sexta-feira, 22 de novembro de 2024
Sempre Paris
quinta-feira, 14 de novembro de 2024
O amor não é necessário
quinta-feira, 7 de novembro de 2024
A beleza salvará o mundo
quinta-feira, 24 de outubro de 2024
A morte como exercício poético
sexta-feira, 18 de outubro de 2024
De onde nasce a crônica
terça-feira, 8 de outubro de 2024
A lição de Roberto e outras lições
quinta-feira, 3 de outubro de 2024
Eis a [velha] questão
sexta-feira, 27 de setembro de 2024
A política e a politicagem
sexta-feira, 13 de setembro de 2024
De poesia e subjetivações
quinta-feira, 5 de setembro de 2024
A bossa nova e outras bossas
quinta-feira, 29 de agosto de 2024
À mesa de um restaurante
São de Chico Buarque os versos sublimes: "Oh pedaço de mim/Oh metade arrancada de mim/Leva o teu olhar/Que a saudade é o pior tormento/É pior que o esquecimento/É pior do que se entrevar//Oh pedaço de mim/Oh metade exilada de mim/Leva os teus sinais/Que a saudade dói como um barco/Que aos poucos descreve um arco/E evita atracar no cais".
Dia desses, num restaurante, estando próximo à mesa em que conversava um casal, ouço a frase impiedosa: "Ela gosta de sofrer, se não já tinha esquecido esse homem." Entre invasivo e inoportuno, falei com meus botões: "Aí está alguém que nunca sofreu por amor. É isso. Há dores que precisam ser curtidas, do contrário jamais desaparecerão.
A dor de um amor que termina é um desses casos. É como a dor das grandes perdas, como a dor pela morte do amigo querido, do parente próximo, é como o aperto no peito quando a cadeira de balanço --- vazia --- lembra o pai que se foi.
Rosa Monteiro, citando o escritor Alejandro Gándara, diz, em "A louca da casa": "Amar apaixonadamente uma pessoa sem ser correspondido é que nem estar num barco e enjoar: você pensa que vai morrer, mas nos outros só provoca risadas."
E, no entanto, a dor que se sente é insuportável.
Todo fim de relacionamento, sobretudo daqueles que tiveram vida longa, é desconcertante. E não adianta insistir dizendo que "foi melhor assim", que "isso passa e logo vai aparecer alguém", que "o importante é amizade que ficou" etc., palavras e expressões que nada dizem para quem desaba abismo abaixo naquele instante.
Não há separação tão equilibrada que atenda à vontade dos dois. Um lado vai sair machucado, invariavelmente. E só quem já passou por uma situação assim é capaz de entender a extensão e a profundidade dessa dor.
A propósito, sobre a dor da perda, li certa vez uma crônica de Nelson Rodrigues que é mesmo uma pérola. Está em "O óbvio ululante", que tomo agora nas mãos. Nelson recebe o convite de um amigo para um almoço. Entre risadas, marcam o encontro para o dia seguinte. Ao meio-dia, estavam num restaurante. É aí que Nelson percebe que o amigo marcara o almoço como um pretexto para que o visse chorar, dilacerado de saudade do pai, que havia morrido. "Éramos amigos e fundamos naquela mesa a nossa solidão (a perfeita solidão há de ter pelo menos a presença numerosa de um amigo real!)".
O amigo lhe abria o coração: "A morte de meu pai... Nunca me recuperei." Nelson confessa ter sentido vontade de pedir-lhe: "Nem se recupere, nunca, nunca. Eis a nossa degradação, sofrer menos, menos, até esquecer".
As palavras não valem quando se afoga na dor das grandes perdas. A companhia silenciosa, a mão sobre o ombro, o afago sincero, valem muito. As palavras, não. Ainda que nascidas das melhores intenções, não valem. Toda grande perda vem acompanhada da pior das sentenças: "Nunca mais!" E é em nome dessa sentença que é preciso curtir a dor, que só o tempo será capaz de curar.
Também de Nelson Rodrigues é a sábia afirmação: "Os psiquiatras e os psicanalistas deviam-se incumbir dos que esquecem fácil." E lembra que estamos tão esquecidos de sofrer, que a dor nos parece, e cada vez mais, uma doença, quase uma loucura.
"Tão curto o amor e tão longo o esquecimento", ecoa o verso de Neruda.
Vindas da mesa ao lado, no cair daquela tarde, as palavras que me chegam aos ouvidos me fazem recordar o poeta chileno.
