sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

A mais bela das mentiras

Curiosamente, foi meu pai quem despertou em mim o gosto pelo cinema. Digo 'curiosamente' por se tratar de um homem simples e de pouca escolaridade. Uma vez por semana, quando menos, papai nos levava ao Cine Alvorada (ou ao Cine São José), para assistir a filmes. Ele adorava western, filmes de ação, luta e tiroteios. Eu achava isso interessante, porque meu pai era o mais pacífico dos homens, e, no entanto, não perdia uma película que tivesse ação, briga, tiros, como aqueles que tematizavam a luta pela posse da terra entre exploradores e índios, a oeste do Mississipi. Seus olhos brilhavam diante da tela e, inconscientemente, ele chegava a se movimentar na cadeira como se participasse daqueles enfrentamentos entre bandido e mocinho. Ah, meu velho e inesquecível amigo!
Lembro que assistia com ele a todos os filmes de Tarzan, notadamente os de John Weissmuller, o nosso favorito. Mas víamos quase tudo que chegava aos cinemas da cidade. Amava Greta Garbo, Joan Crawford, Clark Gable, Spencer Tracy, Clint Eastwood, Giulliano Gemma, entre outros. O nosso ídolo, contudo, era John Wayne. Dele, acho que vimos tudo o que chegou até Iguatu: "Sangue de heróis", "No tempo das diligências", "O anjo e o bandido", "Rio vermelho", "Caminhos fatais", "Rio bravo"… Não éramos, por óbvio, esteticamente exigentes --- o subgênero western de produção italiana das décadas de 1960 e 1970, por exemplo, atraía-nos como a dois meninos. 
Hoje, com certa frequência, revejo filmes daquela época e me sinto menino outra vez. Dói-me pensar que meu pai não tenha alcançado o videocassete, o DVD, com seu making of, o "quadro a quadro", a facilidade de localização de cenas etc., e, principalmente, em cópias ou streaming, com a qualidade não raro superior ao original... E pensar que acumulei mais de três mil filmes em casa... 
Como fosse um pequeno comerciante, e trabalhasse em sua própria casa, recordo que todos os dias, a uma dada hora da tarde, um de nós, seus filhos, ia para a mercearia a fim de que papai pudesse assistir a um ou outro filme. Ele se divertia com isso, era a sua única distração. Quando nos deixou, com o golpe implacável de sua depressão, lembro que passei algum tempo sem ver os filmes da tevê. Causava-me arrepios passar diante do aparelho e ver os filmes vespertinos que meu pai tanto apreciava, os olhos verdes projetados na poeira vermelha de Monument Valley...
Algum tempo depois, Alvorada e o São José fechados, inaugura-se outro cinema na cidade: o Cine Coliseu. A essa altura, já mais adulto, tinha eu uns 15, 16 anos, o hábito de ver filmes crescera e se tornara, obviamente, mais exigente. Passei a estudar cinema, a selecionar o que via, num universo de opções extremamente pobre, claro, a se enriquecer com a leitura de artigos e reportagens (poucos) sobre a sétima arte. Um dia me tornaria professor universitário, a lecionar, entre muitas matérias, estética do cinema, a dividir com meus alunos e alunas o mais encantador dos enamoramentos...
Por essa época, aqui e além, contudo, chegava até Iguatu um ou outro filme pouco condizente com as expectativas dos cinéfilos da cidade. Recordo que assisti ali a alguns clássicos da história do cinema, parte deles, contudo, em versões reescritas, como, por exemplo, "O homem que ri". Não a primeira adaptação do livro de Victor Hugo, que veria muito tempo depois, sob a direção de Paul Leni. Era uma releitura, sonorizada, diferentemente do preto e branco americano, silencioso e belo. Ocorre-me recordar a história. 
O roteiro me desconcertou quando o vi a primeira vez. É um dos clássicos do expressionismo e conta a saga de um homem bom condenado a rir a vida inteira. Explico-me: Gwynplaine, o nome do protagonista, órfão, é pego por um bando de bandidos, que o desfiguram a golpes de faca. Daí o riso monstruoso, largo e patético.
Volto no tempo.
