"Kalu, Kalu,/Tira o verde desses óios de riba d'eu/Kalu, Kalu,/Não me tente se você já me esqueceu/Kalu, Kalu,/Esse oiá depois do que se assucedeu".
A atividade intelectual e o gosto pelo jornalismo (escrevi para o jornal "O Estado de Mato Grosso" e dirigi rádio por muitos anos) levaram-me a ter o hábito de entrevistar pessoas interessantes, algumas delas famosas. Que me lembre, agora, entrevistei os escritores Jorge Amado, Zélia Gattai, Moreira Campos; o filósofo Edgar Morin; o cantor Raimundo Fagner, mais de uma vez; os cineastas Walter Lima Jr. e Paulo César Saraceni; o educador Moacir Gadotti, os políticos Ciro Gomes, Lula (rapidamente), e, em plena Av. Atlântica, o antropólogo Darcy Ribeiro, entre muitos outros. Mas, foi a entrevista com o cantor e compositor Luiz Gonzaga que mais me tocou, pelo desprendimento e informalidade do que se tornou, antes, mais uma conversa demorada que uma entrevista propriamente dita.
Era outubro, novembro, não me lembro bem, mas o ano com certeza era 1987, já bem perto da morte de Gonzagão, ocorrida em agosto de 1989. Em Iguatu, ele era hóspede do médico Hildernando Bezerra. De manhã, ainda à mesa do café, contando com a presença da saudosa Marlene Teixeira, primeira mulher a fazer rádio no interior do estado, começamos Luiz Gonzaga e eu uma conversa, como disse, demorada, sobre música popular brasileira, a carreira esplêndida do compositor de "Asa Branca" e, principalmente, a convivência com seu parceiro Humberto Teixeira. Hildernando, o anfitrião, aqui e ali, fazia intervenções curiosas sobre o tema da conversa.
Gonzagão discorria, com um jeito bem nordestino de ser, sobre o percurso que fizera desde o início de sua carreira, ainda entre os cáctus e cipoais do sertão, até a consagração, que, na sua humildade peculiar, em momento algum assumiria perante os entrevistadores. Falava das circunstâncias em que compusera uma e outra canção, das parcerias, do pai Januário e de sua amizade com Humberto.
Entre uma mordida na pamonha e um "trago" de café, Luiz Gonzaga recorda situações difíceis de sua trajetória, as parcerias, os programas de rádio, as decepções, mas, sobretudo, como disse antes, com a voz grave e ligeiramente trêmula, de sua convivência com o iguatuense Humberto Teixeira, o guardanapo a enxugar a lágrima discreta. Conta-nos, ouvintes privilegiados, como surgiu a ideia de compor "Asa Branca" e outras músicas que ficaram no cancioneiro brasileiro como verdadeiros clássicos da MPB.
Sabendo-me vereador e autor de um projeto de lei que instituiria o Museu Iguatuense da Imagem e do Som, a uma dada altura da entrevista, sem que eu saiba por quê, Gonzaga assume comigo o curioso compromisso: – "Assim que o museu for inaugurado, mando para seu acervo o primeiro disco de ouro que eu e Humberto ganhamos com Asa Branca." Todos aplaudiram e o burburinho era tão grande que tive de interromper a entrevista. Foi aí que Luiz Gonzaga fez a afirmação premonitória: – "Guarde a fita [da entrevista] que, se eu tiver morrido, você mostra pro [o barulho de conversas paralelas e ruídos de talheres impedem a compreensão do que diz] e volta com o disco debaixo do braço." Suponho que tenha dito o nome do filho Gonzaguinha, que, ironicamente, morreria em 1991, num desastre de carro.
Marlene Teixeira, que tinha uma bela voz, traz com ela uma música inédita de Humberto Teixeira e a cantarola para Gonzagão, que fica em silêncio por um momento, os olhos nitidamente marejados, e faz a afirmação conhecida: – "Humberto morreu de amor!"
Anos depois, falei sobre o assunto com a atriz Denise Dumont, filha de Humberto Teixeira, que viera ao Ceará para lançamento de um projeto que tinha por objetivo resgatar a importante presença do pai no contexto da MPB. Numa solenidade no auditório do IFCE, em Fortaleza, eu faria um rápido pronunciamento em nome da família de Humberto em Iguatu.
Denise, sempre muito reticente em relação à vida amorosa de Humberto, por razões que sabemos e não me cabe explorar, apenas esboçou um sorriso e repetiu: – "Sim, Humberto morreu de amor!"
(Do livro "Depoimento", de Alder Teixeira)
Lembranças que ficam maiores do que a própria entrevista.
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