E como ignoram o que é perder alguém que se ama...
sexta-feira, 23 de agosto de 2024
Quase noite em Copacabana
quarta-feira, 14 de agosto de 2024
De fatos e memórias
Vez e outra, da pena hábil de Paulo Elpídio, leio os belos textos de memórias, vazados no estilo elegante e delicadamente poético com que ressignifica momentos de sua trajetória mundo afora. Diferentemente do autobiográfico, o texto memorialístico resulta da confluência do registro realista com o voo da subjetivação, não raro permitindo ao escritor, por isso mesmo, dar asas à imaginação.
É que recordar é trazer de volta ao coração, e os fatos trazidos cobrem-se do matiz saudosista que dá gosto e perfume à coisa vivida. Assopra-se a lembrança, afastando-se da cena guardada a poeira com que se deixou cobrir pelo passar do tempo. Esta é a razão por que, no mais das vezes, o texto autobiográfico ressente-se da literariedade, enquanto as memórias ganham a beleza da arte, porque predomina-lhe a função poética da linguagem em detrimento da referencial. Ocorre-me reviver, assim, no instante em que escrevo, na linha do que faz exemplarmente o amigo, algumas dessas recordações. E volta-me o tempo perdido, como a um Proust provinciano, vesgo e melancólico.
Montmartre é um dos bairros mais interessantes de Paris. Vejo-o de perto, ainda que da distância desses muitos anos.
No alto da colina, agiganta-se a belíssima Igreja Sacré-Coeur, à qual se chega enfrentando-se centenas de degraus ou tomando-se o lúdico bondinho que leva dos jardins ao adro da basílica.
Construída desde 1876, a igreja é uma homenagem dos franceses ao Sagrado Coração de Jesus, e consta que foi erigida em gratidão pelo fim da Guerra Franco-Prussiana, deflagrada oito anos antes. O certo é que esta, que é uma das mais visitadas atrações turísticas de Paris, é realmente bela, e adentrar seu interior é uma experiência mágica, incomunicável, sobretudo à noite, horário em que C., a socióloga Zaira Bueno, nossa anfitriã, seu filho e artista plástico Batista e eu, chegamos ao local.
Decorrido um par de horas, pouco mais ou menos, ainda fizemos fotos da plataforma da colina, de cujo alto vislumbra-se uma poética paisagem da noite parisiense. Perto dali, está o famoso Moulin Rouge e, nos arredores, um sem-número de casas noturnas dedicadas ao turismo sexual e imortalizadas por Toulouse-Lautrec e Edgar Degas.
Ao escrever estas memórias, chego a lembrar com uma saudade imensa dos pequenos detalhes, como a expressão facial de C. (mulher sempre além do seu tempo e pouco afeita a escandalizar-se com o que quer que fosse), a mão à boca, um sorriso entre tímido e assustado diante de uma vitrine em que se veem os mais inimagináveis instrumentos eróticos. E caímos todos numa sonora gargalhada, que, estou convicto, por um instante chama muito mais a atenção dos muitos turistas que ali se encontravam que o arsenal de chicotes, mulheres infláveis, pênis e vaginas espalhados por trás da vitrine.
Antes de visitarmos o Moulin Rouge, contudo, percorremos as ruas de Montmartre, eu emocionadíssimo por lembrar que ali estiveram um dia Théodore Géricault, Camile Corot e, mais tarde, alguns dos meus pintores preferidos, como Amedeo Modigliane, embora morasse ele em Montparnasse, um bairro também marcado pela presença de grandes artistas em seu tempo, que eu só visitaria alguns anos depois, noutra viagem à França.
Ali estive nos pequenos museus existentes, nos espaços culturais e, com particular entusiasmo, no Espace Montmartre Salvador Dalí, onde se veem algo em torno de duas centenas de trabalhos do pintor espanhol. Já à época a pintura me despertava interesse quase tanto quanto a literatura.
Fim de noite, exaustos das muitas caminhadas, voltamos para o apartamento de Zaira e ficamos por um longo tempo conversando sobre a viagem, até que, vencidos pelo sono, C. e eu nos entregássemos aos sonhos da memorável madrugada. Era fevereiro de 1978.
quinta-feira, 8 de agosto de 2024
Greta Garbo, de Edmilson Caminha
De Brasília, por correio, chega-me às mãos o recém-lançado "Greta Garbo, quem diria, não morreu em Araxá", de Edmilson Caminha. O título é aproveitado de uma crônica do livro em que o autor, com apuro de linguagem e irretocável domínio da carpintaria textual, discorre sobre crônica de Carlos Drummond de Andrade, escrita por volta de 1954, na qual o escritor mineiro narra uma improvável visita da atriz Greta Garbo a Minas Gerais.
