quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

A minha aldeia

De Fernando Pessoa, ocorrem-me agora os versos antológicos: "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia."

É assim que se dá comigo. Viajando por este mundo afora, mesmo diante das belezas mais incontestes, invariavelmente espoca no peito a saudade telúrica, provinciana, da minha aldeia distante. Não raro, na solidão da lembrança, tenho a pueril impressão de que o céu de Iguatu é o mais belo, e suas noites as mais estreladas. Quando me encontro longe, bem longe da 'terrinha', é nela que, inesperadamente, penso, como que para haurir energias e revigorar a minha empolgação com a vida. Penso na força descomunal das águas barrentas do meu Jaguaribe, quando, tempo de chuva, há águas barrentas no meu Jaguaribe.

É ali, na vida vidinha da cidade do interior, que estão as minhas raízes, os grandes amigos e algumas das muitas pessoas que me são indispensáveis. De Iguatu, na linha do que ditou o poeta, trouxe comigo esse jeito torto de encarar a vida. De ver poesia em tudo.

"Poucos sabem qual é o rio da minha aldeia. E para onde ele vai. E de onde ele vem. E por isso, porque pertence a menos gente, é mais livre e maior o rio da minha aldeia."

Iguatu, quando nasci, a 29 de março de 1956, era naturalmente uma cidade ainda mais provinciana. Não havia a luz elétrica de Paulo Afonso, mas uma casa de forças, a Casa do Motor, como se dizia então, de que resultava a energia a diesel. Às nove em ponto, depois de três sinais que constavam de cortes rápidos da luz, dominava a escuridão. Carros, uns dois ou três; poucos médicos, um advogado e nenhum dentista. Luis Barreto, que fazia as vezes de cirurgião, 'arrancava' dentes em fila, usando uma só seringa e o mesmo boticão. Não havia emissora de rádio, muito menos cinema. Na rua em que nasci, a Rua do Fogo, aparado por uma parteira qualquer, os homens trafegavam em suas montarias, o que deixava o chão de paralelepípedo literalmente emporcalhado.

Ficus-benjamim, às dezenas, separavam em duas pistas a rua estreita. Sob suas copas, amarrados a troncos robustos, quase sempre pincelados a cal, amarravam-se burros e cavalos, e os vendedores de picolé e sorvetes baratos, algodão-doce e pipoca, milho assado ou cozido, disputavam com muares a abençoada sombra. 

Meu pai, que trabalhara como empregado de um armazém, tinha em casa, ao redor dos meus seis, sete anos, um pequeno comércio, a "bodega de Deusdedith", onde se vendia um pouco de quase tudo, falando do estritamente necessário para abastecer uma despensa. Além dos enlatados, bolachas, queijo, feijão, arroz, açúcar etc., reservara um espaço para vender bebidas.

Ali, sobremaneira aos sábados, reuniam-se quinze, vinte pessoas, num espaço que, confortavelmente, comportaria seis. Quando um ou outro se excedia, o que não era raro acontecer, e a embriaguez tornava frouxa a língua, na mansidão de um frei beneditino, meu pai se aproximava a passo sereno, e, pegando delicadamente no braço do bebum, apontava o caminho da porta. Se o indivíduo insistia em rejeitar o 'convite', a mão doce de meu pai ia aumentando a pressão na proporção exata da intransigência alheia.

Uma vez, apenas, vi a coisa querer esquentar, mas logo a turma do "deixa-disso" chegou para aquietar. Na pequenez dos seus 1,60 m, e manso como um cordeiro, a figura de meu pai agigantava-se diante do desacato de quem quer que fosse. Não demorava, o arruaceiro tomava o rumo de casa sob a curiosidade atenta da vizinhança.

Iguatu, tal qual a Penny Lane de Paul McCartney, numa canção que fez sucesso na minha adolescência, […] "está nos meus ouvidos e nos meus olhos, / lá embaixo do céu azul suburbano."

Que doce e bela era a minha aldeia...

 

 

 

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