. Mas ele falta ao compromisso deixando-a só e abandonada. O poema é lindo, envolvente, e o ponto de vista feminino adorna com singular encanto o desencontro amoroso, nada expondo de desrespeitoso acerca do papel da mulher. Desencontros existem, e também os homens enriquecem as estatísticas da desilusão amorosa, o que ensejou matéria primorosa para o cancioneiro popular em torno do que se convencionou chamar de dor-de-cotovelo. A vida como ela é, sem tirar nem pôr.

Sobre o fato envolvendo o maior compositor vivo do país, ocorre-me lembrar o que diz  André Simões em livro recém-lançado (recomendadíssimo!) sobre as canções de Chico Buarque de Hollanda: "... há o fato de que não é possível para uma canção ser machista, pois apenas pessoas podem sê-lo: assim como um filme que conta a história de um assassinato não é 'um filme assassino', uma canção que retrata machismo não se torna automaticamente uma 'canção machista'".

Há, como me parece ser o caso de "Com açúcar, com afeto", que se estabelecer a sábia diferença de que cantar o amor, ainda que fora dos padrões recomendados pelo olhar feminista, é algo diferente de fazer a apologia de comportamento machista. A composição de Chico Buarque apenas retrata uma situação, infelizmente recorrente, ainda hoje, na relação homem/mulher. Desnecessário dizer, por óbvio, que o faz emblematicamente bem do ponto de vista poético, e a canção, por suas qualidades estéticas, figura entre as grandes composições do autor.

É significativo acerca da polêmica o que diz Fernanda Takai, do alto de sua feminina jovialidade e inquestionável beleza: "Com açúcar, com afeto" é obra muito bem escrita, que dá voz a uma personagem num espaço bem delimitado na arte".

De fato, a canção de Chico Buarque de Hollanda foi vazada em linguagem poética adequada, com elegantes versos de sete sílabas (redondilhas maiores), com esquema de rimas clássico: aabcd. A letra é ainda mais valorizada pelo requinte musical, com modulações extremamente competentes e condizentes com o elemento dramático da narrativa, o que, já em início de carreira, Chico Buarque já era capaz de explorar enquanto compositor em pleno domínio da teoria musical.

A MPB, assim como a literatura, o teatro, o cinema, está acima do que propõe o debate simplista e despreparado que se quer levar a efeito sobre ela. "Com açúcar, com afeto" é obra-prima do cancioneiro popular.

Chico Buarque escorregou em casca de banana, que me perdoem a expressão em nada poética de que lanço mão para lhe contrapor minha humilde opinião.

 

Em tempo: Dia 12 de agosto, no Tribunal de Contas do Estado (você não leu errado), Mantovani Colares e eu faremos palestra sobre a obra de Chico Buarque de Hollanda.