A crônica, à época, causou o maior frisson entre admiradores de Garbo, cuja beleza, para além dos padrões clássicos, Drummond descreve de forma hilariante: "Tem um corpo de tábua de passar roupa, depositado sobre dois pés enormes. [...] Um corpo que não recomenda nem pelo brilho dos olhos nem pela correção do nariz nem pela exiguidade da boca. Criatura seca, pobre de curvas, rica de ângulos, e seguramente sem nenhum desses predicados que caracterizam e dão preço às nossas belezas dos trópicos. Beleza, talvez, para os esquimós, se o belo para o esquimó não fosse uma autêntica esquimó, e não uma cavalheira comprida e trágica, mórbida, antipática e artificial [...]".
A atriz sueca, sabe-se, era objeto de desejo de nove entre dez cinéfilos, com atuações que a imortalizaram em pelo menos três ou quatro filmes inesquecíveis, a exemplo de Mata Hari, Grande Hotel, Ninotchka e, sobretudo, o soberbo Rainha Cristina, de cuja narrativa destaquei em crônica uma cena que considero das mais belas do cinema.
Desejada e belíssima, em que pese a ironia de Drummond, Greta encerraria sua carreira nos píncaros da glória, aos 36 anos, entregando-se a uma solidão esquizoide até morrer, em Nova York, em 1990. Nunca esteve no Brasil, e a crônica de Drummond, claro, não passava de uma irreverência do itabirano, afeito a estripulias pouco condizentes com o seu perfil psicológico tradicionalmente traçado pelos historiadores da literatura brasileira. Imprevisível, surpreendente como escritor e como homem, Carlos Drummond de Andrade esclareceria o ardil uma semana depois: "Eu menti". Apenas pregara uma peça nos leitores, como a elevar a crônica, gênero literário caracteristicamente adequado para as amenidades do cotidiano, ao status de grande literatura, aquela capaz de criar irrealidades como se realidades fossem.
Realizando um tipo de "mise en abyme"*, Edmilson Caminha curva-se sobre a crônica de Drummond para erigir, a partir dela, uma notável experiência de cronista, fazendo-o, como disse, da altura de um escritor absoluto, inventivo, capaz de extrair do hipotexto (o texto orginal) a matéria-prima de que lança mão para fazer metaliteratura de altíssima qualidade.
Profundo conhecedor da obra de Carlos Drummond de Andrade, de cuja reedição completa, pela Record, é o principal responsável, Caminha desfecha sua notável crônica com uma carta, da própria Greta Garbo, para Drummond, reportando-se ao fato.
A descoberta da existência do documento, por si só, vale um livro, já não fosse a escrita atribuída a atriz sueca uma página de valor literário inquestionável. Com a palavra o cronista: "Duas folhas de papel fino, cor-de-rosa, já manchadas pelo tempo, datilografadas sem rasuras, em que o destinatário como de costume anotou com sua letra pequena, acima do cabeçalho: Greta Garbo, s/r (sem resposta?)".
Consciente de como se deve desfechar uma boa crônica, arrematando-a com exatidão, vigor e poesia, Edmilson Caminha faz do elemento periférico, do componente marginal, o eixo artístico central de sua bela crônica, como se a nos dar uma aula sobre uma forma narrativa ao mesmo tempo simples e desafiadora. Promete manter em anonimato o nome da bibliotecária itabirana que lhe confiou a leitura da carta, bem como (pasmem!) tirar-lhe cópia para publicação: "Assim o farei", diz ele, como a tornar pública sua lealdade, "ao menos pelos próximos 25 anos, a exemplo do segredo guardado por Drummond..."
E nos dá a ler a missiva preciosa.
*Narrativa em abismo, termo usado pelo escritor francês André Gide para falar sobre as narrativas que contêm outras narrativas dentro de si. Consiste num processo de reflexividade literária, de duplicação especular.
terça-feira, 30 de julho de 2024
Bambino a Roma: As memórias literárias de Chico Buarque de Hollanda
quinta-feira, 25 de julho de 2024
A forma doce e terna de dar e receber amor
Pesquisa divulgada recentemente aponta: O brasileiro está se casando mais. Curioso: O outro resultado da pesquisa, infelizmente, desaponta: O brasileiro está se separando mais. O número de separações legais supera hoje todas as estatísticas. Pena. Se o casamento é uma instituição falida, como querem alguns (e as pesquisas parecem indicar essa tendência), por que tantos homens e tantas mulheres ainda buscam na vida a dois o que definem como felicidade? O que ainda leva as pessoas a tentar viver juntas, dividir camas e lençóis, como se o que chamam de felicidade fosse, necessariamente, um tipo de cumplicidade?