Gwynplaine salva uma menina e cresce junto a ela sob os cuidados de um produtor de vaudeville. Já grandes, trabalham juntos em espetáculos do pai adotivo, vindo a ficar apaixonados. Detalhe importante para a dramaticidade da obra é que a jovem é cega e, portanto, não pode ver a deformação do rosto de Gwynplaine. Uma bonita história de amor. Coisas lindas da literatura e do cinema, 
Como o filme de Line fosse uma raridade, tive o privilégio de vê-lo na Casa Amarela, obra do amigo Eusélio de Oliveira, que seria brutalmente assassinado poucos anos depois. A versão que vi, há uns 40 anos, é outra, não menos interessante.
Nessa época, vi, ainda, outros dos meus filmes prediletos. Lembro de "Gritos e sussurros" e de "Morangos silvestres", de Ingmar Bergman, que viria a ser o diretor da minha adoração; "Rastros de ódio", com John Wayne e, pasmem, "Jules et Jim", com a curiosa tradução de "Uma mulher para dois", de um certo François Truffaut, um dos maiores da história do cinema, e um dos meus realizadores prediletos não me custa dizer. Não surpreende que a película constituísse um fiasco de bilheteria, e o dono do Coliseu, Enéas Paulino, limitasse sua exibição ao dia da estreia. 
"Jules e Jim", ou "Uma mulher para dois", como queiram, narra a história de dois amigos, um francês e um austríaco, que se conhecem em Paris e ficam amigos por toda a vida. O filme, a que assistiria mais de uma vez algum tempo depois, e o teria sempre ao alcance da mão, foge à gramática americana, mais 'didática' para o espectador, com suas tomadas de abertura pondo em evidência a ambientação das cenas. Truffaut, com sua 'pressa' em narrar histórias, sua agilidade cinematográfica inconfundível, apresentando-me outras formas de fazer cinema. Truffaut, o nome a revelar o gênio.
A porta estava aberta para os grandes nomes do cinema. E vieram Rossellini e o neorrealismo, "O Medo", "Roma, Cidade Aberta", "Viagem na Itália" a me tirar o folego... Veio Michelangelo Antonioni, a sondar, como um Dostoiévski do cinema, os meandros mais sombrios de nossa alma; veio Kurosawa, vieram Kubrick e Altman; vieram Woody Allen, Pasolini, Tarantino; veio Glauber Rocha, vieram Nelson Pereira dos Santos e Cacá Diegues, Walter Salles... 
O mundo, tal qual as nuvens no céu, se transformando --- e eu, como se pela força de um sortilégio, amando, acreditando na verdade da mais bela das mentiras. 




quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

A semana em cinco toques

No momento em que sento diante do computador para escrever a coluna de hoje, vejo, à distância, na tevê, a notícia da morte do ator Gene Hackman, estrela de "Operação França" (1971) e "Os Imperdoáveis" (1992), vencedor de duas estatuetas do Oscar, e um dos atores mais emblemáticos de Hollywood. Eugene Allen Hackman fez 95 anos no último dia 30, e foi encontrado morto ao lado da mulher, a pianista Betsy Arakawa, de 64 anos. Hackman atuou em mais de 80 filmes, além de trabalhos no teatro e na televisão. Dele, além das interpretações irretocáveis nos filmes aqui citados, guardo a imagem marcante na pele de Beatty, irmão do ladrão de bancos Clyde Barrow, no filme "Bonnie e Clayde: Uma Rajada de Balas" (1968), o clássico de Arthur Penn (1968). Mas em nenhuma de suas brilhantes atuações, quero crer, esteve tão bem, tão maravilhosamente bem quanto no papel de Jimmy Popeye Doyle, o atabalhoado detetive de "Operação França", sob a irrepreensível direção de William Friedkin. Até a escritura deste texto, são desconhecidas as circunstâncias da morte do casal. Lamentável.
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Entre livros, durante visita de costume à Livraria Leitura, do Rio Mar, deparo com o escritor e queridíssimo amigo Dimas Macedo. Damo-nos a conversar sobre a obra de ninguém menos, que Marguerite Duras, a que Dimas, leitor contumaz e profundamente exigente, dedica-se com a sensibilidade do poeta e a racionalidade do historiador. Fala-me de livro de poemas de sua autoria a sair até meados deste ano, sob a cuidadosa editoria de Clauder Arcanjo. Despedimo-nos com afetuoso abraço e a certeza feliz de que nos encontraremos durante o Carnaval. Com Dimas Macedo, à maneira de Horácio, aprendemos e nos divertimos, grande intelectual e artista também imenso que é.
