terça-feira, 31 de agosto de 2010

O amor e a coisa amada

 

Amigo vive há dias um verdadeiro inferno, é o que me diz. Até onde sei, acaba de romper uma relação de um ano e custa-lhe aceitar a perda do objeto amado. Viveram uma crise da qual não conseguiram sair, e coube à namorada terminar, o que o deixou desarvorado. A velha história. Quem, ainda que uma vez, não conheceu de perto este drama? A eterna procura.

Ocorre-me lembrar Platão, para quem, a princípio, os seres humanos eram andróginos, isto é, machos e fêmeas ao mesmo tempo. Que isso tem a ver? Bem, tem muito a ver, uma vez que, separadas em duas metades, as almas vivem a procurar sua parelha. E não suportam a solidão, associando sempre a sua felicidade à descoberta do outro. Por isto este inferno a que se refere o amigo. É que não sabemos lidar com as perdas. Mais uma vez o mito de Platão.

Sem desmerecer a garota, que sempre me pareceu uma mulher interessante, acho que meu amigo, na linha do que fazemos todos, incorre no erro histórico: ninguém será capaz de substituir a amada que se foi. É ela a mulher ideal, idealis, qualificativo que tem sua origem no substantivo idea, ideia, ou seja, a coisa correspondente à ideia que se faz dela. Fantasia, pois.

Aí está a raiz do sofrimento quando perdemos alguém que 'idealizamos', que construímos em nossa mente conforme o nosso ideal. Proudhon, o pensador francês, reportando-se ao conceito de beleza, diz disso uma coisa bastante curiosa: "... a palavra ideal se diz, pois, de qualquer objeto que reúna no mais alto grau todas as perfeições, mais bela que todos os modelos oferecidos pela natureza: beleza ideal, figura ideal."

Um tipo de ofuscamento, uma perturbação do entendimento. Esta a razão por que é tão difícil a felicidade a dois, pelo menos na dimensão do que estamos falando. Cobramos do outro a perfeição que só existe no âmbito da ideia, que, para Platão, não existe nem mesmo na coisa em si, mas no que imaginamos dela. No caso, não pode haver uma mulher que tenha todos os atributos por nós idealizados, que seja a um tempo loira e morena, alta e baixa, robusta e delgada, nem os atributos morais que pensamos encontrar quando amamos. Em verdade, o objeto do nosso amor é sempre um retrato, uma 'pintura' nascida da nossa subjetivação. Tento, sem conseguir, dar isso a ver ao amigo. Parodiando Agostinho, o Santo, "é que amamos um mortal como se ele não fosse morrer."

 

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

A morte de meu pai

DONA TEONILA FELIPE adentra o meu apartamento numa certa manhã. Pela expressão do rosto, visivelmente tenso, concluo que é portadora de alguma notícia ruim. Puxo-lhe uma cadeira e dou a ver a minha apreensão: - "O que houve? Por favor, não me esconda nada!" Ela me diz que tenho de ir a Iguatu, o avião aguardando na base aérea.

 

Aos 67 anos, gozando de alguma vitalidade ainda, meu pai, o mais manso e equilibrado homem que pude conhecer, acabara de tomar a decisão radical.

 

Não sei, de fato, o que se passou comigo a partir daquele instante. Os sessenta, setenta minutos de voo entre Fortaleza e Iguatu, passei-os em silêncio, sem derramar uma lágrima que fosse. Há dores que, de tão profundas, parecem exigir o silêncio. Era o que se passava comigo.

 

Ao meu lado, como uma voz que soava absolutamente distante e indiferente, meu irmão Odivaldo falava sem parar, como se o fizesse mecanicamente, sem domínio de suas ideias, que não tinham para mim, naquelas circunstâncias, o menor significado.

 

E, num espaço de tempo que me pareceu uma eternidade, tentava entender as razões que pudessem de alguma forma explicar a atitude extrema de meu pai. Passei em revista a nossa convivência, o carinho que dispensara a todos de casa, a mansidão de seus gestos, a humildade e a expressão sempre serena do seu rosto. Lembrei a correção de seu caráter, a retidão com que agia sempre, o reconhecimento unânime da sua integridade.

 

Em vão. Eu não encontrava resposta para o que fizera meu pai, mal brilhavam os primeiros raios do sol, na solidão do seu quarto, enquanto minha mãe, tão zelosa, lhe preparava o café da manhã.