Levantamentos indicam que é cada vez maior o contingente de pessoas que moram sós --- e conseguem estar de bem com a vida. Nos supermercados e afins, cresce a oferta de produtos para solteiros, o que facilita o cotidiano daqueles em cuja mesa um só talher é bastante. Mas, a pesquisa quantifica, aumenta o número daqueles que acreditam na utopia do improvável, "até que a morte os separe".
Não é sem razão que o tema do amor frustrado povoa o imaginário das pessoas, notadamente dos artistas. O cancioneiro popular é pródigo em cantar essa dor, quase sempre insuportável. "A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida", dizia Vinicius de Moraes, ele mesmo exemplo clássico de amores desfeitos e buscas incansáveis. Consta que casou nove vezes, poeta das paixões, como se tornaria conhecido.
Há mesmo, entre os grandes compositores, quem parece ter se especializado em cantar o sofrimento de quem perde o objeto amado, e não preciso falar aqui de Lupicínio, que seria um tipo de redundância. É do próprio Vinicius, é de Chico Buarque (perfeição!), de Roberto Carlos, de Dolores Duran, de Evaldo e Jair Amorim, de Cartola, de Herivelto Martins, para citar apenas alguns emblemáticos da canção brasileira, que tomaram nas mãos a missão de eternizar as desilusões e insucessos do relacionamento e a amargura que advém disso.
Na literatura, é inimaginável a quantidade de livros, bons ou ruins, que exploram o tema, não raro grandes clássicos da poesia e da prosa de ficção. No cinema, então, essa dura experiência humana está registrada em cenas inesquecíveis. Quem haverá de esquecer "Casablanca" e a mais bela fala de amor de que se tem notícia: "Nós sempre teremos Paris".
A propósito, na busca de um "mote" para a crônica de hoje, larguei os dados da pesquisa e fui à estante ao encontro de algo que fizesse contraponto, que ilustrasse o eixo discursivo do que pretendia escrever. Caiu-me nas mãos esta pérola de Dalton Trevisam: "Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa da esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano,a imagem de relance no espelho.
Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, e até o canário ficou mudo. Para não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles iam embora e eu ficava só, sem o perdão de sua presença e todas as aflições do dia, como última luz na varanda.
E comecei a sentir falta das pequenas brigas por causa do tempero da salada --- meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcharam. Não tenho botão na camisa, calço meia furada. Que fim levou o saca-rolhas? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor".
Machista, afeito a exaltar o exercício da domesticidade? Talvez sim, talvez não. Ponto de vista. Quem disse que fazer certas coisas atribuídas à Senhora é desmerecê-la, ignorar que está em igualdade de condições? Algum dia, em algum lugar, haverá mulheres a sentir falta do homem para afastar o móvel, repor a cortina, trocar o pneu, desfazer o varal... Quem sabe fazer a farofa com torresmo que só ele faz.
Não são papeis que definem o lugar de fala, nem a vocação para fazer bem o que há de ser feito, tampouco o nível de independência, a igualdade de direitos, o respeito e consideração recíprocos. O que diz da correlação de forças no casamento, no namoro, na convivência a dois, são os pequenos gestos, a forma de tratar e reconhecer direitos e deveres (se existem deveres no amor). O politicamente correto, o que dá a dimensão do verdadeiro encontro, a medida da bela cumplicidade, não são discursos e estandartes, mas a forma doce e terna de dar e receber amor.
quarta-feira, 17 de julho de 2024
Sem açucar, sem afeto
A minha coluna da semana passada, a propósito da obra de Chico Buarque de Hollanda, teve boa receptividade. Entre e-mails e mensagens pelo "zap", foram muitos os comentários, mas gostaria de destacar um deles, que me pareceu particularmente relevante: é da psicanalista Maria José, a queridíssima amiga Mazé, cujo texto, vazado numa linguagem elegante e expressiva, discorre sobre o "eu feminino" na poesia de Chico Buarque com rara sensibilidade.