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De Edmilson Caminha, com a inconfundível marca de sua singular elegância, vem-me a mensagem em que comenta coluna recente deste escriba a propósito do jornalista Joel Silveira. Escritor de múltiplas vertentes, Caminha discorre sobre vida e obra do jornalista e ficcionista alagoano com intimidade e fina capacidade de compreensão, deslindando suas instabilidades de humor e a contraditória personalidade de Joel Silveira --- como se sabe, detentor de irascível temperamento e extraordinário poder de sedução. De bandeja, manda-me, ainda, vazado no estilo que encanta a todo leitor, artigo primoroso sobre o autor de "A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista", livro em que Joel emprega, pioneiramente, recursos próprios do que se define como jornalismo literário.
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Escrita com a habilidade de um mestre, no plano da forma e do conteúdo, do Rio de Janeiro recebo correspondência virtual do editor, poeta, novelista e cronista de corte minimalista Clauder Arcanjo. Com a habitual maneira de se expressar através da escrita, que fazem dele um escritor de escol, Arcanjo comenta a realidade do país hoje, suas contradições sociais e políticas, mas invariavelmente tecendo suas reflexões com o escorreito da linguagem, a sabedoria filosófica de um mestre e a beleza marcante do estilo. Da vasta correspondência que vimos mantendo há muito, haverá de sair, a seu tempo, produzido a quatro mãos, o livro com que Clauder Arcanjo e eu temos trocado por e-mail, à maneira das velhas cartas, nossas ideias e percepções de mundo, nosso indomável amor pela literatura e pelas outras artes. Tudo, como manda o figurino do bom missivista, com a leveza do linguajar e a informalidade no plano da expressão. No prelo, brevemente.
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De mal a pior, em termos de popularidade, o governo Lula 3 há que enfrentar até 2026, a desfaçatez do pior jornalismo dos últimos tempos no Brasil, quer do ponto de vista ético quer do ponto de vista de sua formatação, bem na linha do que fazem os grandes jornais, Folha de São Paulo à frente, e os principais canais de TV. Para esses profissionais, que batem exaustivamente no presidente, pouco importa que o país alcance bom nível de crescimento, empregabilidade formal sem precedentes e implementação de programas sociais que se destinem a minorar o descalabro de nossas contradições e perversa desigualdade. Sem esquecer, por óbvio, a mais deplorável composição congressual, gente afeita a privilégios, roubalheira e negociatas inconfessáveis. Tudo sob a manto sujo do embuste, da manipulação de números e esquisitices outras. Em tempo, atente-se para a manchete do nosso mais importante jornalão, há pouco: "País cria 137,3 mil empregos com carteira assinada em janeiro". O país. Que pouca vergonha.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Morte no Paraíso

Semana que passou escrevi aqui sobre hipótese de Stefan Sweig ter sido assassinado. Foi o bastante para que alguns leitores levantassem questionamentos sobre o fato, muitos, inclusive, dizendo desconhecer que existissem tais dúvidas acerca do que "realmente" ocorrera ao escritor austríaco: morte por suicídio. Em face disso, este colunista sente-se na obrigação de voltar ao assunto, não sem antes, claro, como manda o bom jornalismo, deixar claro para todos quem foi Stefan Sweig. Mãos à obra.
Dramaturgo, biógrafo, romancista, memorialista e poeta, Stefan Sweig foi um austríaco de origem judaica cuja obra, como escritor, elevou-o à condição de um dos maiores nomes da literatura universal. No início dos anos 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, Sweig foi perseguido pelos nazistas, exilando-se com a mulher, Lotte, em Petrópolis, Rio de Janeiro.
Escreveu no Brasil, além de incontáveis textos de relevância, o polêmico livro "Brasil, um país do futuro", cujo título, segundo o seu biógrafo Alberto Dines, "é um caso único de livro convertido em epíteto nacional".
