A minha coluna da semana passada, a propósito da obra de Chico Buarque de Hollanda, teve boa receptividade. Entre e-mails e mensagens pelo "zap", foram muitos os comentários, mas gostaria de destacar um deles, que me pareceu particularmente relevante: é da psicanalista Maria José, a queridíssima amiga Mazé, cujo texto, vazado numa linguagem elegante e expressiva, discorre sobre o "eu feminino" na poesia de Chico Buarque com rara sensibilidade.
Na contramão do que um certo feminismo tem feito, para ressaltar o equívoco que é tachar de machistas canções importantes no conjunto da obra do autor de "Com açúcar, com afeto", objeto de exame da coluna de mesmo título, a leitora evidencia a beleza poética da canção, o real sentido do seu conteúdo e a importância do que diz sobre as relações amorosas entre homem e mulher no contexto de uma sociedade marcada por severas contradições.
Ao agradecer o privilégio de tê-la como leitora, ocorre-me a motivação de voltar ao assunto para tecer hoje mais algumas considerações. Começo por destacar que existem inúmeros trabalhos de corte acadêmico sobre a presença da mulher na música popular brasileira, dentre os quais, com alguma dose de subjetivação, tomo a liberdade de indicar o belíssimo estudo "O eu feminino na canção brasileira: desenvolvimento cultural entre 1901 e 1985", de André Simões.
Nascido de sua tese de doutorado para a PUC-SP, o texto de Simões é fundamental para evitar equívocos de interpretação, juízos apressados, inconsistências argumentativas, sobre uma obra absolutamente correta nos planos do conteúdo e da forma. Sem pruridos inoportunos ou deslizes de natureza conceitual, o trabalho serve para tornar evidente o que há muito tenho por convicção: embora calcadas o mais das vezes em situações de aparente dependência da mulher em relação ao homem, o cancionista Chico Buarque de Hollanda é sutil aqui, irônico acolá, ardiloso ou intencionalmente ferino no fraseado de suas composições, mas nunca indiferente ao que pode advir de sua visada poética como reflexão em torno do que, na falta de melhor expressão, pode-se delimitar como a questão feminina.
Em certa medida, pois, há nas mulheres de Chico Buarque um não sei quê de machadiano, e muitas delas trazem no corpo o perfume de Capitu, a mesma dissimulação que as faz irresistivelmente sedutoras, capciosas, "dominantes enquanto dominadas", que me permitam o que há de paradoxal na afirmação e de incorreto politicamente falando.
Para se ter uma ideia do que fez Chico Buarque na perspectiva do eu lírico feminino, o quanto o tema o persegue como poeta, romancista e dramaturgo, destaco aqui algo próximo de cinquenta canções, a maior parte delas dramáticas, ou seja, canções compostas para peças de teatro ou cinema: "Noite dos mascarados", "Soneto", "Ana de Amsterdam", "Bárbara", "Cala a boca Bárbara", "Não existe pecado ao sul do Equador", "Tatuagem", "Tira as mãos de mim", "Joana Francesa", "Bem-querer", "Mambordel", "O que será", "Tira as mãos de mim", "À flor da pele", "Folhetim", "O meu amor", "Teresinha", "Ai se eles me pegam agora", "Uma canção desnaturada", "Não sonho mais", "Sob medida", "Qualquer amor", "A história de Lily Braun", "Meu namorado", "Mil perdões", "A violeira", "Las muchachas de Copacabana", "Palavra de mulher", "Sentimental", "Tango de Nancy", "Anos dourados", "Abandono", "Sol e lua", "A mais bonita", "Lábia", "Veneta", "Fora de hora", "Sem fantasia" e as não dramáticas "Com açúcar com afeto", Atrás da porta", "Olhos nos olhos", "Sem açúcar", "O meu guri" e "Se eu soubesse".
Por último, como observa André Simões em seu trabalho (o que reproduz no livro "Chico Buarque em 80 canções", Editora 34, 2024), há casos em que o ponto de vista feminino alterna com o ponto de vista masculino, a exemplo do que se pode ver na incontornável "Sem fantasia", composta para a peça "Roda Viva" (1968), forjada na mesma pegada homérica da mulher que acolhe o homem "maltrapilho e maltratado" de volta ao lar.
Imagine, leitor ou leitora, o que seria da música popular brasileira sem essas verdadeiras pérolas. Ufa!
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