Na contramão do que um certo feminismo tem feito, para ressaltar o equívoco que é tachar de machistas canções importantes no conjunto da obra do autor de "Com açúcar, com afeto", objeto de exame da coluna de mesmo título, a leitora evidencia a beleza poética da canção, o real sentido do seu conteúdo e a importância do que diz sobre as relações amorosas entre homem e mulher no contexto de uma sociedade marcada por severas contradições.
Ao agradecer o privilégio de tê-la como leitora, ocorre-me a motivação de voltar ao assunto para tecer hoje mais algumas considerações. Começo por destacar que existem inúmeros trabalhos de corte acadêmico sobre a presença da mulher na música popular brasileira, dentre os quais, com alguma dose de subjetivação, tomo a liberdade de indicar o belíssimo estudo "O eu feminino na canção brasileira: desenvolvimento cultural entre 1901 e 1985", de André Simões.
Nascido de sua tese de doutorado para a PUC-SP, o texto de Simões é fundamental para evitar equívocos de interpretação, juízos apressados, inconsistências argumentativas, sobre uma obra absolutamente correta nos planos do conteúdo e da forma. Sem pruridos inoportunos ou deslizes de natureza conceitual, o trabalho serve para tornar evidente o que há muito tenho por convicção: embora calcadas o mais das vezes em situações de aparente dependência da mulher em relação ao homem, o cancionista Chico Buarque de Hollanda é sutil aqui, irônico acolá, ardiloso ou intencionalmente ferino no fraseado de suas composições, mas nunca indiferente ao que pode advir de sua visada poética como reflexão em torno do que, na falta de melhor expressão, pode-se delimitar como a questão feminina.
Em certa medida, pois, há nas mulheres de Chico Buarque um não sei quê de machadiano, e muitas delas trazem no corpo o perfume de Capitu, a mesma dissimulação que as faz irresistivelmente sedutoras, capciosas, "dominantes enquanto dominadas", que me permitam o que há de paradoxal na afirmação e de incorreto politicamente falando.
Para se ter uma ideia do que fez Chico Buarque na perspectiva do eu lírico feminino, o quanto o tema o persegue como poeta, romancista e dramaturgo, destaco aqui algo próximo de cinquenta canções, a maior parte delas dramáticas, ou seja, canções compostas para peças de teatro ou cinema: "Noite dos mascarados", "Soneto", "Ana de Amsterdam", "Bárbara", "Cala a boca Bárbara", "Não existe pecado ao sul do Equador", "Tatuagem", "Tira as mãos de mim", "Joana Francesa", "Bem-querer", "Mambordel", "O que será", "Tira as mãos de mim", "À flor da pele", "Folhetim", "O meu amor", "Teresinha", "Ai se eles me pegam agora", "Uma canção desnaturada", "Não sonho mais", "Sob medida", "Qualquer amor", "A história de Lily Braun", "Meu namorado", "Mil perdões", "A violeira", "Las muchachas de Copacabana", "Palavra de mulher", "Sentimental", "Tango de Nancy", "Anos dourados", "Abandono", "Sol e lua", "A mais bonita", "Lábia", "Veneta", "Fora de hora", "Sem fantasia" e as não dramáticas "Com açúcar com afeto", Atrás da porta", "Olhos nos olhos", "Sem açúcar", "O meu guri" e "Se eu soubesse".
Por último, como observa André Simões em seu trabalho (o que reproduz no livro "Chico Buarque em 80 canções", Editora 34, 2024), há casos em que o ponto de vista feminino alterna com o ponto de vista masculino, a exemplo do que se pode ver na incontornável "Sem fantasia", composta para a peça "Roda Viva" (1968), forjada na mesma pegada homérica da mulher que acolhe o homem "maltrapilho e maltratado" de volta ao lar.
Imagine, leitor ou leitora, o que seria da música popular brasileira sem essas verdadeiras pérolas. Ufa!
sexta-feira, 12 de julho de 2024
Com açucar, com afeto
Durante palestra no Cine São Luiz, dentro da programação em homenagem aos oitenta anos de Chico Buarque de Hollanda, evento organizado pela Academia Cearense de Cinema, levanta-se a questão: "Músicas como 'Com açúcar, com afeto' devem ser excluídas do repertório do compositor?"
O debate prende-se ao depoimento do próprio compositor no documentário "O canto livre de Nara Leão" (2022), dirigido por Renato Terra, em que afirma que não cantará mais a aludida música em seus shows por ter assimilado críticas feministas identificando machismo na letra.