A exemplo do não menos polêmico "Porque me ufano do meu país", de Affonso Celso, em que o autor esposa ideias nacionalistas de cunho ingenuamente utópico, o livro de Stefan Sweig aponta para um futuro promissor do Brasil, muito embora emprestando ao seu pensamento muito maior equilíbrio e visão analítica, aspectos naturalmente ligados à universalidade de sua literatura perpassada de espírito humanista. Não sem razão, a obra, produzida no contexto da ditadura de Getúlio Vargas, suscitou um longo debate sobre os motivos que teriam levado Stefan Sweig a escrevê-la: tratava-se de um livro encomendado pelo ditador de plantão? De um livro sustentado na singular capacidade inventiva do escritor, na linha da melhor literatura? Uma forma do imigrante, fugitivo dos horrores nazistas, agradecer ao país que o acolhera? São hipóteses que ainda mais contribuem para a polêmica em torno de sua morte, oficialmente reconhecida como suicídio a dois --- Lotte, poucos minutos depois de Sweig, teria ingerido uma mistura de água e barbitúrico. Estavam abraçados.
No seu brilhante "Morte no paraíso --- A tragédia de Stefan Sweig", Alberto Dines não dá espaço a qualquer dúvida: "Suicídio, não há outra explicação. [...] Seu último empenho está em não deixar dúvidas sobre o acontecido. Por isso montou o minucioso ritual para que o gesto não seja interpretado como acidente".
Assim, em mais de uma passagem do seu livro, Alberto Dines reproduz uma "declaração", escrita em alemão, mas com título em português, em que Stefan Sweig assume total e absoluta responsabilidade pelo ocorrido. Dines vai além: sabendo das questões levantadas em torno do que afirma ser suicídio, desfecha o precioso parágrafo com uma sutil assertiva: "Tanto esmero e cuidado não evitaram que a mensagem [a declaração de suicida] seja truncada".
O fato é que não se conhecem as razões por que Getúlio Vargas não permitiu que o enterro do casal se desse em cemitério judaico. O laudo médico, determinado pelo então presidente, é vago, impreciso, dando margem para que as mortes do escritor e sua mulher continuem, passados tantos anos, encobertas pelo manto cinza da incerteza. Diga-se em tempo: a imprensa brasileira, em significativa porção, em fins dos anos 1990, assim como na época em que ocorreu o fato, trabalhou com a hipótese de que o casal tenha sido assassinado por agentes da Gestapo. Não é irrelevante afirmar, contudo, que Getúlio Vargas era, então, fiel seguidor de Adolf Hitler. O caso de Olga Prestes, ressalte-se, é exemplo de que as dúvidas sobre a morte de um dos grandes escritores de todos os tempos, e sua mulher, têm razão de ser.
A propósito, o advogado e psicanalista Jacob Pinheiro Goldberg, nome prestigiado entre os estudiosos do assunto, afirma que Stefan Sweig poderá ter sido assassinado. "Que prejuízo haverá para a história cultural do Brasil se houver reabertura de inquérito para esclarecimento de dúvida sobre a morte de Sweig", indaga.
De minha parte, como sinalizei em coluna da semana passada, o livro de Deonisio Silva, "Stefan Sweig deve morrer", ainda que se trate de ficção, constitui uma significativa contribuição para o debate. O mesmo se dá em relação às mortes dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart --- histórias mal contadas, com farto material a indicar a possibilidade de que foram assassinados.
Nesse sentido, o belo filme "Ainda estou aqui", de Walter Salles, já visto por mais de 5 milhões de espectadores, só no Brasil, é material importante, importantíssimo mesmo, na medida em que mostra para o grande público o que realmente ocorreu a Rubens Paiva, torturado e morto pelo regime militar.
Cuidadosamente vestido e de gravata, Stefan Sweig foi encontrado morto em sua casa, em Petrópolis, ao lado de sua segunda mulher, Elisabeth Charllote Altmann (Lotte), levando a termo um pacto macabro de amor e angústia jamais esclarecido. Era 22 de fevereiro de 1942, ano em que Orson Welles rodava no Brasil o inacabado "It's All True".
Com amigos comuns em Hollywood, celebridades internacionais, escritor e cineasta não se cruzaram. Mesmo assim, aparecem juntos em ficção cinematográfica de Sylvio Back, sob o título "Lost Sweig".
Como sempre, e em tudo, realidade e ficção insistem em caminhar juntas. Cumpre-nos reconhecer, no entanto, o que faz a diferença entre uma e outra.  
