quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Três pérolas

Três pérolas caem-me às mãos esses dias. Primeiro o texto dramático Júlio César e Polônio - A História pelo Avesso, do psiquiatra e contista Weimar Gomes dos Santos. Texto da melhor qualidade, desses que se podem apreciar independetemente de sua montagem cênica. Admiravelmente construído com os elementos do grande teatro, em que pese tratar-se de um texto antes de tudo moderno, no mais rigoroso significado da expressão, essa história pelo avesso, como o próprio subtítulo da peça deixa a ver, assinala a estreia de Gomes no gênero, mas já nasce maduro do ponto de vista da carpintaria teatral, que o autor soube manusear com surpreendente competência mesmo em se tratando de um estreante. Se o grande teatro é, antes de tudo, uma bela linguagem, como quis Louis Jouvet, para citar um renomado amante do teatro de texto, Júlio César e Polônio é peça para marcar a renovação do nosso teatro no que diz respeito à produção textual. Mas não se limita à questão da linguagem o que há de mais relevante na estreia de Weimar Gomes dos Santos no teatro. Fico antevendo o que resultará da obra se confiada às mãos de um diretor inventivo, quão inventiva é a tessitura dramática criada pelo autor. Como professo para os meus alunos de Artes Cênicas que a revitalização do nosso teatro pressupõe um retorno à valorização do texto, ler a "História pelo Avesso", que seu criador submete à minha modesta opinião, foi, a um tempo, uma experiência prazerosa e alentadora. Texto plural, cuja força vai para além da mera literariedade que é mesmo o que, ao primeiro olhar, chama-nos a atenção. Reforça esta qualidade, já referida, o estilo, ligeiramente inspirado (inconscientemente?) em Brecht, mesmo que a referência a Shakespeare seja uma marca assumida pelo estreante, bela promessa desses novos tempos.
 
A outra, o livro de contos Entre Oito Paredes, do também estreante Brennand de Sousa. Arquiteto de formação, o autor, que já tem íntimas ligações com outra estética, a teatral, vem a público, agora, com uma coletânea de narrativas curtas de inegável qualidade, em que sobressaem a visada pessoal extremamente sensível e o domínio da técnica, economia de meios, linguagem, unidade dramática, de tempo e de espaço, que denunciam a intenção de Brennand de, mantendo-se no território da tradição, e quem sabe por isso mesmo, constituir novidade num tempo de experimentalismos nem sempre bem sucedidos. O livro se constroi a partir do inusitado, daquilo que surpreende, que nos pega de inopino no vai e vem da vida: um assalto na rua, um pedinte com que deparamos aqui ou além, a presença ao mesmo tempo delicada e prodigiosa da avó amada, enfim, a matéria com que se tece o eterno viravoltear do cotidiano. Não bastasse, pela originalidade da escrita e oportunidade da intenção, a homenagem ao homem de teatro, emblematicamente representado na figura de Ricardo Guilherme, uma das mais elevadas expressões da nossa inteligência. Um pequeno-grande livro, este Entre Oito Paredes com que o amigo Brennand de Sousa faz sua estreia nas letras cearenses contemporâneas.
 
Por último, e de qualidades artísticas ainda mais impressionantes, o belíssimo CD homônimo de Maurílio Rocha, uma coletânea de músicas compostas em sua totalidade por esse mineiro talentosíssimo, que, por dever de ofício, como professor do curso de Belas Artes da UFMG, tem vindo ao Ceará com alguma frequência. Um trabalho musical refinadíssimo, este de Maurílio Rocha, quer pela competência do compositor, do poeta e do intérprete, que transita pelas três dimensões artísticas com a mesma e irrepreensível desenvoltura, quer pela motivação que o move enquanto grande artista que é, e de que resulta o presente álbum: Maurílio compôs as oito músicas para os espetáculos teatrais O Mambembe, de Arthur Azevedo, e Sonho de uma noite de verão, de William Shakespeare. Também por essa razão, o trabalho apresenta-se eficiente, preciso e original.
 
O carro-chefe do CD, no entanto, a fim de que se faça justiça a outro grande artista, conta com a parceria de Anderson Aníbal, que assina a letra, vestida à perfeição pela deliciosa melodia de Maurílio Rocha. Intitula-se O Sonho: "Diz, se você puder./O que é isso que me tonteia?/Que vira os meus olhos e me faz cair?/É sonho? É sonho? É amor? É?", indaga o eu-lírico na primeira estrofe do poema, para arrematar com um lirismo despretensioso e leve, que remonta, talvez, ao melhor romantismo do inconfidente Tomaz Antônio Gonzaga: "E esse doce, essa nuvem/Nuvem é lugar de andar/Andar com que pé?/Asa que você me dá./É asa./Amor./Amor é." Fina-flor.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A ética perdida

É verdade que dei com os burros nágua. Deu segundo turno e a galera da reação está exultando com a possibilidade de um retrocesso. Coisas da democracia, se é que se pode falar de democracia diante de tudo o que houve e que, até onde sei, explica a surpresa do resultado. Sem querer "perder a postura intencionalmente", a exemplo do que fiz na semana que passou, insisto na ideia de que a grande imprensa brasileira vem materializando o mais deslavado jornalismo marrom. Por falar nisso, leitor encontra-me na rua e diz com todas as letras: - "Você foi muito infeliz!" Isso, claro, depois de besuntar a crítica com elogios que estão para além do que pode este pobre escriba.

Analisando o que se deu em termos de mídia durante a campanha, ocorre-me lembrar do clássico As ilusões perdidas, de Honoré de Balzac, livro com que o francês põe a nu as práticas inconfessáveis dos profissionais da imprensa na segunda metade do século XIX. Trata-se, entre outras coisas que a obra explora com a maestria do gênio, de uma impiedosa, mordaz e procedente crítica às práticas perversas do jornalismo, sua nebulosa expressão de interesses político-partidários. Numa palavra, a parcialidade de um aparelho a um tempo imprescindível e pernicioso. Mas, voltemos ao que importa.

Pois bem. O mais lamentável é que um jornal importante como a Folha de São Paulo, uma revista como a Veja, para não entrar nas obviedades que levam os jornalistas da TV Globo a fazer o que fazem, possuidores de redações extremamente competentes, a fina flor da nossa imprensa, pratiquem em uníssono um jornalismo compactamente voltado para os interesses dos seus patrões. Uma vergonha!

E ainda têm o cabotinismo de ribombar palavras de ordem em favor do que professam ser uma imprensa livre. Confunde-se, na embriagada disposição de fazer valer a vontade do patrão, liberdade empresarial dos donos dos órgãos de imprensa com liberdade de expressão jornalística. E haja editoriais, reportagens, artigos etc., defendendo hoje, mutatis mutandis, o que defendiam durante os anos de arbítrio: antes, o elogio da reação contra o que diziam ser o risco de cubanização do Brasil; agora a desconstrução de um governo popular contra os riscos de mexicanização, venezuelização ou seja lá o que for. Uma indecência!

Isso, prezado leitor, para não falar da exploração desumana de falas, isoladas do contexto em que foram ditas, com o fim de danificar a imagem pública das pessoas. Um exemplo? A fala em que a candidata Dilma Rousseff admite a necessidade de que se revejam as questões legais que envolvem o aborto, que, para essa imprensa "livre" significa defender a legalização do aborto. Em tempo, não há como negar: o papel da Igreja, sem esquecer a manipulação do pensamento dos evangélicos, explica à perfeição a queda de Dilma e o espantoso crescimento de Marina Silva no primeiro turno. Sem desconhecer os méritos desta, obviamente. A ética perdida.