Escrita do ponto de vista da mulher, "Com açúcar, com afeto" apresenta uma mulher submissa ao marido farrista, que ao final de um dia de trabalho gasta as horas livres andando de bar em bar, discutindo futebol e "olhando as saias, de quem vive pelas praias coloridas pelo sol".
Na contramão do que professa o movimento feminista, a mulher não apenas se deixa aborrecer pelo marido, numa sutil tentativa de explorá-la sexualmente, como vai esquentar seu prato e abrir-lhe os braços, como a simbolizar o gesto referido o próprio abrir de pernas na relação carnal.
"Com açúcar, com afeto" foi composta em 1966 e, além de constar do disco "Chico Buarque de Hollanda, vol. 2", aparece no álbum "Chico Buarque & Maria Bethânia ao vivo", de 1975. É a primeira experiência poética do compositor na perspectiva do eu lírico feminino, algo que passaria a ser mesmo uma das marcas mais notáveis da obra de Chico Buarque de Hollanda, aquela em que revela à perfeição os sentimentos e emoções da mulher em relação ao homem. É que o conteúdo poético dessas letras, quase invariavelmente, dá a ver a mulher como um ser sentimentalmente dependente, entregue aos caprichos e idiossincrasias masculinos.
Ora, ora. A discussão ignora o fato de que se trata de uma obra de arte como tantas e tantas outras que, se retiradas do repertório poético nacional, subtrairiam parte considerável do que existe de mais valioso esteticamente falando. E não é de agora: Gonçalves Dias, num dos mais bem realizados poemas da poesia romântica brasileira, já o fizera em meados do século 19 com o seu irretocável "Leito de folhas verdes", em que uma indígena se submete às inconstâncias do amado para o qual preparara com esmero o confortável leito em que se amariam. Mas ele falta ao compromisso deixando-a só e abandonada. O poema é lindo, envolvente, e o ponto de vista feminino adorna com singular encanto o desencontro amoroso, nada expondo de desrespeitoso acerca do papel da mulher. Desencontros existem, e também os homens enriquecem as estatísticas da desilusão amorosa, o que ensejou matéria primorosa para o cancioneiro popular em torno do que se convencionou chamar de dor-de-cotovelo. A vida como ela é, sem tirar nem pôr.
Sobre o fato envolvendo o maior compositor vivo do país, ocorre-me lembrar o que diz André Simões em livro recém-lançado (recomendadíssimo!) sobre as canções de Chico Buarque de Hollanda: "... há o fato de que não é possível para uma canção ser machista, pois apenas pessoas podem sê-lo: assim como um filme que conta a história de um assassinato não é 'um filme assassino', uma canção que retrata machismo não se torna automaticamente uma 'canção machista'".
Há, como me parece ser o caso de "Com açúcar, com afeto", que se estabelecer a sábia diferença de que cantar o amor, ainda que fora dos padrões recomendados pelo olhar feminista, é algo diferente de fazer a apologia de comportamento machista. A composição de Chico Buarque apenas retrata uma situação, infelizmente recorrente, ainda hoje, na relação homem/mulher. Desnecessário dizer, por óbvio, que o faz emblematicamente bem do ponto de vista poético, e a canção, por suas qualidades estéticas, figura entre as grandes composições do autor.
É significativo acerca da polêmica o que diz Fernanda Takai, do alto de sua feminina jovialidade e inquestionável beleza: "Com açúcar, com afeto" é obra muito bem escrita, que dá voz a uma personagem num espaço bem delimitado na arte".
De fato, a canção de Chico Buarque de Hollanda foi vazada em linguagem poética adequada, com elegantes versos de sete sílabas (redondilhas maiores), com esquema de rimas clássico: aabcd. A letra é ainda mais valorizada pelo requinte musical, com modulações extremamente competentes e condizentes com o elemento dramático da narrativa, o que, já em início de carreira, Chico Buarque já era capaz de explorar enquanto compositor em pleno domínio da teoria musical.
A MPB, assim como a literatura, o teatro, o cinema, está acima do que propõe o debate simplista e despreparado que se quer levar a efeito sobre ela. "Com açúcar, com afeto" é obra-prima do cancioneiro popular.
Chico Buarque escorregou em casca de banana, que me perdoem a expressão em nada poética de que lanço mão para lhe contrapor minha humilde opinião.
Em tempo: Dia 12 de agosto, no Tribunal de Contas do Estado (você não leu errado), Mantovani Colares e eu faremos palestra sobre a obra de Chico Buarque de Hollanda.