 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Sempre Repórter, Lillian Ross

Faz algum tempo escrevi aqui sobre a reedição das entrevistas de Clarice Lispector pela editora Rocco. Ressaltei, na oportunidade, a metodologia adotada pela escritora: "Clarice mais conversa que entrevista, estabelecendo com o interlocutor um método interessante e envolvente de lidar com temas delicados (ou apenas delicados aos olhos de Clarice), revelando-se quase tanto quanto o entrevistado". Dei exemplos, indiquei veredas percorridas pela escritora no sentido de "arrancar" o que pode haver de mais curioso e verdadeiro das pessoas ouvidas, em sua maioria escritores ligados a Clarice por laços de afinidade pessoal ou artística. Uma delícia, o livro.
Eis que o tema, por feliz coincidência, vem sendo matéria fartamente abordada por grandes cronistas, a exemplo de Álvaro Costa e Silva e o cultuado Ruy Castro, ambos da Folha de S. Paulo, invariavelmente ancorados na jornalista (já falecida) Lillian Ross, citada por mim em coluna da semana passada.
Ross, dizia eu, foi um dos grandes nomes do jornalismo literário, ombreando-se a Tom Wolfe como precursora do gênero. Como o texto tenha despertado o interesse de um e outro leitor pelo jornalismo que extrapola as fronteiras do convencional, indo da mera informação para o jornalismo feito com a arte da literatura, estendo-me no assunto para trazer de volta a emblemática jornalista americana.
É que acaba de ser lançado no Brasil, em tradução de Jayme da Costa Pinto, o prestigiadíssimo "Reporting Always --- Writing from The New Yorker" (Sempre Repórter --- Textos da Revista New Yorker, Editora Carambaia, 2024).
Em edição primorosa, tipos gráficos graúdos (detalhe que interessa a este leitor), capa dura e esmerado tratamento editorial, "Sempre Repórter" tem introdução da própria Lillian Ross e acurado posfácio de Paulo Roberto Pires. Mas é Ross quem discorre mais diretamente sobre o modo como produzia suas matérias, imperdíveis, diga-se em tempo: "O que faz a escrita brotar de um autor é, em grande medida, um mistério. Em enigma semelhante, as inspirações de um escritor não se revelam de modo explícito naquilo que ele nos apresenta. Ali por trás, à espreita, ronda um espírito esquivo".
Como Clarice, Lillian Ross tinha com ela um grande trunfo: na contramão do que era recorrente nas redações de jornais, de onde saíam entrevistas e reportagens literalmente sustentadas nas palavras dos entrevistados, uma quase transcrição do que diziam à frente de um gravador, os textos da jornalista americana transitavam pelo que só os planos aproximados do cinema podiam fazer --- enquadravam o detalhe, o cinzeiro repleto de pontas de cigarro, a unha por fazer, os vacilos e titubeios diante das perguntas capciosas, coisas, enfim, que costumavam passar despercebidas na hora da entrevista e que tanto diziam do perfil psicológico de cada um. Com isso, mais que "apresentar" um discurso que nem sempre era suficiente para revelar o que se escondia por trás das palavras, suas entrevistas e reportagens guardavam um não-sei-quê de inconfessável que dorme no mais profundo de cada um de nós. Resultava disso, como o "Sempre Repórter" mostra de forma leve e solta, um texto absolutamente maravilhoso, sedutor, desses a que o leitor se entrega por inteiro numa experiência prazerosa e incansável.
Vejamos o que diz Lillian Ross em "Sempre Repórter": "Outra de minhas regras: não usar gravador. Percebi que tagarelice literal muitas vezes induz a erros e ofusca a verdade. Prefiro fazer anotações e confiar em meu próprio ouvido para diálogos que revelam personalidade e humor, e faço isso sempre que possível quando crio [grifo meu] minhas pequenas cenas".
É próprio do que se define como jornalismo literário, e que, na coluna mais recente, identificávamos como mais profundo, inventivo, capaz de equilibrar-se gostosamente no delicado fio que separa a ficção da realidade. Mas, compreenda-se, não se trata de mentir sobre o fato, mas de adorná-lo com o perfume da literatura, acrescentando-lhe camadas de fina acuidade jornalística e beleza de estilo. Maior exemplo disso, quero crer, não haverá que o texto "Frank Sinatra está resfriado", de Gay Talese, verdadeiro clássico do jornalismo literário americano e mundial.
Antes que me esqueça: Clarice, em suas entrevistas, fazia exatamente assim.